CORPO
Assim como não sabemos o que seja espírito, ignoramos o que seja corpo. Percebemo-lhe apenas propriedades. Mas que é o ente em que residem tais propriedades? Tudo é corpo, dizia Demócrito e Epicuro. Não existem corpos, contravinham os discípulos de Zênon de Eléia.
Berkeley, bispo de Cloyne, foi o último que, por cem sofismas capciosos, pretendeu provar que os corpos não existem. Eles não têm, disse, nem cor, nem odor, nem calor. Tudo isso está em vossas sensações e não nos objetos. O Sr. Berkeley podia ter-se poupado ao trabalho de demonstrar semelhante verdade: conhecemo-la de sobejo. Mas daí passa à extensão, à solidez, que são essências do corpo, e julga provar não haver extensão num retalho de pano verde porque em verdade o pano não é verde. A sensação do verde acha-se tão somente em vós: por conseguinte a impressão de extensão não está também senão em vós. Após destruir a extensão, conclui que a solidez cai consequentemente por si mesma, e que portanto nada existe além das nossas idéias. De sorte que, segundo esse doutor, dez mil homens trucidados por dez mil balas de canhão não passam em suma de dez mil apreensões da nossa alma.
Só mesmo o sr. bispo de Cloyne seria capaz de cometer tamanho ridículo. Presume demonstrar que não existe extensão porque com lunetas um corpo lhe parece quatro vezes maior que a olho desarmado, e quatro vezes menor com auxílio de outro vidro. Daí concluir que, não podendo um corpo ter quatro, dezesseis e um só pé de extensão ao mesmo tempo, tal extensão não existe. Logo nada existe. Bastava-lhe medi-lo e dizer: não importa o tamanho que me pareça ter, este corpo tem tantos centímetros.
Muito fácil lhe seria ver que o caso da extensão e da solidez não é o mesmo dos sons, das cores, dos sabores e dos odores. Claro que estes são impressões subjetivas em nós excitadas pela configuração das partes. A extensão, porém, não é sensação. Se se consumir este lenho, deixarei de sentir calor. Não sendo ferido o ar, não ouvirei. Estiole-se esta rosa e já não lhe sentirei o perfume. Independentemente de mim, entretanto, este lenho, este ar, esta rosa têm extensão.
Nem merece refutação o paradoxo de Berkeley.
Cai a talho saber o que o levara a semelhante paradoxo. Há muito tempo tive com ele algumas palestras. Disse-me que a origem de sua opinião era o não se poder conceber o que seja o sujeito da extensão. Efetivamente ele triunfa em seu livro quando pergunta a Hilas o que é esse sujeito, esse substrato, essa substância. “É o corpo estendido” – responde Hilas. Então o bispo, sob o nome de Filonous, põe-se a escarnecê-lo. E o pobre Filonous, percebendo ter dito que a extensão é sujeito da extensão, e que cometeu uma rata, fica atalhado e confessa nada compreender, que não existe corpo nem tão pouco mundo material, que só existe o mundo intelectual. Bastava Hilas dizer a Filonous: Nós nada sabemos sobre a essência desse sujeito, dessa substância estendida, sólida, divisível, móvel, figurada, etc. Não a conheço mais que o sujeito que pensa, que sente e que quer. Mas sua existência é tão inegável como a deste, pois tem propriedades essenciais de que não há despojá-lo.
Somos como a maior parte das damas de Paris, que se regalam em régios banquetes sem saber o que entra nos acepipes. Semelhantemente, desfrutamos dos.. corpos sem saber de que se compõem. De que é feito o corpo? De partes, que por sua vez se resolvem em outras partes. Que são as últimas partículas? Sempre corpos. Dividireis eternamente e jamais passareis disso.
Afinal um sutil filósofo, notando que um painel se compõe de ingredientes de natureza diversa, e uma casa de materiais dos quais nenhum é casa, imaginou (de maneira um pouco outra) serem os corpos constituídos de infinidade de seres infinitamente pequenos que não são corpos – as mônadas. Tal sistema não deixa de possuir certa exeqüibilidade, e se fosse revelado eu o creria até muito possível. Todos esses entes ínfimos seriam pontos matemáticos, espécies de almas que não esperariam mais que uma capa para se vestirem: seria uma metempsicose contínua. Uma mônada estaria ora numa baleia, ora numa árvore, ora no corpo de um pelotiqueiro. É um sistema e tanto. Tenho-o no mesmo conceito que a declinação dos átomos, as formas substanciais, a graça versátil e os vampiros de dom Calmet.
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CRISTIANISMO
Pesquisas históricas. – Não poucos eruditos manifestaram sua surpresa em não se lhes deparar no historiador José o menor traço a respeito de Jesus Cristo. Porque todos são acordes hoje em que o breve trecho que lhe dedica o historiador fariseu em sua História foi interpolado. No entanto o pai de José devia ter sido testemunha de todos os milagres de Jesus. José era da casta sacerdotal, parente da rainha Mariana, esposa de Herodes. Esparrama-se nas mais ociosas minudências sobre os mais corriqueiros atos desse príncipe, e contudo não diz palavra sobre a vida ou morte de Jesus. Demais esse historiador, que não encapa nenhuma das crueldades de Herodes, cala o morticínio de todas as crianças por ele ordenado atento à nova de que nascera um rei judeu. Conta o calendário grego catorze mil crianças degoladas nessa ocasião. É o mais abominável dos crimes de todos os soberanos. Não tem símile na história da civilização. A acontecimento tão singular quanto execrável, entretanto, não faz a mais leve referência o melhor escritor que em todos os tempos possuíram os judeus, o único prezado por gregos e romanos. Tão pouco regista ele o aparecimento da nova estrela que teria acendido no céu após o nascimento do Redentor, fenômeno ruidoso que não devia escapar a um historiador esclarecido como José. Mantém silêncio ainda sobre as trevas que, à morte do Salvador, com o sol a pino cobriram toda a terra por espaço de três horas, e sobre a grande quantidade de túmulos que então se abriram e a multidão dos justos ressurretos.
Não cessam os eruditos de manifestar sua surpresa de ver que nenhum historiador romano regista semelhantes prodígios, consumados sob o reinado de Tibério, aos olhos de uma guarnição e de um governador romano, que devia ter enviado ao imperador e ao senado relatório circunstanciado do mais miraculoso evento que ouvidos humanos ouviram contar. A própria Roma devia ter-se imerso durante três horas em espessas trevas. Deviam assinalar tamanho prodígio os fastos de Roma e de todas as nações. Deus não quis fossem tais coisas divinas escritas por mãos profanas.
Outras dificuldades empacham os eruditos na história dos Evangelhos. Observam eles que em S. Mateus Jesus diz aos escribas e aos fariseus que sobre eles recairia todo o sangue inocente derramado na terra, desde Abel até Zacarias, filho de Baraque, por eles assassinado no templo. Ora, a história dos hebreus não menciona, afirmam os eruditos, nenhum Zacarias morto no templo, nem antes nem depois do advento do Messias. O único historiador a registar o fato é José, livro 4, capítulo 19, ao falar do sítio de Jerusalém. Daí suspeitaram eles ter o Evangelho segundo S. Mateus sido escrito depois da tomada de Jerusalém por Tito. Mas todas as dúvidas e objeções dessa espécie se dirimem desde que se considere a infinita diversão que forçosamente há de haver entre os livros divinamente inspirados e os livros dos homens. Aprouve a Deus envolver numa nuvem tão respeitável quanto obscura o seu nascimento, sua vida e sua morte. Em tudo diferem seus métodos dos nossos.
Outro ponto que tem quebrado a cabeça aos literatos é a diferença das duas genealogias de Cristo. S. Mateus dá por pai a José, Jacó, a Jacó, Matã, a Matã, Eleazar. S. Lucas, ao contrário, diz que José era filho de Heli, Heli de Matate, Matate de Leví, Leví de Jana, etc.
Engasga-os ainda a suposição de Jesus não ser filho de José, mas de Maria. Atalham-nos também certas dúvidas quanto aos milagres do nosso Redentor, atentos os escritos de Sto. Agostinho, Sto. Hilário e outros, que atribuíram ao relato de tais milagres sentido místico, alegórico. Exemplos: a figueira amaldiçoada e secada para não dar frutos, quando não era tempo de figo. Os demônios enviados no corpo de porcos, num país onde não havia porcos. A água transformada em vinho ao fim de um repasto, quando os comensais já se achavam excitados. Todas essas críticas dos doutos, porém, confunde-as a fé, que com isso não faz senão aviventar-se. Outro não é o escopo deste artigo senão rastear o fio histórico e dar uma idéia tanto quanto possível exata dos fatos sobre que ninguém discute.
Primeiramente, Jesus nasceu sob a lei mosaica, segundo esta lei foi circuncidado, dela cumpriu todos os preceitos e celebrou todas as festas. Só pregou moral. Não revelou o mistério da própria encarnação nem disse aos judeus haver nascido de uma virgem. Recebeu a bênção de João nas águas do rio Jordão, cerimônia a que muitos judeus se submetiam, conquanto ele próprio jamais tenha batizado ninguém. Não falou dos sete sacramentos – Humanamente não se colocou em nenhuma hierarquia eclesiástica. Ocultou a seus contemporâneos ser filho de Deus, eternamente gerado, consubstancial a Deus, e que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho. Não disse que sua pessoa se compunha de duas naturezas e de duas vontades. Quis que esses grandes mistérios fossem revelados aos homens no decorrer dos tempos por aqueles que haviam de ser esclarecidos pelas luzes do Espírito Santo. Vivo, em nada se arredou da lei de seus pais. Não mostrou aos homens mais que um justo grato a Deus, perseguido pelos invejosos e condenado à morte por magistrados prevenidos. Quis que sua Santa Igreja, por ele fundada, fizesse o resto.
Fala José no capítulo 12 de sua História de uma seita de judeus rigoristas, recentemente fundada por um tal Judas galileu – “Eles desprezam” – diz – “os males terrenos, triunfando dos tormentos pela constância. Preferem, pela glória, a morte à vida. Optaram sofrer ferro e fogo, deixar que lhes quebrassem os ossos a pronunciar a menor palavra contra seu legislador ou comer carnes vedadas”.
O retrato parece quadrar aos judaístas e não aos essênios. Palavras de José: “Judas foi autor de uma nova seita, de todo ponto diversa das três outras – de saduceus, fariseus e essênios”. A breve trecho: “São judeus de nacionalidade. Vivem unidos entre si, e consideram vício a volúpia”. Denota o sentido natural da frase ser dos judaístas que fala o autor.
Seja como for, conheceram-se esses judaístas antes que os discípulos de Cristo constituíssem partido considerável no mundo.
Os terapeutas eram uma sociedade diferente de essênios e judaístas. Tiravam aos ginossofistas da Índia e aos bramas. “Anima-os” – atesta Fílon – “um ímpeto de amor celeste que os transporta ao entusiasmo dos bacantes e coribantes e guinda-os ao estado de contemplação a que aspiram. Esta seita nasceu em Alexandria, então inçada de judeus, e alastrou ferazmente pelo Egito”.
Os discípulos de João Batista também proliferaram um pouco no Egito, mas principalmente na Síria e Arábia. Medraram outrossim na Ásia Menor. Dizem os Atos dos Apóstolos (capítulo 19) haver Paulo encontrado muitos deles em Éfeso, aos quais indagou:
“— Recebestes o Espírito Santo
— Nem sequer ouvimos falar que houvesse um Espírito Santo.
— Que batismo recebestes
— O batismo de João.”
Existiam, nos primeiros anos que se seguiram à morte de Cristo, sete sociedades ou seitas distintas entre os judeus: fariseus, saduceus, essênios, judaístas, terapeutas, discípulos de João e discípulos de Cristo, cujo diminuto rebanho Deus conduzia a sendas desconhecidas da sabedoria humana.
Foram os fiéis apelidados cristãos em Antióquia, por beira do ano 60 da era vulgar. No império romano, como adiante veremos, foram conhecidos por outros nomes De primeiro não se distinguiam senão pela denominação de irmãos, santos ou fiéis. Deus, que baixara à terra a fim de ser exemplo de humildade e pobreza, dera assim toscos alicerces à sua igreja e guiara-a no mesmo estado de humilhação em que lhe aprouvera nascer. Foram os primeiros cristãos homens obscuros, trabalhadores manuais. Diz o apóstolo Paulo que ganhava a vida construindo tendas. S. Pedro ressuscitou a costureira Dorcas, que fazia os hábitos dos irmãos. Os fiéis reuniam-se em Jope, em casa de um curtidor de nome Simão, reza o capítulo 9 dos Atos dos Apóstolos.
Secretamente os fiéis se infiltraram na Grécia, e de lá alguns conseguiram transladar-se a Roma de contrabando com os judeus, a quem os romanos permitiam o funcionamento de uma sinagoga. Não se lhes separaram logo. Observavam a circuncisão e, como alhures já se advertiu, os quinze primeiros bispos de Jerusalém foram todos circuncidados.
Ao tomar consigo Timóteo, que era filho de pai gentio, o apóstolo Paulo circuncidou-o com as próprias mãos no lugarejo de Listra. Tito, porém, outro discípulo seu, não se deixou circuncidar. Mantiveram-se os irmãos discípulos de Cristo em união com os judeus até que Paulo foi perseguido em Jerusalém por levar estrangeiros ao templo. Acusavam-no os judeus de querer substituir a lei mosaica por Jesus Cristo. Foi para expungir-se dessa acusação que o apóstolo Jaques propôs ao apóstolo Paulo fazer-se rapar a cabeça e purificar-se no templo com quatro judeus. que haviam feito voto de se barbearem. “Tomai-os convosco” – disse-lhe Jaques (capítulo 21, Atos dos Apóstolos). – “Purificai-vos com eles, e que todos saibam ser falso o que de vós se diz e que continuais a observar a lei de Moisés”.
Paulo foi criminado também de impiedade e heresia, e seu processo durou longo tempo. Evidencia-se porém das próprias acusações contra ele assacadas que ele viera a Jerusalém para observar os ritos judaicos.
São palavras textuais de Paulo a Festo (capítulo 25 dos Atos): “Não pequei nem contra a lei judaica nem contra o templo”.
Os apóstolos anunciavam Cristo como judeu, observador da lei judaica, enviado de Deus para fazê-la observar.
“A circuncisão é útil” – diz o apóstolo Paulo (capítulo 2, Epístolas aos Romanos) – “se observais a lei. Mas se a violais vossa circuncisão torna-se em prepúcio. Se o incircunciso observa a lei, é como se fosse circunciso. Verdadeiro judeu é o que o é interiormente”.
Ao falar de Jesus em suas Epístolas, não revela esse apóstolo o mistério inefável da consubstancialidade do Crucificado com Deus. “Por ele fomos salvos” – diz (capítulo 5, Epístolas aos Romanos) “da cólera de Deus – Pela graça concedida a um só homem – Jesus Cristo – derramou-se sobre nós o dom divino. Pelo pecado de um só homem, reinou a morte. Por um só homem – Jesus – os justos reinarão.” E no capítulo 8: “Nós, os herdeiros de Deus e os co-herdeiros de Cristo.” No capítulo 16: “A Deus, que é o sábio único, honra e glória por Jesus Cristo. -. – Vós estais em Jesus, e Jesus está em Deus” (1a. Aos Coríntios, cap. 3). E (ibd., cap. 15, v. 27): “A ele tudo está sujeito, que a ele Deus tudo sujeitou”.
Teve-se certa dificuldade em explicar este lanço da Epístola aos Filipinos: “Nada façais por glória vã. Crede mutuamente pela humildade que os outros vos são superiores. Abrigai os mesmos sentimentos que Jesus, que, achando-se em missão de Deus, nem por isso cogitou usurpá-lo a ele se igualando”. Penetra-o e esclarece-lhe o verdadeiro sentido uma carta que nos legaram as igrejas de Viena e Lião, escrita no ano 117, precioso monumento da antigüidade. Louva-se nela a modéstia de alguns fiéis: “Eles não quiseram” – reza – “aureolar-se do título de mártires (por algumas tribulações) a exemplo de Jesus, que, em representação divina, não cogitou usurpar a qualidade de par de Deus”. Assim também diz Orígenes em seu Comentário sobre João: “Mais irradiante foi a grandeza de Jesus humilhando-se do que se tivesse usurpado a paridade com Deus”. Efetivamente, seria visível contra senso a interpretação contrária. Que significaria: “Crede os outros superiores a vós. Imitai Jesus, que não cogitou ser usurpação igualar-se a Deus”? Seria contradizer-se grosseiramente, seria dar um exemplo de grandeza por um exemplo de modéstia. Seria pecar contra o senso comum.
Assim fundava a sabedoria dos apóstolos a igreja nascente. Sabedoria que a disputa sobrevinda entre os apóstolos Pedro, Jaques e João de um lado e Paulo de outro não conseguiu turbar. Essa disputa sobreveio em Antióquia. O apóstolo Pedro, também chamado Cefas, ou ainda Simão Barjone, comia com os gentios conversos e com eles não observava as cerimônias da lei nem a distinção das carnes. Comiam, ele, Barnabé e outros discípulos, indiferentemente carne de porco, carnes afogadas de animais que tinham o pé fendido e que não ruminavam. Havendo chegado, entretanto, numerosos judeus cristãos, com eles S. Pedro retornou à abstinência das carnes proibidas e às cerimônias da lei mosaica.
A medida era prudente. Ele não queria escandalizar os judeus cristãos seus companheiros. Porém Paulo levantou-se contra ele com um pouco de dureza. “Eu lhe resistia” – disse-lhe no rosto – “porque era condenável”. (Epístola aos Gálatas, cap. 2).
Essa querela parece tanto mais extraordinária da parte de S. Paulo quanto a princípio ele fora perseguidor, o que o devia tornar mais modesto, fizera sacrifícios no templo de Jerusalém, circuncidara seu discípulo Timóteo e cumprira os ritos judeus que agora censurava em Cefas. Pretende S. Jerônimo que essa disputa entre Paulo e Cefas era de encomenda. Diz em sua primeira Homilia, tomo 2, que eles fizeram como dois advogados que, para ter mais autoridade sobre os clientes, se escandecem e se aferrotoam no tribunal. E sugere que, pretendendo Pedro Cefas pregar aos judeus e Paulo aos gentios; simularam querelar, Paulo para carear os gentios, Pedro para conquistar os judeus. Sto. Agostinho, porém, não está pelos autos: “Amofina-me” – escreve na Epístola a Jerônimo – “que um tão grande homem se torne patrono do embuste, patronum mendacii”.
De mais a mais, se Pedro ia pregar aos judeus judaizantes e Paulo aos estrangeiros, é muito provável que Pedro não haja vindo a Roma. Nenhuma menção fazem dessa viagem os Atos dos Apóstolos.
Seja como for, foi por volta do ano 60 da nossa era que os cristãos começaram a desquitar-se da comunhão judaica, o que tantas encrencas e perseguições lhes custou de parte das sinagogas de Roma, Grécia, Egito e Ásia. Acusaram-nos seus irmãos judeus de irreligiosidade, ateísmo e excomungavam-nos três vezes nos dias de sabate. Mas Deus protegeu-os em meio ao alude das perseguições.
Pouco a pouco proliferaram igrejas, e antes do fim do primeiro século ultimou-se o divórcio entre judeus e cristãos. O governo romano ignorava essa separação. Nem o senado nem os imperadores tinham olhos para as brigas de um partido insignificante que até então Deus conduzira na obscuridade e só insensivelmente trazia à luz diurna.
Balancemos o estado em que a esse tempo se achava a religião do império romano. Em quase toda a terra gozavam de crédito os mistérios e as expiações. Imperadores, grandes e filósofos, é verdade, não tinham a menor fé em tais mistérios. Mas o povo, que em matéria de religião dita a lei aos grandes, impunha-lhes a necessidade de se conformarem aparentemente com seu culto. Cumpre, para encadeá-lo, arrastar as mesmas cadeias que ele. O próprio Cícero iniciou-se nos mistérios de Eleusina. A concepção monoteica era o principal dogma que se anunciava nessas festas misteriosas e magníficas. Não há negar serem as orações e os hinos que desses mistérios nos restam o que de mais piedoso e admirável possui o paganismo.
O serem os cristãos também monoteístas muito lhes facilitou a conversão dos gentios. Alguns filósofos da seita de Platão bandearam para o cristianismo. Aí está por que foram platônicos todos os padres da igreja dos três primeiros séculos.
O zelo inconsiderado de alguns não conseguiu opor empeços às verdades fundamentais. Reprovou-se a S. Justino, um dos primeiros padres, o haver dito em seu Comentário sobre Isaías que, em reinado de mil anos sobre a terra, os santos gozariam de todos os bens sensuais. Reputou-se-lhe crime o dizer na Apologia do Cristianismo que, tendo Deus criado a terra, deixou-a aos cuidados dos anjos, que, enamorando-se das mulheres, lhes fizeram filhos, que são os demônios.
Condenou-se a Lactâncio e outros padres o terem dado crédito aos oráculos das sibilas. Pretendia ele haver a sibila Eritréia composto estes quatro versos gregos, que traduzo à cortiça da letra: – Com cinco pães e dois peixes – ele alimentará cinco mil homens no deserto. – E, juntando os sobejos, – doze cestos encherá.
Acoimou-se outrossim aos primeiros cristãos a falsa alegação de certos versos acrósticos de uma antiga sibila, os quais começavam todos pelas letras iniciais do nome de Jesus Cristo dispostas na mesma ordem.
Esses escrúpulos anticientíficos de alguns cristãos não impediram a igreja de realizar os progressos que lhe reservava Deus. Primitivamente os cristãos celebravam seus mistérios em casas retiradas, em subterrâneos, de noite. Daí, atesta Minútio Félix, lhes veio o apelido de lucifugaces. Fílon chamava-os gesseanos. Nos quatro primeiros séculos foram mais comumente conhecidos por galileus e nazarenos. Sobre todas essas denominações, todavia, prevaleceu a de cristãos.
Nem a hierarquia nem as práticas foram estabelecidas de uma vez. Os tempos apostólicos foram diferentes dos que se lhes seguiram. Ensina-nos S. Paulo (1a. Aos Coríntios) que estando os irmãos retinidos – circuncisos ou não – só podiam falar dois ou três profetas, e se entrementes alguém tivesse uma revelação, o profeta que tomara a palavra era obrigado a calar-se.
Sobre esse uso da igreja primitiva ainda hoje se fundam muitas comunhões cristãs, em cujas reuniões não há hierarquia. Inicialmente qualquer pessoa tinha o direito de falar na igreja, tirante as mulheres. A santa missa de hoje, que se celebra de manhã, primitivamente celebrava-se à tarde e era a ceia. Esses costumes mudaram à proporção que a igreja se fortaleceu. Sociedade mais extensa exigia evidentemente maior número de regulamentos, e a prudência dos pastores soube conformar-se às diferenças de tempo e lugar.
Abonam S. Jerônimo e Eusébio que, constituídas as igrejas, paulatinamente foram se distinguindo cinco ordens eclesiásticas: os vigilantes. – episcopoi – de onde provêem os bispos; os antigos da sociedade – presbyteroi – padres; os serventes ou diáconos – diaconoi; pistoi – crentes, iniciados, isto é, os batizados, que participavam das ceias dos ágapes; finalmente os catecúmenos e energúmenos, candidatos ao batismo. O hábito era o mesmo para as cinco ordens. Todas deviam manter o celibato, testemunham o livro de Tertuliano dedicado a sua mulher e o exemplo dos apóstolos. Nos três primeiros séculos nenhuma representação, pintada ou esculpida, presidia a suas reuniões. Os cristãos escondiam cuidadosamente seus livros aos gentios, não os confiando senão aos iniciados. Nem aos catecúmenos era permitido recitar a oração dominical.
O que mais caracteristicamente distinguia os cristãos, e que veio até nossos dias, era o poder de espantar os diabos com o sinal da cruz. Conta Orígenes no Tratado contra Celso, número 133, que Antinous, divinizado pelo imperador Adriano, fazia milagres no Egito por força de encantamentos e prestígios. Acrescenta, entretanto, bastar a simples pronunciação do nome de Jesus para os diabos deixarem o corpo dos possessos. Tertuliano vai mais longe e dos fundos da África proclama: “Se vossos deuses não confessarem ser diabos na presença de um vero cristão, de bom grado vos veria derramar o sangue desse cristão”. (Apologética, capítulo 23). Haverá coisa mais evidente?
Efetivamente, Jesus Cristo enviou seus apóstolos a fim de correr os demônios. Dom de expulsá-los tiveram também os judeus, porque, quando Jesus livrou possessos e espaventou os diabos no corpo de uma vara de porcos e operou outras curas que tais, disseram os fariseus: expulsa os demônios pelo poder de Belzebu. – Se é por Belzebu que eu os expulso – retrucou Jesus – por quem os expulsam vossos filhos!” É incontestável que os judeus se gabavam desse poder. Tinham exorcistas e exorcismos. Invocavam o nome do deus de Jacó e de Abraão. Introduziam ervas consagradas no nariz dos demoníacos. (José relata parte dessas cerimônias). Esse poder sobre os diabos, que os judeus perderam, transmitiu-se aos cristãos, que também parecem tê-lo perdido desde algum tempo.
Compreendia o poder de expulsar os demônios também o de desfazer as operações da magia. Porque a magia esteve em voga em todos os tempos e em todas as nações. Todos os padres da igreja a ela se referem. Observa S. Justino (Apologética, livro 3) ser muito comum invocar-se a alma dos mortos, tirando daí um argumento em favor da imortalidade da alma. Lactâncio (Instituições Divinas, livro 7) diz que “Se ousásseis negar a subsistência da alma ao corpo, o mago vos convenceria do contrário fazendo-a aparecer”. Ireneu, Clemente Alexandrino, Tertuliano, o bispo Cipriano, todos afirmam a mesma coisa – Verdade é que hoje tudo mudou e que já não existem magos nem endemoninhados. Mas certamente voltarão à cena quando for da vontade de Deus.
Quando as sociedades cristãs se tornaram mais ou menos numerosas e muitas se levantaram contra o culto do império romano, contra elas agiram rigorosamente os magistrados e sobretudo as perseguiu o povo. Não se perseguia aos judeus, que gozavam de privilégios particulares e se encaramujavam em suas sinagogas. Permitia-se-lhes o exercício de sua religião, como ainda o permite a Roma de hoje. Todos os cultos do império eram tolerados, embora não os adotasse o senado.
Tendo porém os cristãos se declarado inimigos de todos esses cultos, e sobretudo da religião do império, expuseram-se muitas vezes a cruéis provações.
Um dos primeiros e mais célebres mártires foi Inácio, bispo de Antióquia, condenado pelo próprio imperador Trajano, então na Ásia, e por ordens suas transportado a Roma a fim de ser exposto às feras. Isso num tempo em que ainda não era costume trucidar cristãos em Roma. Ignora-se de que tenha sido acusado junto desse imperador, afamado pela demência. Necessário era que Inácio tivesse inimigos figadais. De qualquer forma, conta a história de seu martírio haver-se encontrado em seu coração, gravado em letras de ouro, o nome de Jesus Cristo. Daí apelidarem-se os cristãos em alguns lugares teóforos, como a si próprio se chamava Inácio.
Conserva-se uma carta sua em que pede aos bispos e aos cristãos não se oporem a seu martírio, fosse porque já então eram os fiéis em número suficiente para impedi-lo, fosse porque os houvesse bastante acreditados para obter-lhe a graça. Notável é ter-se consentido que, ao ser trazido a Roma, os cristãos desta cidade fossem recebê-lo. O que prova que se punia nele a pessoa e não a seita.
Não foram continuadas as perseguições. Escreve Orígenes (Tratado contra Celso, livro 3): “Poucos foram os cristãos que morreram por sua religião. Só muito raramente se verificavam execuções dessa natureza”.
Tantos carinhos dispensou Deus a sua igreja que, a despeito de seus desafetos, fez que tivesse cinco concílios (congressos tolerados) no primeiro século, dezesseis no segundo e trinta no terceiro. Por vezes tais congressos foram proibidos, quando a falsa prudência dos magistrados temia que degenerassem em tumultos. Poucos são os processos verbais que nos restam de procônsules e pretores que condenaram cristãos à morte. Só à vista desses documentos poderíamos julgar das acusações contra eles assacadas e de seus suplícios.
Temos um fragmento de Dinís de Alexandria, no qual se relata o extrato da chancelaria de um procônsul do Egito sob o imperador Valeriano. Ei-lo:
Introduzidos na sala de audiência Dinís, Fausto, Máximo, Marcelo e Queremão, disse-lhes o prefeito Emiliano: “Tomastes conhecimento, pelas palestras que convosco tive e por tudo que a respeito tenho escrito, quão bondosos têm sido nossos príncipes em relação a vós. Repito-o: a vós mesmos entregaram vossa conservação e vossa saúde. Vosso destino está em vossas mãos. Uma única coisa vos pedem, coisa que a razão exige a toda pessoa razoável: que adoreis os deuses protetores de seu império e renegueis a esse culto contrário à natureza e ao bom senso”.
Respondeu Dinís: “Nem todos os homens têm os mesmos deuses. Cada um adora os que julga verdadeiramente serem-no.”
Replicou o prefeito Emiliano: “Vejo que sois ingratos e que abusais da bondade dos imperadores. Pois bem: não continuareis nesta cidade. Mandá-los-ei para Cefro, nos confins da Líbia, conforme ordem que recebí dos nossos imperadores. Não penseis reeditar lá vossas reuniões nem orar nesses lugares a que chamais cemitérios: tal vos é terminantemente vedado, e não o permitirei a ninguém”.
Nada mais possivelmente verdadeiro que esse processo verbal. Evidencia-se que houve tempo em que eram proibidas as reuniões dos cristãos, assim como entre nós se interdiz aos calvinistas congregarem-se em Languedoc. Chegamos até, uma vez ou outra, a fazer enforcar e rodar ministros e pregadores que promoveram congressos a despeito da lei. Na Inglaterra e Irlanda, igualmente, proíbem-se as reuniões de católicos romanos, e ocasiões houve em que os delinqüentes foram condenados à morte.
Mau grado essas interdições das leis romanas, Deus inspirou a muitos imperadores a indulgência para com os cristãos. O próprio Diocleciano, que os ignorantes têm como perseguidor, Diocleciano, cujo primeiro ano de reinado ainda se enevoa na idade dos mártires, foi durante muitos anos protetor declarado do cristianismo, a ponto de numerosos cristãos deterem dos principais cargos ao pé de sua pessoa. Chegou a tolerar que em Nicomedia, sua residência, se elevasse uma igreja defronte a seu palácio.
Infelizmente prevenido contra os cristãos, de quem temia viesse algum dia a se lamentar, o césar Galério fez Diocleciano destruir a catedral de Nicomédia. Um cristão mais piedoso que reportado fez em pedaços o édito do imperador, acendendo a famosa perseguição que condenou à morte mais de duzentas pessoas em toda a extensão do império romano, sem contar as que, contra as formas jurídicas, sacrificou a fúria do populacho, sempre fanático e sempre bárbaro.
Tão copioso é o rol dos mártires que seria conveniente cuidar de não baralhar a história dos verdadeiros confessores da nossa santa religião com o perigoso emaranhado de fábulas e falsos mártires.
O beneditino dom Ruinart, por exemplo, homem aliás de tanta instrução quanto respeitável e zeloso, devia ter escalrachado com mais discrição seus Atos Sinceros. Não é só escabichar um manuscrito em meio à papelada do abade de Saint-Benoît-sur-Loire ou de um convento de celestinos de Paris, conforme a um manuscrito dos fuldenses, e decretá-lo autêntico. É necessário que seja antigo, escrito por contemporâneos e, sobretudo, que estampe o selo da verdade.
Exemplo: o caso do jovem Romano, que a história situa no ano 303. Romano obtivera, em Antióquia, o perdão de Diocleciano. Sentencia o sr. Ruinart, no entanto, ter sido ele condenado ao fogo pelo juiz Asclepíades. Judeus presentes ao espetáculo haveriam mofado do jovem S. Romano, acoimando aos cristãos o abandoná-los seu Deus à tortura do fogo, ele que salvara ao forno Sidraque, Misaque e Abdenago. Presto se levantaria, no mais sereno do tempo, uma tempestade que apagaria o fogo. Então o juiz teria ordenado que se cortasse a língua ao jovem Romano. Encontrando-se ali o primeiro médico do imperador, oficiosamente desempenharia a função de algoz, cortando-lhe cerce a língua. De improviso o jovem, que era tartamudo, começaria a parolar muito a prazer. Assombrando-se o imperador de que se falasse tão bem sem língua, o médico, para reiterar a experiência, cortaria a língua ao primeiro passante que visse, o qual morreria instantaneamente.
Eusébio, de quem o beneditino Ruinart extraiu esse conto, devia respeitar um pouco mais os verdadeiros milagres operados no Velho e Novo Testamento (que ninguém terá o desplante de pôr em dúvida) e não enxertar-lhes histórias tão suspeitas, que podem escandalizar os simples.
Essa última perseguição não se estendeu a todo o império. Havia então na Inglaterra uns brotos de cristianismo, os quais se eclipsaram incontinenti para logo pôr a cabecinha de fora sob os reis saxões. Inçadas de cristãos estavam as Gálias meridionais e a Espanha. Muito os protegeu em todas essas províncias o césar Constâncio Cloro. Teve até uma concubina cristã: a mãe de Constantino, conhecida por Sta. Helena. Porque o fato é que nunca se provou que fossem casados, e efetivamente, ao esposar a filha de Maximiano Hércules, em 292, Constâncio recambiou-a. Helena, contudo, conservara sobre ele grande ascendência, inspirando-lhe profunda afeição a nossa santa religião.
Preparou a divina Providência, por vias que mais parecem humanas que divinas, o triunfo de sua igreja. Constâncio Cloro morreu no ano 306, em York, Inglaterra, quando os rebentos que tivera da filha de um césar mal se haviam emancipado dos cueiros, não podendo portanto candidatar-se ao trono. Fez-se Constantino eleger em York por cinco ou seis mil soldados, alemães, gauleses e ingleses na maior parte. Nada augurava que semelhante eleição, realizada sem consentimento de Roma, do senado e dos exércitos, pudesse prevalecer. Deus, não obstante, deu-lhe a vitória sobre Maxêncio, eleito em Roma, e por fim desembaraçou-o de todos os rivais. De tudo isso depreende-se que não o tornara indigno dos favores do céu o haver assassinado todos aqueles que dele se aproximaram, a própria mulher e o próprio filho.
Impossível duvidar do que a respeito relata Zósimo. Diz que, mordido de remorsos depois de tantos crimes, Constantino perguntou aos pontífices do império se ainda havia expiação possível para ele, ao que lhe responderam não conhecer. Verdade é que também não a houvera para Nero, que não ousara assistir aos sacros mistérios na Grécia. Estavam em voga, entretanto, os taurobólios, e seria difícil crer que um imperador que tudo podia não encontrasse um padre que lhe concedesse sacrifícios expiatórios. Menos crível ainda será que, absorvido pela guerra, sua ambição, seus projetos e rodeado de bajuladores, tivesse Constantino tempo para sentir remorsos. Acrescenta Zósimo que um padre egípcio vindo da Espanha, que tinha acesso a sua porta, prometeu-lhe a expiação de todos os seus crimes dentro da religião cristã. Desconfia-se tratar-se de Ózio, bispo de Córdova.
Seja como for, Constantino comungou com os cristãos, se bem nunca tivesse sido catecúmeno, e reservou o batismo para a hora da morte. Mandou construir a cidade de Constantinopla, que se tornou centro do império e da religião cristã. Então a igreja tomou uma forma augusta.
Note-se que desde o ano 314, antes de Constantino fixar residência em sua nova cidade, os que haviam perseguido os cristãos foram por estes punidos de suas crueldades. Os cristãos lançaram a mulher de Maximiano ao Oronte, degolaram todos os seus parentes e trucidaram no Egito e Palestina os magistrados que mais abertamente tinham se declarado contra o cristianismo. Identificadas a viúva e a filha de Diocleciano, que se haviam refugiado em Tessalônica, atiraram-nas ao mar. Seria de desejar dessem os cristãos menos ouvidos ao espírito de vingança. Mas quis Deus, que castiga segundo a sua justiça, que as mãos dos cristãos se tingissem do sangue de seus perseguidores apenas as tivessem desvencilhadas.
Convocou, reuniu Constantino em Nicéia, em frente a Constantinopla, o primeiro concílio ecumênico, presidido por Ózio. Lá se decidiu a magna questão que agitava a igreja, referente à divindade de Jesus Cristo.
Uns esposavam a opinião de Orígenes, que diz no sexto capítulo contra Celso: “Endereçamos as nossas preces a Deus por Jesus, que está entre as naturezas criadas e a natureza incriada, que nos transmite a graça de seu pai e, na qualidade de pontífice nosso, depõe a Deus as nossas orações”. Estribavam-se outrossim em diversos passos de S. Paulo, alguns dos quais transcrevemos páginas atrás. Sobretudo arrimavam-se a estas palavras de Cristo: “Meu pai é maior que eu”. Viam em Jesus o primogênito da criação, a mais pura emanação do Ser Supremo, mas não Deus precisamente.
Outros, ortodoxos, traziam à luz argumentos mais conformes à divindade eterna de Jesus, como este: “Meu pai e eu somos a mesma coisa” Palavras que seus adversários interpretavam como significando: “Meu pai e eu temos o mesmo desígnio, a mesma vontade. Não tenho outros desejos senão os de meu pai”. Capitaneavam os ortodoxos primeiro Alexandre, bispo de Alexandria, e depois Atanásio. No partido contrário alinhavam-se Eusébio, bispo de Nicomedia, o padre Ario e mais dezessete bispos e numerosos padres. Logo de saída azedou-se a disputa por haver Alexandre tratado de anticristos seus adversários.
Enfim, ao cabo de muita discussão assim se pronunciou o Espírito Santo no concílio pela boca de duzentos e noventa e nove bispos contra dezoito: “Jesus é o filho único de Deus, gerado do Pai, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, luz da luz, vero Deus de vero Deus, consubstancial ao Pai. Cremos igualmente no Espírito Santo, etc.” Foi esta a fórmula do concílio. Vê-se pelo exemplo o quanto prevaleciam os bispos sobre os simples padres. Dois mil membros da segunda ordem perfilhavam o parecer de Ario, segundo relação de dois patriarcas de Alexandria que escreveram a crônica dessa cidade em árabe. Ano foi exilado por Constantino. Logo o foi também Atanásio, e Ario de novo chamado a Constantinopla. Porém tão fervorosamente pediu Macário a Deus que o fizesse morrer antes de entrar na catedral que foi atendido. Faleceu Ario a caminho da igreja, no ano 330. Em 337 finou-se Constantino. Entregou seu testamento a um padre ariano e morreu nos braços do chefe dos arianos, Eusébio, bispo de Nicomedia, só se batizando à hora da morte. Deixou a igreja triunfante, embora dividida.
Tremenda guerra estalou entre os partidários de Atanásio e os de Eusébio, e o chamado arianismo vigorou longo tempo em todas as províncias do império.
Juliano o filósofo, cognominado o Apóstata, tentou pôr cobro a tais divisões, porém em vão.
O segundo concílio geral reuniu-se em Constantinopla, em 381. Esclareceu-se então o que o concílio de Nicéia não julgara a propósito dizer sobre o Espírito Santo, e acrescentou-se à fórmula niceana que “O Espírito Santo é senhor vivificante procedente do Pai, e adorado e glorificado como o Pai e o Filho”.
Só no século IX estatuiu gradativamente a igreja latina proceder o Espírito Santo do Pai e do Filho.
Em 431 o terceiro concílio geral realizado em Éfeso resolveu que Maria foi de fato mãe de Deus, e que Jesus tinha duas naturezas e uma pessoa. Querendo Nestório, bispo de Constantinopla, que a Santa Virgem fosse chamada mãe de Cristo, declarou-o judas o concílio.
Confirmou a dualidade de naturezas de Cristo o concílio de Calcedônia.
Refiro-me a lume de palha aos séculos subsequentes por sobejamente conhecidos. Infelizmente todas essas disputas eram pomo de guerras, de forma que volta e meia a igreja se via obrigada a combater. Aprouve a Deus, a fim de provar a paciência dos fiéis, que no século IX gregos e latinos rompessem definitivamente. Aprouve-lhe ainda que se formassem no Ocidente vinte e nove cismas sangrentos para o púlpito de Roma.
Entretanto quase toda a igreja grega e toda a igreja da África foram avassaladas pelos árabes, em seguida pelos turcos, os quais erigiram a igreja de Mafoma por sobre as ruínas da de Cristo. A igreja romana subsistiu, porém, manchada de sangue por mais de seiscentos anos de discórdia entre o império do Oriente e o sacerdócio. Tornaram-na até mais poderosa essas dissensões. Bispos e abades na Alemanha transformaram-se em príncipes, e paulatinamente os papas investiram-se de domínio absoluto em Roma e numa região de cem léguas. Assim experimentou Deus sua igreja por humilhações, tumultos e esplendor.
Ao descambar do século XVI a igreja latina perdeu metade da Alemanha, a Dinamarca, Suécia, Inglaterra, Escócia, Irlanda, Suíça e Holanda. Territorialmente essas perdas foram vantajosamente compensadas pelas conquistas espanholas na América. Não, porém, quanto ao número de súditos.
Para compensar o desmembramento da Ásia Menor, Síria, Grécia, Egito, África, Rússia e as outras nações de que falamos, parece que a Divina Providência lhe reservava o Japão, Siam, Índia e China. S. Francisco Xavier, que levou o Santo Evangelho às Índias Orientais e ao Japão, quando lá foram em busca de mercadorias os portugueses, fez inúmeros milagres, atestados todos pelos RR. PP. jesuítas. Dizem até que ressuscitou nove mortos. Na Flor dos Santos abate o R. P. Ribadeneira esse número para quatro, o que aliás já é bastante. Quis a Providência que em menos de cem anos milhares de católicos romanos enxameassem as ilhas do Japão. Porém o diabo semeou seu joio em meio da boa semente. Tramaram os cristãos uma conjuração acompanhada de uma guerra civil, em que foram totalmente exterminados (1638). Os japoneses fecharam as portas do país a todos os estrangeiros, salvo aos holandeses, em quem viam mercadores e não cristãos, mas que ainda assim foram obrigados a espezinhar a cruz para obter permissão de vender suas mercancias na prisão onde os trancafiaram logo que puseram pé em Nagasaqui.
Recentemente a China proscreveu a religião católica, apostólica e romana, bem que com menos crueldade. Em verdade os jesuítas não ressuscitaram mortos na corte de Pequim. Contentaram-se em ensinar astronomia, fundir canhões e ser mandarins. Suas intempestivas contendas com dominicanos e outros de tal forma escandalizaram o grande imperador Iong-tching que este príncipe, que era a justiça e a bondade em pessoa, teve a cegueira de proibir em seu estado o ensino da nossa santa religião, no seio da qual nem os próprios missionários viviam em paz. Expulsou-os paternalmente, fornecendo-lhes meios de subsistência e veículos até os confins de seu império.
Toda a Ásia, toda a África, metade da Europa, todas as colônias inglesas e holandesas da América, todas as tribos americanas não domadas, todas as terras austrais, que constituem um quinto do globo, permanecem presa do demônio, para provar esta santa sentença: “Muitos são os chamados, mas poucos os eleitos”. Se há na terra um bilhão e seiscentos milhões de homens, como pretendem os entendidos, cerca de sessenta milhões pertencerão à santa igreja romana católica universal: ou seja, mais da vigésima sexta parte da população do mundo conhecido.
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