sábado, 15 de agosto de 2009

Crítica da Razão Pura

INTRODUÇÃO
I – Da Distinção Entre o Conhecimento Puro e o Empírico

Não se pode duvidar de que todos os nossos conhecimentos começam com a experiência, por­que, com efeito, como haveria de exercitar-se a fa­culdade de se conhecer, se não fosse pelos objetos que, excitando os nossos sentidos, de uma parte, produzem por si mesmos representações, e de ou­tra parte, impulsionam a nossa inteligência a compará-los entre si, a reuni-los ou separá-los, e deste modo à elaboração da matéria informe das impressões sensíveis para esse conhecimento das coisas que se denomina experiência?
No tempo, pois, nenhum conhecimento pre­cede a experiência, todos começam por ela.
Mas se é verdade que os conhecimentos deri­vam da experiência, alguns há, no entanto, que não têm essa origem exclusiva, pois poderemos admitir que o nosso conhecimento empírico seja um composto daquilo que recebemos das impres­sões e daquilo que a nossa faculdade cognoscitiva lhe adiciona (estimulada somente pelas impres­sões dos sentidos); aditamento que propria­mente não distinguimos senão mediante uma longa prática que nos habilite a separar esses dois elementos.
Surge desse modo uma questão que não se pode resolver à primeira vista: será possível um conhecimento independente da experiência e das impressões dos sentidos?
Tais conhecimentos são denominados “a prio­ri”, e distintos dos empíricos, cuja origem e a posteriori”, isto é, da experiência.
Aquela expressão, no entanto, não abrange todo o significado da questão proposta, porquanto há conhecimentos que derivam indiretamente da experiência, isto é, de uma regra geral obtida pela experiência, e que no entanto não podem ser ta­chados de conhecimentos “a priori”.
Assim, se alguém escava os alicerces de uma casa, “a priori” poderá esperar que ela desabe, sem precisar observar a experiência da sua queda, pois, praticamente, já sabe que todo corpo aban­donado no ar sem sustentação cai ao impulso da gravidade. Assim esse conhecimento é nitida­mente empírico.
Consideraremos, portanto, conhecimento “a priori”, todo aquele que seja adquirido indepen­dentemente de qualquer experiência. A ele se opõem os opostos aos empíricos, isto é, àqueles que só o são “a posteriori”, quer dizer, por meio da experiência.
Entenderemos, pois, daqui por diante, por co­nhecimento “a priori”, todos aqueles que são abso­lutamente independentes da experiência; eles são opostos aos empíricos, isto é, àqueles que só são possíveis mediante a experiência.
Os conhecimentos “a priori” ainda podem dividir-se em puros e impuros. Denomina-se co­nhecimento “a priori” puro ao que carece comple­tamente de qualquer empirismo.
Assim, p. ex., “toda mudança tem uma cau­sa”, é um princípio “a priori”, mas impuro, porque o conceito de mudança só pode formar-se extraído da experiência.

II – Achamo-nos de Posse de Certos Co­nhecimentos “A Priori” e o Próprio Senso Comum não os Dispensa

Trata-se agora de descobrir o sinal pelo qual o conhecimento empírico se distingue do puro. A experiência nos mostra que uma coisa é desta ou daquela maneira, silenciando sobre a possibilidade de ser diferente.
Digamos, pois, primeiro: se encontramos uma proposição que tem que ser pensada com caráter de necessidade, tal proposição é um juízo “a prio­ri".
Se, além disso, não é derivada e só se concebe como valendo por si mesma como necessária, será então absolutamente “a priori”.
Segundo: a experiência não fornece nunca juízos com uma universalidade verdadeira e rigo­rosa, mas apenas com uma generalidade suposta e relativa (por indução), o que. propriamente quer dizer que não se observou até agora uma exceção a determinadas leis. Um juízo, pois, pensado com rigorosa universalidade, quer dizer, que não ad­mite exceção alguma, não se deriva da experiên­cia e sem valor absoluto “a priori”.
Portanto, a universalidade empírica nada mais é do que uma extensão arbitrária de validade, pois se passa de uma validade que corresponde à maior parte dos casos, ao que corresponde a todos eles, como p. ex. nesta proposição: “Todos os corpos são pesados.”
Pelo contrário, quando uma rigorosa universa­lidade é essencial em um juízo, esta universali­dade indica uma fonte especial de conhecimento, quer dizer, uma faculdade de conhecer “a priori”. A necessidade e a precisa universalidade são os caracteres evidentes de um conhecimento “a prio­ri”, e estão indissoluvelmente unidos. Mas como na prática é mais fácil mostrar a limitação empí­rica de um conhecimento do que a contingência nos juízos, e como também é mais evidente a uni­versalidade ilimitada do que a necessidade absolu­ta, convém servir-se separadamente desses dois critérios, pois cada um é por si mesmo infalivel.
Ora, é fácil demonstrar que no conhecimento humano existem realmente juízos de um valor ne­cessário, e na mais rigorosa significação univer­sal; por conseguinte, juízos puros, “a priori”. Se se quer um exemplo da própria ciência, basta reparar em todas as proposições da Matemática. Se se quer outro tomado do bom senso, pode bastar a proposição de que cada mudança tem uma causa.
Neste último exemplo, o conceito de causa contém de tal modo o de necessidade de enlace com um efeito e a rigorosa generalidade da lei, que desapareceria por completo se, como o fez Hume, quiséssemos derivá-lo da freqüente asso­ciação do que segue com o que precede e do hábito (e por isso de uma necessidade simplesmente sub­jetiva) de ligar certas representações.
Também se poderia, sem recorrer a esses exemplos, para provar a existência de princípios “a priori” em nosso conhecimento, demonstrar que são indispensáveis para a possibilidade da mesma experiência, sendo portanto uma demonstração “a priori".
Porque, onde basearia a experiência a sua cer­teza se todas as regras que empregasse fossem sempre empíricas e contingentes?
Assim, os que possuem esse caráter dificil­mente são aceitos como primeiros princípios.
Basta-nos haver manifestado aqui o uso puro de nossa faculdade de conhecer de um modo efe­tivo e os caracteres que lhe são próprios.
Não é só nos juízos, pois também nos concei­tos encontramos uma origem “apriorística” de al­guns.
Realmente, subtrai do vosso conceito empírico de um corpo tudo quanto possui de empírico: a cor, a dureza, a moleza, o peso, e a própria impe­netrabilidade, e ficará o espaço que (ora vazio) ele ocupava e que não pode ser suprimido.
Quando separais de alguns conceitos empíri­cos de um objeto, corpóreo ou não, todas as pro­priedades que a experiência ministra, não podeis no entanto privá-lo daquela, mediante a qual é pensada como substância, ou aderente a uma substância (se bem que esse conceito de substân­cia contenha mais determinações que o de um ob­jeto em geral).
Deveis, pois, reconhecer que a necessidade com que este conceito se impõe dá-se em virtude da sua existência, “a priori” na vossa faculdade de conhecer.

III – A Filosofia Necessita de Uma Ciên­cia que Determine a Possibilidade, os Prin­cípios e a Extensão de Todos os Conheci­mentos “A Priori”

Há uma coisa ainda mais importante que o que precede: certos conhecimentos por meio de conceitos, cujos objetos correspondentes não po­dem ser fornecidos pela experiência, emancipam-se dela e parece que estendem o círculo de nossos juízos além dos seus limites.
Precisamente nesses conhecimentos, que transcendem ao mundo sensível, aos quais a expe­riência não pode servir de guia nem de retificação, consistem as investigações de nossa razão, inves­tigações que por sua importância nos parecem su­periores, e por seu fim muito mais sublimes a tudo quanto a experiência pode apreender no mundo dos fenômenos; investigações tão importantes que, abandoná-las por incapacidade, revela pouco apreço ou indiferença, razão pela qual tudo inten­tamos para as fazer, ainda que incidindo em erro.
Esses inevitáveis temas da razão pura são: Deus, liberdade e imortalidade. A ciência cujo fim e processos tendem à resolução dessas questões denomina-se Metafísica. Sua marcha, é, no princípio, dogmática; quer dizer, ela enceta confiadamente o seu trabalho sem ter provas na potência ou impotência de nossa razão para tão grande em­presa.
Parecia, no entanto, natural que, ao abando­nar o terreno da experiência, não construíssem imediatamente um edificio com conhecimentos adquiridos sem saber como, ou sobre o crédito de princípios cuja origem ignoramos. E sem haver assegurado, antes de tudo, mediante cuidadosas investigações, acerca da solidez do seu fundamen­to. Pelo menos, antes de o construir, deveriam ter apresentado estas questões: Como pode a inteli­gência chegar aos conhecimentos “a priori”? Que extensão, legitimidade e valor podem ter?
Com efeito, nada seria mais natural, se esta palavra significa o que conveniente e racionalmente deve suceder; mas se por ela entendemos o que de ordinário se faz, nada é mais natural que dar ao olvido essas questões, pois desfrutando de certeza uma parte de nossos conhecimentos, a Matemática, concebe-se a fagueira esperança de que os demais cheguem ao mesmo ponto.
Por outra parte, abandonando o círculo da ex­periência, podem estar seguros de não ser contra-ditados por ela. O desejo de estender os nossos co­nhecimentos é tão grande que só detém seus pas­sos quando tropeça em uma contradição claríssi­ma; mas as ficções do pensamento, se estão arru­madas com certo cuidado, podem evitar tais trope­ços, ainda que nunca deixem de ser ficções.
As matemáticas fornecem um brilhante exemplo do que poderíamos fazer independente­mente da experiência, nos conhecimentos “a prio­ri”. É verdade que não se ocupam senão de objetos e conhecimentos que podem ser representados pela intuição; mas esta circunstância facilmente se pode reparar, porque a intuição de que se trata pode dar-se “a priori” por si mesma, e por conse­guinte, é apenas distinguível de um simples con­ceito puro.
A propensão a estender os conhecimentos, im­buida com esta prova do poder da razão, não vê limites para o seu desenvolvimento. A pomba li­geira agitando o ar com seu livre vôo, cuja resis­tência nota, poderia imaginar que o seu vôo seria mais fácil no vácuo.
Assim, Platão, abandonando o mundo sensível que encerra a inteligência em limites tão estreitos, lançou-se nas asas das idéias pelo espaço vazio do entendimento puro, sem advertir que com os seus esforços nada adiantava, faltando-lhe ponto de apoio onde manter-se e segurar-se para aplicar forças na esfera própria da inteligência.
Mas tal é geralmente a marcha da razão hu­mana na especulação; termina o mais breve pos­sível a sua obra, e não procura, até muito tempo depois, indagar o fundamento em que repousa.
Uma vez chegado a esse ponto, encontra toda sorte de pretextos para consolar-se dessa falta de solidez, ou, em último termo, repele voluntaria­mente a perigosa e tardia prova. Mas o que nos livra de todo cuidado e receio durante a constru­ção de nossa obra, e ainda nos engana por sua aparente solidez, é que uma grande parte, quiçá a maior, do trabalho de nossa razão, consiste na análise de conceitos que já temos formados sobre os objetos.
Isso nos dá uma infinidade de conhecimentos que, se bem sejam apenas esclarecimentos e ex­plicações daquilo que foi pensado em nossos con­ceitos (ainda que de maneira confusa), estimam-se, todavia, como novas luzes (Einsicheter), pelo menos, quanto à sua forma, por mais que não aumentem a matéria nem o conteúdo de nossos conceitos, pois simplesmente os preparam e orde­nam.
Como esse procedimento dá um conhecimento real “a priori” que segue uma marcha segura e útil, enganada e iludida a razão, sem o notar, en­tra em afirmações de uma natureza completa­mente distinta e totalmente estranha ao conceito dado “a priori” e sem que saiba como as conse­guiu, nem se lhe ocorra fazer-se semelhante per­gunta.
Por isso, pois, tratarei desde o começo da dife­rença que existe entre essas duas espécies de co­nhecimentos.

IV – Diferença Entre o Juízo Analítico e o Sintético

Em todos os juízos em que se concebe a rela­ção de um sujeito com um predicado (conside­rando só os juízos afirmativos, pois nos negativos é mais fácil fazer, depois, a aplicação), esta rela­ção é possível de dois modos: ou o predicado B pertence ao sujeito A como algo nele contido (de um modo tácito), ou B é completamente estranho ao conceito A, se bem se ache enlaçado com ele.
No primeiro caso chamo ao juízo analítico, no se­gundo, sintético. Os juízos analíticos (afirmativos) são, pois, aqueles em que o enlace do sujeito com o predicado se concebe por identidade; aqueles, ao contrário, cujo enlace é sem identidade, devem chamar-se juízos sintéticos. Poder-se-ia também denominar os primeiros de juízos explicativos, e aos segundos, de juízos extensivos, pelo motivo de que aqueles nada aditam ao sujeito pelo atributo, apenas decompondo o sujeito em conceitos parciais compreendidos e concebidos (ainda que taci­tamente) no mesmo, enquanto que, pelo contrário, os últimos acrescentam ao conceito do sujeito um predicado que não era de modo algum pensado naquele e que não se obteria por nenhuma decom­posição.
Quando digo p. ex.: “todos os corpos são ex­tensos”, formulo um juízo analítico, porque não tenho que sair do conceito de corpo para achar unida a ele a extensão, e só tenho que decompô-lo, quer dizer, só necessito tornar-me cônscio da di­versidade que pensamos sempre em dito conceito para encontrar o predicado; é portanto um juízo analítico. Pelo contrário, quando digo: “todos os corpos são pesados”, já o predicado é algo comple­tamente distinto do que em geral penso no simples conceito de corpo. A adição de tal atributo dá, pois, um juízo sintético.
Os juízos da experiência, como tais, são todos sintéticos.
Porque seria absurdo fundar um juízo analí­tico na experiência, pois para formá-lo não preciso sair do meu conceito e por conseguinte não me é necessário o testemunho da experiência. P. ex.: “um corpo é extenso” é uma proposição “a priori” e não um juízo da experiência porque antes de dirigir-me à experiência, tenho já em meu con­ceito todas as condições do juízo; só me resta, se­gundo o princípio de contradição, tirar o predicado do sujeito e ao mesmo tempo chegar a ter cons­ciência da necessidade do juízo, necessidade que jamais a experiência poderá subministrar-me.
Pelo contrário, embora eu não tire do conceito de corpo em geral o predicado pesado, indica, sem embargo, aquele conceito um objetivo da expe­riência, uma parte da experiência total, à qual posso ainda aditar outra parte da mesma como pertencente a ela.
Posso reconhecer antes, analiticamente, o conceito de corpo pelas propriedades da extensão, impenetrabilidade, forma etc., etc., as quais são todas pensadas neste conceito. Mas se amplio meu conhecimento e observo a experiência que me proporcionou o conceito de corpo, encontro enla­çada constantemente com todas as anteriores pro­priedades e de gravidade (o peso), que adito sinte­ticamente, como predicado, àquele conceito.

V – Os Juízos Matemáticos São Todos Sintéticos

Esta proposição parece ter escapado até hoje às indagações dos que analisam a razão humana, e quase estão opostas às suas conjeturas, apesar da sua incontrovertível certeza e da suma impor­tância de suas conseqüências.
Como se observa que os raciocínios dos mate­máticos procediam todos dos princípios de contradi­ção (exigido pela natureza de toda certeza apodíti­ca), acreditava-se também que os princípios ti­nham sido reconhecidos em virtude do mesmo processo: no que se enganaram, porque se indubi­tavelmente uma proposição sintética pode ser co­nhecida segundo o princípio de contradição, isto não é possível dentro de si mesma, senão supondo outra proposição sintética de que possa ser dedu­zida.
Deve notar-se, antes de tudo, que as proposi­ções propriamente matemáticas são sempre juízos “a priori” e não juízos empíricos, porque implicam necessidade, que não se pode obter pela experiên­cia.
Mas, se não se quer conceder isto, limito mi­nha proposição às matemáticas puras, cujo con­ceito traz consigo o não conter conhecimentos em­píricos, mas tão-somente “a priori”.
I – Poder-se-ia em verdade crer, à primeira vista, que a proposição 7 + 5 = 12 é puramente analítica, resultante, segundo o princípio de con­tradição, do conceito de uma soma de sete e cinco. Mas se a considerarmos com mais atenção, acha­remos que o conceito de soma de sete e cinco não contém mais do que a união dos dois números em um só, o que não faz pensar qual seja esse nú­mero único que compreenda aos outros dois. O conceito de 12 não é de modo algum percebido só pelo pensamento da união de cinco e sete, e posso decompor todo meu conceito dessa soma tanto quanto quiser, sem que por isso encontre o número 12.
É preciso, pois, ultrapassar esse conceito recorrendo-se à intuição correspondente a um dos dois números, quiçá aos 5 dedos da mão ou a cinco pontos (como faz Segner em sua Aritméti­ca), e aditar sucessivamente ao conceito sete as cinco unidades dadas na intuição.
Com efeito, tomo primeiramente o número se­te, e auxiliando-me de meus dedos como intuição para o conceito de 5, acrescento sucessivamente ao número 7 as unidades que tive de reunir para formar o 5, e assim vejo surgir o número 12.
Pela adição de sete e cinco tenho idéia desta soma 7 + 5, é verdade; mas não que esta seja igual ao número 12. A proposição aritmética é, pois, sempre sintética: o que se compreende ainda mais claramente se se tomam números maiores, pois então é evidente que, por mais que volvamos e coloquemos nosso conceito quanto quisermos, nunca poderemos achar a soma mediante a sim­ples decomposição de nossos conceitos e sem o auxilio da intuição.
Tampouco é analítico um princípio qualquer de Geometria pura.
É uma proposição sintética que a linha reta, entre dois pontos é a mais curta, porque meu con­ceito de reta não contém nada que seja quantida­de, senão só qualidade.
O conceito de mais curta é completamente aditado e não pode provir de modo algum da de­composição do conceito de linha reta. É preciso, pois, recorrer-se aqui à intuição, único modo para que seja possível a síntese.
Algumas poucas proposições fundamentais, que os geômetras pressupõem, são realmente ana­líticas e se apóiam no princípio de contradição; mas também é verdade que só servem, como pro­posições idênticas, ao encadeamento do método e não como princípios, tais como, p. ex., a = a, o todo é igual a si mesmo: ou (a + b) < “a”, o todo é maior do que a parte.
E, sem embargo, estes mesmos axiomas ainda que valham como simples conceitos, são admitidos nas matemáticas somente porque podem ser re­presentados em intuição.
A ambigüidade de expressão é que geralmente nos faz crer que o predicado de tais juízos apodíti­cos existe já em nossos conceitos, e que, conse­guintemente, é analítico o juízo.
A um conceito dado temos que aditar certo predicado, e esta necessidade pertence já aos con­ceitos. Mas a questão não é o que devemos aditar com o pensamento a um conceito dado, senão o que realmente pensamos nele, ainda que de um modo obscuro.
Vemos, pois, que o predicado se une necessa­riamente ao conceito, não como concebido nele, senão mediante uma intuição que a ele deve unir-se.
II – A ciência da natureza (Física) contém como princípios, juízos sintéticos “a priori”. Só tomarei como exemplos estas duas proposições: em todas as mudanças do mundo corpóreo a quan­fidade de matéria permanece sempre a mesma, ou, em todas as comunicações de movimento a ação e reação devem ser sempre iguais.
Em ambos vemos, não só a necessidade e, por conseguinte, sua origem “a priori”, senão que são proposições sintéticas.
Porque no conceito de matéria não penso em sua permanência, mas unicamente em sua pre­sença no espaço que ocupa, e, portanto, vou além do conceito de matéria para atribuir-lhe algo “a priori” que não havia concebido nele.
A proposição não é, pois, concebida analítica, senão sinteticamente ainda que “a priori”, e as­sim sucede com as restantes proposições da parte pura da Física.
III – Também devem haver conhecimentos sintéticos “a priori” na Metafísica, ainda que só a consideraremos como uma ciência em ensaio; mas que, não obstante, torna indispensável a natureza da razão humana.
A Metafísica não se ocupa unicamente em analisar os conceitos das coisas que nós formamos a priori”, e, por conseguinte, em explicações ana­líticas, senão que por ela queremos estender nos­sos conhecimentos “a priori”, e para o efeito nos valemos de princípios que aos conceitos dados adi­tam algo que não estava compreendido neles, e mediante os juízos sintéticos “a priori” nos afas­tamos tanto, que a experiência não pode seguir­-nos, p. ex., na proposição: o mundo deve ter um primeiro princípio etc., etc.
Assim, pois, a Metafísica consiste, pelo menos segundo seu fim, em proposições puramente sinté­ticas “a priori”.

VI – Problema Geral da Razão Pura

Muito se adiantou com haver podido trazer à forma de um só problema uma infinidade de ques­tões: Com isso, não só se facilita o próprio trabalho determinando-o com precisão, como também se facilita o exame para outro que queira verificar se cumprimos ou não o nosso desígnio. O verdadeiro problema da razão pura contém-se nesta pergun­ta: como são possíveis os juízos sintéticos “a prio­ri"? Se a Metafísica permaneceu até agora em um estado vago de incerteza e contradição, deve atribuir-se unicamente a que esse problema assim como também a diferença entre o juízo analítico e o sintético, não se tinham apresentado antes ao pensamento.
A vida ou morte da Metafísica depende da so­lução desse problema, ou da demonstração de que é impossível resolvê-lo. David Hume é, de todos os filósofos, o que mais se aproximou desse proble­ma, mas esteve longe de o determinar suficiente­mente e não o pensou em toda a sua originalidade; detendo-se só ante o princípio sintético da relação de causa e efeito (“principium causalitatis”), acre­ditou poder deduzir que o tal princípio é absoluta­mente impossível “a priori”, e, segundo as suas conclusões, tudo o que denominamos Metafísica descansaria sobre uma simples opinião de um pre­tendido conhecimento racional, que no fato nasce simplesmente da experiência e que recebe, do há­bito, certo aspecto de necessidade.
Esta afirmação, destruidora de toda a Filosofia pura, não seria nunca emitida, caso o seu autor houvesse abordado em toda a sua generalidade esse problema, porque então teria compreendido que, segundo o seu argumento, tampouco pode­riam existir as matemáticas puras, pois elas con­têm certamente princípios sintéticos “a priori”, e seu bom senso teria retrocedido ante semelhante asserto.
Na resolução do precedente problema está também compreendida ao mesmo tempo a possibi­lidade do emprego da razão pura na fundação e construção de todas as ciências que contêm um conhecimento teórico “a priori” dos objetos, quer dizer, está contida a resposta destas perguntas:
Como é possível uma Matemática pura?
Como é possível uma Física pura?
Não se pode perguntar destas ciências, mais do que como são possíveis porque, ao existirem como reais, demonstram pois que o são.
No tocante à Metafísica, como seus passos têm sido até hoje tão desditosos, tão distantes do fim essencial da mesma, que pode dizer-se que to­dos têm sido em vão, perfeitamente explica-se a dúvida de sua possibilidade e de sua existência.
Mas, todavia, esta espécie de conhecimento deve, em certo sentido, considerar-se como dado; e a Metafísica é real, senão como ciência feita, pelo menos em sua disposição natural (Metaphisica na­turalis), porque a razão humana, sem que esteja movida por uma vaidade de uma onisciência; se­não simplesmente estimulada por uma necessi­dade própria, marcha sem descanso algum para questões que não podem ser resolvidas pelo uso empírico da razão, nem por princípios que dela emanem. Isso sucede realmente a todos os ho­mens, logo que a sua razão começa a especular; por isso a Metafísica existiu sempre e existirá onde esteja o homem. De tal modo a nossa ques­tão é agora: como é possível a Metafísica como disposição natural? Quer dizer: como nascem da natureza da razão humana universal essas ques­tões, que a razão pura formula e que por necessi­dade própria se sente impulsionada a resolver?
Mas como todos os ensaios feitos até hoje para resolver essas questões naturais (por exemplo: a de saber se o mundo teve princípio, ou se é eterno etc.) têm encontrado contradições inevitáveis, não podemos contentar-nos com a simples disposição natural para a Metafísica, quer dizer, com a fa­culdade da razão pura, de que procede uma Metafísica, qualquer que seja; senão que deve ser pos­sível chegar com ela a uma certeza ou ignorância dos objetos e poder afirmar algo sobre os objetos dessas questões ou sobre a potência da razão, e, por conseguinte, a estender com confiança seu po­der ou colocá-la em limites seguros e determinados. ­Esta última questão, que resulta do problema geral que precede, se expressa nos seguintes ter­mos: de que modo é possível a Metafísica como ciência?
A crítica da razão conduz, por fim, necessa­riamente, à ciência; o uso dogmático da razão sem crítica conduz, pelo contrário, a afirmações infun­dadas, que sempre podem ser contraditadas por outras não menos verossímeis, o que conduz ao ceticismo.
Nem tampouco pode essa ciência ter uma ex­tensão excessiva, porque não se ocupa dos objetos da razão, cuja diversidade é infinita, mas sim­plesmente da razão mesma, de problemas que nascem exclusivamente do seu seio e que se lhe apresentam, não pela natureza das coisas que di­ferem dela, senão pela sua própria.
Mas uma vez que conheça perfeitamente a sua própria faculdade em relação com os objetos que pode fornecer-lhe a experiência, ser-lhe-á fácil determinar com toda segurança a exatidão a ex­tensão e limites de seu exercício, intentado fora dos limites da experiência.
Pode-se e deve-se, portanto, considerar como ineficaz todo ensaio feito até aqui para construir uma metafísica dogmática, porque o que neles existe de analítico, a saber: a simples decomposi­ção dos conceitos que “a priori” se encontram em nossa razão, não é seu fim total, senão somente um meio preliminar da Metafísica, cujo objeto é estender nossos conhecimentos científicos “a prio­ri".
A análise é incapaz de realizar isto, pois se re­duz a mostrar o que se acha contido em ditos con­ceitos, e não diz como foi adquirido “a priori”, para poder depois determinar o seu legítimo em­prego nos objetos de todos os nossos conhecimen­tos em geral.
Não se necessita grande abnegação para re­nunciar a todas essas pretensões, posto que as evidentes e inevitáveis contradições da razão con­sigo mesma no processo dogmático, causaram por largo tempo o descrédito da Metafísica.
Por isso será mister muita firmeza para que a dificuldade intrínseca e a oposição externa não nos afastem de uma ciência tão indispensável à razão humana, cuja raiz não poderia estragar-se ainda que se cortassem todos os seus ramos exte­riores, e que, mediante um método diferente e oposto ao que até hoje tem sido empregado, pode adquirir um útil e fecundo desenvolvimento.

VII – Idéia e Divisão de Uma Ciência Par­ticular sob o Nome de CRÍTICA DA RAZÃO PURA

De tudo o que precede resulta, pois, a idéia de uma ciência particular que pode chamar-se “crítica da razão pura”, por ser a razão a faculdade que proporciona os princípios do conhecimento “a priori”.
Razão pura é, por isso, a que contém os prin­cípios para conhecer algo absolutamente “a prio­ri”. Um orgânon da razão pura seria o conjunto de princípios mediante os quais todos os conhecimen­tos “a priori” poderiam ser adquiridos e real­mente estabelecidos. A aplicação extensa de tal orgânon produzida um sistema da razão pura. Mas como isto seria exigir demasiado e como fica ainda por saber se a extensão de nossos conheci­mentos é possível, e em que casos, podemos con­siderar a ciência do simples juízo da razão pura, de suas partes e limites, como a propedêutica para o sistema de razão pura.
Uma tal ciência não deveria denominar-se doutrina, mas somente “crítica da razão pura: sua utilidade, desde o ponto de vista especulativo, seria puramente negativa e não servida para am­pliar nossa razão, senão para a emancipar de todo erro, o que já não é pouco.
Chamo transcendental todo conhecimento que em geral se ocupe, não dos objetos, mas da ma­neira que temos de conhecê-los, tanto quanto pos­sível “a priori”. Um sistema de tais conceitos se denominada “Filosofia transcendental”. Mas esta filosofia é demasiada para começar, porque deve conter todo o conhecimento, tanto o analítico como o sintético “a priori”, e se estenderia muito além do que corresponde ao nosso plano.
Devemos tratar somente da análise quanto seja indispensável e necessária para perceber em toda a sua extensão os princípios da síntese a priori. Síntese que constitui o nosso único objeto (assunto). Esta investigação, que não podemos chamar propriamente doutrina, mas tão-só “crítica transcendental”, pois tem por fim não o aumento dos nossos conhecimentos, mas a retificação dos mesmos, vem a ser como a pedra de toque para estimar o valor ou a insignificância de todos os conhecimentos “a priori”, que é do que nos ocu­pamos atualmente.
A crítica é, portanto, no possível, uma prepa­ração para um orgânon, e se este não se distingue, será pelo menos um cânon, segundo o qual possa em todo caso ser exposto analítica e sintetica­mente o sistema completo da filosofia da razão pura, que deve consistir na extensão ou na sim­ples limitação do conhecimento racional.
Se se atende a que dito sistema tem por obje­to, não a natureza das coisas, que é infinita, mas o entendimento que julga sobre a natureza das coi­sas, e ainda esse entendimento considerado so­mente em relação aos seus conhecimentos “a prio­ri” , podemos presumir que o sistema não é impos­sível, nem tão vasto, que se não possa esperar o seu termo.
Como não necessitamos procurar esse objeto exteriormente nem pode permanecer oculto para nós, não parece que tenha de ser tão extenso que não possamos abarcá-lo em seu justo preço. Menos ainda deve esperar-se que esta obra seja uma crí­tica dos livros publicados sobre sistemas da razão pura; aqui só se trata de uma crítica da faculdade da razão pura.
Somente tomando essa crítica como base, se consegue uma segura pedra de toque para apre­ciar o valor das obras filosóficas antigas e moder­nas; sem ela, o historiador e o juiz condenam in­competentemente as asserções de outros, tendo-as como infundadas em nome das próprias, que não têm melhor fundamento.
A filosofia transcendental é a idéia de uma ciência, cujo plano deve traçar a crítica da razão pura de uma maneira arquitetônica, quer dizer, por princípios e com a mais plena segurança da perfeição e validez de todos os princípios da razão pura.
Se a crítica não toma o nome de Filosofia transcendental é só porque deveria, para ser um sistema completo, conter uma análise detalhada de todos os conhecimentos humanos “a priori”. A crítica deve, sem dúvida alguma, colocar ante nossos olhos uma perfeita enumeração de todos os conceitos fundamentais que constituem o conhe­cimento puro; mas se abstém da detalhada análise deles, em parte, porque essa decomposição não seria conforme com seu fim, e, ademais, não apre­senta tanta dificuldade como a síntese, que é ob­jeto da crítica e, em parte, também, porque seria contrário à unidade do plano entreter-se numa análise e derivação tão acabados, podendo eximir-se de tal empenho.
Demais, assim a análise perfeita dos conceitos “a priori”, como a dedução dos que depois hão de ser derivados, é coisa fácil de suprir sempre que antes tenham sido expostos detalhadamente como princípios da síntese e nada lhes falta em relação a esse fim essencial.
Segundo isto, tudo o que constitui a Filosofia transcendental pertence à crítica da razão pura, que é a idéia completa da Filosofia transcenden­tal; mas não esta ciência mesma, porque na aná­lise só se estende até o que lhe é indispensável para o perfeito juízo do conhecimento sintético “a priori”.
O principal propósito que deve guiar-nos na divisão desta ciência é não introduzir conceitos que contenham algo de empírico, quer dizer, que o conhecimento “a priori” seja completamente puro.
Daqui, que, ainda que os princípios superiores de Moral e seus conceitos fundamentais sejam co­nhecimentos “a priori”, não pertençam sem em­bargo à Filosofia transcendental; porque os con­ceitos de prazer ou dor, de desejo ou inclinação têm todos uma origem empírica, e ainda que seja certo que não fundamentam os preceitos morais, devem, sem embargo, formar parte da moralidade pura, juntamente com o conceito do dever de do­minar os obstáculos ou dos impulsos a que não devemos entregar-nos.
Donde se segue que a Filosofia transcendental é a filosofia da razão pura simplesmente especula­tiva, porque todo o concernente à prática, que con­tém móveis, refere-se aos sentimentos que perten­cem às fontes empíricas do conhecimento.
Se se quer fazer a divisão dessa ciência desde o ponto de vista geral de um sistema, deve ela compreender:
1.º – uma teoria elementar da razão pura;
2.° – uma teoria do método da razão pura.
Cada uma destas partes principais terá suas sub-divisões cujos fundamentos não poderão ser facil­mente expostos aqui. O que parece necessário re­cordar na introdução é que o conhecimento hu­mano tem duas origens e que talvez ambas proce­dam de uma comum raiz desconhecida para nós; estas são: a sensibilidade e o entendimento; pela primeira os objetos nos são dados, e pelo segundo, concebidos.
A sensibilidade pertence à Filosofia transcen­dental enquanto contém representações “a priori”, que por seu turno encerram as condições mediante as quais nos são dados os objetos. A teoria trans­cendental da sensibilidade deve pertencer à pri­meira parte da ciência elementar, pois as condi­ções sob as quais se dão os objetos ao conheci­mento humano precedem àquelas sob as quais são concebidos esses mesmos objetos.


--------------------------------------------------------------------------------

PARTE PRIMEIRA
DA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDENTAL
Estética Transcendental
1

Qualquer que seja o modo de como um conhe­cimento possa relacionar-se com os objetos, aquele em que essa relação é imediata e que serve de meio a todo pensamento, chama-se intuição (An­sechauung).(1) Mas esta intuição não tem lugar senão sob a condição de nos ser dado o objeto, e isto só é possível, para o homem, modificando o nosso espírito de certa maneira.
A capacidade de receber (a receptividade) re­presentações dos objetos segundo a maneira como eles nos afetam, denomina-se sensibilidade. Os ob­jetos nos são dados mediante a sensibilidade e somente ela é que nos fornece intuições; mas é pelo entendimento que elas são pensadas, sendo dele que surgem os conceitos. Todo pensamento deve em última análise, seja direta ou indireta­mente, mediante certos caracteres, referir-se às intuições, e, conseguintemente, à sensibilidade, porque de outro modo nenhum objeto nos pode ser dado.
A impressão de um objeto sobre esta capaci­dade de representações, enquanto somos por ele afetados, é a sensação. Chama-se empírica toda intuição que relaciona ao objeto, por meio da sen­sação. O objeto indeterminado de uma intuição empírica, denomina-se fenômeno. No fenômeno chamo matéria àquilo que corresponde à sensa­ção; aquilo pelo qual o que ele tem de diverso pode ser ordenado em determinadas relações, denomino “forma do fenômeno”. Como aquilo mediante o qual as sensações se ordenam e são suscetíveis de adquirir certa forma não pode ser a sensação, infere-se que a matéria dos fenômenos só nos pode ser fornecida “a posteriori”, e que a forma dos mesmos deve achar-se já preparada “a priori” no espírito para todos em geral, e que por conseguinte pode ser considerada independentemente da sen­sação.
Toda a representação na qual não há traço daquilo que pertence à sensação chamo pura (em sentido transcendental). A forma pura das intui­ções sensíveis em geral, na qual todo o diverso dos fenômenos é percebido pela intuição sob certas re­lações, encontra-se “a priori” no espírito. Esta forma pura da sensibilidade pode ainda ser desig­nada sob o nome de intuição pura. Assim, quando na representação de um corpo eu me abstraio da­quilo que a inteligência pensa, como substância, força, divisibilidade etc., bem como daquilo que pertence à sensação, como a impenetrabiidade, a dureza, a cor etc., ainda me resta alguma coisa desta intuição empírica, a saber: a extensão e a figura. Estas pertencem à intuição pura, que tem lugar “a priori” no espírito, como uma forma pura da sensibilidade e sem um objeto real do sentido ou sensação.
Denomino Estética transcendental (2) à ciência de todos os princípios “a priori” da sensibilidade. É pois esta ciência que deve constituir a primeira parte da teoria transcendental dos elementos, por oposição àquela que contém os princípios do pen­samento puro e que se denominará Lógica trans­cendental.
Na Estética transcendental, nós começaremos por isolar a sensibilidade, fazendo abstração de tudo quanto o entendimento aí acrescenta e pensa por seus conceitos, de tal sorte que só fique a in­tuição empírica. Em segundo lugar, separaremos, também, da intuição tudo o que pertence à sensa­ção, com o fim de ficarmos só com a intuição pura e com a forma do fenômeno, que é a única coisa que a sensibilidade nos pode dar “a priori”. Resul­tará desta pesquisa que existem duas formas pu­ras da intuição sensível, como princípios do conhecimento “a priori”, a saber: o espaço e o tem­po, de cujo exame vamos agora ocupar-nos.


--------------------------------------------------------------------------------

Primeira Seção
Da Estética Transcendental do Espaço
2

Exposição metafísica deste conceito

Por meio dessa propriedade de nosso espírito que é o sentido externo, nós nos representamos os objetos como estando fora de nós e colocados todos no espaço. É lá que sua figura, sua grandeza e suas relações recíprocas são determinadas ou de­termináveis. O sentido interno, por meio do qual o espírito se percebe a si mesmo intuitivamente, ou percebe o seu estado interior, não nos dá, sem dú­vida, nenhuma intuição da alma, ela mesma como objeto; mas há todavia uma forma determinada pela qual é possível a intuição do seu estado inter­no, e segundo a qual tudo que pertence às suas determinações internas é representado segundo relações de tempo. O tempo não pode ser percebido exteriormente, assim como o espaço não pode ser considerado como algo interior em nós outros. Que são, pois, tempo e espaço? São entidades reais ou são somente determinações ou mesmo simples re­lações das coisas? E essas relações seriam de tal natureza que eles não cessariam de subsistir entre as coisas, mesmo quando não fossem percebidos como objetos de intuição?
Ou são tais que só pertencem à forma da in­tuição, e, por conseguinte, à qualidade subjetiva de nosso espírito, sem a qual esses predicados ja­mais poderiam ser atribuidos a coisa alguma?
Para obter uma resposta exporemos primeira­mente o conceito de espaço. Entendo por exposi­ção a clara representação (ainda que não seja ex­tensa) do que pertence a um conceito; a exposição é metafísica quando contém o que o conceito apre­senta como dado “a priori”.
1.° – O espaço não é um conceito empírico, derivado de experiências exteriores. Com efeito, para que eu possa referir certas sensações a qual­quer coisa de exterior a mim (quer dizer, a qual­quer coisa colocada em outro lugar do espaço di­verso do que ocupo), e, para que possa representar as coisas como de fora e ao lado umas das outras, e por conseguinte como não sendo somente dife­rentes, mas colocadas em lugares diferentes, deve existir já em princípio a representação do espaço. Esta representação não pode, pois, nascer por experiência das relações dos fenômenos exteriores, sendo que estas só são possíveis mediante a sua prévia existência.
2.° – O espaço é uma representação necessá­ria, “a priori”, que serve de fundamento a todas as intuições externas. É impossível conceber que não exista espaço, ainda que se possa pensar que nele não exista nenhum objeto. Ele é considerado como a condição da possibilidade dos fenômenos, e não como uma representação deles dependente; e é uma representação “a priori”, que é o fundamento dos fenômenos externos.
3.° – O espaço não é um conceito discursivo, ou, como se diz, universal das relações das coisas em geral, mas uma instituição pura. Com efeito, não se pode representar mais que um só espaço, e quando se fala de muitos, entende-se somente que se refere às partes do mesmo espaço único e uni­versal. Estas partes só se concebem no espaço uno e onicompreensivo, sem que pudessem precedê-lo como se fossem seus elementos (cuja composição fora possível em um todo). O espaço é essencialmente uno; a variedade que nele achamos, e, conseqüentemente, o conceito universal de espaço em geral, fundam-se unicamente em limitações. Da­qui se segue que o que serve de base a todos os conceitos que temos do espaço, é uma intuição “a priori” (que não é empírica). O mesmo acontece cóm os princípios geométricos, como quando di­zemos, por exemplo, que a soma de dois lados de um triángulo é maior do que o terceiro, cuja cer­teza apodítica não procede dos conceitos gerais de linha e triângulo, mas de uma intuição “a priori”.
4.° – O espaço é representado como uma grandeza infinita dada. É necessário considerar todo conceito como uma representação contida em uma multidão infinita de representações distintas (das quais é expressão comum); mas nenhum conceito como tal contém em si uma multidão in­finita de representações. Sem embargo, assim concebemos o espaço (pois todas as suas partes coexistem no infinito). A primitiva representação do espaço é, pois, uma intuição “a priori” e não um conceito.

Exposição Transcendental do Conceito de Espaço
3

Entendo por exposição transcendental a apli­cação de um conceito, como princípio que pode mostrar a possibilidade de outros conhecimentos sintéticos “a priori”. Ora, isso supôe duas coisas:
1 – que realmente emanem do conceito dado tais conhecimentos;
2 – que esses conhecimentos não sejam pos­síveis senão sob a suposição de um modo de explicação dado e tirado desse concei­to.
A Geometria é uma ciência que determina sin­teticamente, e, portanto, “a priori”, as proprieda­des do espaço. Que deve ser, pois, a representação do espaço, para que tal conhecimento seja possí­vel? Deve ser, primeiramente, uma intuição; por­que é impossível tirar de um simples conceito pro­posições que o ultrapassem, como se verifica em Geometria (Int. V).
Mas essa intuição deve achar-se em nós, “a priori”, quer dizer, anteriormente a toda percepção de um objeto, e, por conseguinte, ser pura e não empírica.
Efetivamente, as proposições geométricas, como esta por exemplo: o espaço não tem mais que três dimensões, são todas apodíticas, quer di­zer que elas implicam a consciência de sua neces­sidade; mas tais proposições não podem ser jul­gamentos empíricos ou de experiência, nem deles derivar (Introdução, II).
Como se encontra, pois, no espírito, uma in­tuição externa anterior aos mesmos objetos e na qual o conceito desses objetos pode ser determi­nado “a priori”? Isso só pode acontecer sob a con­dição de que ela tenha sua sede no sujeito, com a capacidade formal que ele tem de ser afetado por objetos e de receber assim uma representação imediata, quer dizer, uma intuição, por conse­guinte como forma do sentido exterior em geral.
Nossa explicação é a única que torna compre­ensível a possibilidade da Geometria como ciência sintética. Toda explicação que não oferece essa vantagem pode ser por esse sinal distinguida da nossa, por maior semelhança que com ela apre­sente.

Consequências dos conceitos precedentes

a) O espaço não representa nenhuma proprie­dade das coisas, já consideradas em si mesmas, ou em suas relações entre si, quer dizer, nenhuma determinação que dependa dos objetos mesmos e que permaneça neles se se faz abstração de todas as condições subjetivas da intuição; porque nem as determinações absolutas, nem as relativas po­dem ser percebidas antes da existência das coisas a que pertencem, e por conseguinte “a priori”.
b) O espaço não é mais do que a forma dos fenômenos dos sentidos externos, quer dizer, a única condição subjetiva da sensibilidade, me­diante a qual nos é possível a intuição externa. E como a propriedade do sujeito de ser afetado pelas coisas precede necessariamente a todas as intui­ções das mesmas, compreende-se facilmente que a forma de todos os fenômenos pode achar-se dada no espírito antes de toda percepção real, e, conse­quentemente, “a priori”. Mas como seja uma in­tuição pura onde todos os objetos devem ser de­terminados, ela pode conter anteriormente a toda experiência os princípios de suas relações.
Não podemos, pois, falar de espaço, de seres extensos etc., senão debaixo do ponto de vista do homem. Nada significa a representação do espaço, se saímos da condição subjetiva, única sob a qual podemos receber a intuição externa, quer dizer, ser afetados pelos objetos.
Este predicado só convém às coisas, enquanto elas nos aparecem a nós, quer dizer, enquanto são objetos da sensibilidade. A forma constante desta receptividade, que denominamos sensibilidade, é a condição necessária de todas as relações, em que os objetos são intuídos como exteriores a nós ou­tros; e se dita forma for abstraída dos objetos é en­tão uma intuição pura, que toma o nome de Espa­ço.
Como as condições particulares da sensibili­dade não são as condições da possibilidade das coisas mesmas, senão somente as de seus fenô­menos, bem podemos dizer que o espaço compre­ende todas as coisas que nos aparecem exterior­mente; mas não todas as coisas em si mesmas, quer sejam ou não percebidas e qualquer que seja o sujeito que as perceba; porque de modo algum poderemos julgar as intuições dos outros seres pensantes, nem saber se se acham sujeitas às mesmas condições que limitam as nossas intui­ções, e que têm para nós um valor universal.
Se acrescentamos ao conceito do sujeito a li­mitação de um juízo, então nosso juízo tem um valor absoluto ou incondicionado. Esta proposição: todas as coisas estão justapostas no espaço, vale sob esta restrição: desde que tais coisas sejam to­madas como objetos da nossa intuição sensível; se eu adito a condição ao conceito e digo: todas as coisas, como fenômenos externos, estão justapos­tas no espaço, essa regra valerá universalmente e sem restrição alguma.
Nosso exame do espaço mostra-nos a sua re­alidade, quer dizer, o seu valor objetivo relativa­mente a tudo aquilo que se pode apresentar-nos como objeto; mas ao mesmo tempo, também, a idealidade do espaço relativamente às coisas con­sideradas em si mesmas pela razão, quer dizer, sem atender à natureza de nossa sensibilidade.
Afirmamos, pois, a realidade empírica do es­paço em relação a toda experiência externa possí­vel; mas reconhecemos também a idealidade transcendente do mesmo, quer dizer, a sua não existência, desde o momento em que abandona­mos as condições de possibilidade de toda expe­riência e cremos seja ele algo que serve de fun­damento às coisas em si.
Excetuando o espaço, não existe nenhuma re­presentação subjetiva que se refira a qualquer coisa de externo, e que possa dizer-se objetiva “a priori”, porque de nenhuma delas podem derivar-se proposições sintéticas “a priori”, como aquelas que derivam da intuição no espaço. Para falar exatamente, nenhuma idealidade lhes correspon­de, ainda que tenham em comum com o espaço a sua dependência unicamente da constituição sub­jetiva da sensibilidade, por exemplo: da vista, do ouvido, do tato; mas as sensações de cores, dos sons, do calor, sendo puras sensações e não intui­ções, não nos fazem por si mesmas qualquer objeto, pelo menos “a priori”.
O fim desta observação é somente impedir que se explique a idealidade atribuida ao espaço por exemplos inadequados, como as cores, o sabor etc., que se considera, com razão, não como pro­priedade das coisas, mas sim como modificações do indivíduo, e que podem ser muito diferentes, como o são os indivíduos.
Neste último caso, com efeito, aquilo que não é originariamente senão um fenômeno, por exem­plo, uma rosa tem, no sentido empírico, o valor de uma coisa em si, se bem que, quanto à cor, possa a parecer diferente aos diferentes olhos. Pelo con­trário, o conceito transcendental dos fenômenos no espaço nos sugere esta observação crítica, de que em geral nada do que é intuído no espaço, é coisa em si; e, ainda, que o espaço não é uma forma das coisas consideradas em si mesmas, mas que os objetos não nos são conhecidos em si mesmos e aquilo que denominamos objetos exteriores con­siste em simples representações de nossa sensibi­lidade cuja forma é o espaço, mas cujo verdadeiro correlativo, a coisa em si, permanece desconhe­cida e incognoscível, jamais sendo indagada da experiência.


--------------------------------------------------------------------------------

Segunda Seção
Da Estética Transcendental do Tempo
4

Exposição metafísica do conceito de tempo

1.° O tempo não é um conceito empírico deri­vado de experiência alguma, porque a simultanei­dade ou a sucessão não seriam percebidas se a re­presentação “a priori” do tempo não lhes servisse de fundamento. Só sob esta suposição podemos representar-nos que uma coisa seja ao mesmo tempo que outra (simultânea), ou em tempo dife­rente (sucessiva).
2.° O tempo é uma representação necessária que serve de base a todas as intuições. Não se pode suprimir o tempo nos fenômenos em geral, ainda que se possa separar, muito bem, estes da­quele. O tempo, pois, é dado “a priori”. Só nele é possível toda realidade dos fenômenos. Estes po­dem todos desaparecer; mas o tempo mesmo, como condição geral de sua possibilidade, não pode ser suprimido.
3.° Nesta necessidade “a priori” se funda também a possibilidade dos princípios apodíticos, das relações ou axiomas do tempo em geral, tais como o tempo não mais que uma dimensão; os di­ferentes tempos não são simultâneos, mas suces­sivos (enquanto que espaços diferentes não são sucessivos mas sim simultâneos). Estes princípios não são deduzidos da experiência, porque esta não pode dar uma estrita universalidade nem uma cer­teza apodítica.
Poderíamos dizer: assim o ensina a observa­ção geral; e não: isto deve ser assim. Estes princí­pios têm, pois valor como regras, que tornam a experiência possível em geral, pois são elas que nos proporcionam o conhecimento da experiência.
4.° O tempo não é nenhum conceito discur­sivo ou, como se diz, geral, mas uma forma pura da intuição sensível. Tempos diferentes não são senão partes de um mesmo tempo. Ora, uma re­presentação que só pode ser dada por um objeto único, é uma intuição.
Assim a proposição: tempos diferentes não po­dem ser simultâneos, não se deriva de um con­ceito geral. Ela é uma proposição sintética que não pode derivar somente de conceitos. Acha-se pois contida imediatamente na intuição e repre­sentação do tempo.
5.° A natureza infinita do tempo significa que toda quantidade determinada de tempo é somente possível pelas limitações de um único tempo que lhes serve de fundamento. Portanto, a representa­ção primitiva do tempo deve ser dada como ilimi­tada. Ora, quando as partes mesmas e quantida­des todas de um objeto só podem ser representa­das e determinadas por meio de uma limitação, então a representação toda desse objeto não pode ser dada por conceitos (porque estes só contém re­presentações parciais) devendo ter como funda­mento uma intuição parcial.

5

Exposição transcendental do conceito de tempo

Para explicar este ponto, posso reportar-me ao número 3 precedente, onde, para ser breve, colo­quei o que propriamente é transcendental, sob o titulo de exposição metafísica. Aqui somente acrescento que os conceitos de mudança e de mo­vimento (como mudança de lugar), só são possí­veis por e na representação do tempo, e que se essa representação não fosse uma intuição (inter­na) “a priori”, não houve a possibilidade de uma mudança, quer dizer, a possibilidade de união de predicados opostos contraditoriamente em um só e mesmo objeto (por exemplo, que uma mesma coisa esteja e não esteja em um lugar).
Somente no tempo podem encontrar-se essas duas determinações contraditoriamente opostas em uma mesma coisa, quer dizer, só na sucessão. Explica, pois, nosso conceito de tempo, a possibili­dade de tantos conhecimentos sintéticos “a priori”, como expõe a ciência geral do movimento, que não é pouco fecunda.

6
Corolários destes conceitos

a) O tempo não subsiste por si mesmo, nem pertence às coisas como determinação objetiva que permaneça na coisa mesma uma vez abstraí­das todas as condições subjetivas de sua intuição. No primeiro caso, o tempo, sem objeto real, seria sem embargo algo real; no segundo, sendo uma determinação das coisas mesmas, ou uma ordem estabelecida, não poderia preceder aos objetos com sua condição, nem ser conhecido e percebido “a priori” por proposições sintéticas.
Mas este último tem lugar se o tempo não é mais flue a condição subjetiva sob a qual são pos­síveis em nós as intuições; porque, então, esta forma da intuição interna pode ser representada anteriormente aos objetos, e por conseguinte “a priori”.
b) O tempo é a forma do sentido interno, que quer dizer, da intuição de nós outros mesmos e de nosso estado interior. O tempo não pode ser de­terminação alguma dos fenômenos externos, não pertence nem a uma figura, nem a uma posição, pois ele determina a relação das representações em nossos estados internos.
E como esta intuição interior não forma figura alguma, procuramos suprir esta falta pela analo­gia e representamos a sucessão do tempo por uma linha prolongável até o infinito, cujas diversas partes constituem uma série de uma só dimensão, e derivamos das propriedades desta linha todas as do tempo, excetuando só uma, a saber: que as par­tes das linhas são simultâneas, enquanto que as do tempo são sempre sucessivas. Donde se deduz também que a representação do tempo é uma in­tuição, porque todas as suas relações podem ser expressas por uma intuição exterior.
c) O tempo é a condição formal “a priori” de todos os fenômenos em geral. O espaço, como forma pura de todas as intuições externas, só ser­ve, como condição “a priori”, para os fenômenos exteriores. Pelo contrário, como todas as represen­tações, tenham ou não por objeto coisas exteriores, pertencem, não obstante, por si mesmas, como esse estado, sob a condição formal da intuição in­terna, pertence ao tempo, é o tempo uma condição “a priori” de todos os fenômenos interiores (de nossa alma) e a condição imediata dos fénômenos externos.
Se posso dizer “a priori”: todos os fenômenos exteriores estão no espaço e são determinados “a priori” segundo as relações do espaço, posso afir­mar também em um sentido geral e partindo do princípio do sentido interno: todos os fenômenos em geral, quer dizer, todos os objetos dos sentidos estão no tempo, e estão necessariamente sujeitos às relações do tempo.
O tempo é um pensamento vazio (nada) se fa­zemos abstração de nossa maneira de intuição in­terna, do modo como compreendemos todas as in­tuições exteriores em nossa faculdade de represen­tar (mediante essa intuição), e tomamos, por con­seguinte, os objetos tais como podem ser em si mesmos. O tempo tem um valor objetivo somente em relação aos fenômenos porque estes são coisas que consideramos como objetos de nossos senti­dos; mas deixa de ter esse valor objetivo quando se faz abstração da sensibilidade de nossa intuição (por conseguinte, desta espécie de representação que nos é própria), quando se fala de coisas em geral.
O tempo, que não é senão uma condição sub­jetiva de nossa intuição geral (sempre sensível, quer dizer, só se produz quando somos afetados pelos objetos), considerado em si mesmo e fora do sujeito, não é nada. É, não obstante, necessaria­mente objetivo em relação a todos os fenômenos, e por conseguinte, também a todas as coisas que a experiência pode oferecer-nos. Não podemos dizer: todas as coisas existem no tempo, porque, no con­ceito de coisas em geral, faz-se abstração de toda maneira de intuição dessas coisas e sendo esta propriamente a condição pela qual o tempo per­tence à representação dos objetos.
Mas se esta condição se acrescenta ao con­ceito e se diz: todas as coisas, como fenômenos (objetos da intuição sensível), existem no tempo, então tem esse princípio o seu exato valor objetivo e a sua universalidade “a priori”.
As nossas considerações mostram a realidade empírica do tempo, quer dizer, o seu valor objetivo relativamente a todos os objetos que possam oferecer-se aos nossos sentidos. E como a nossa in­tuição é sempre sensível, não pode nunca oferecer-se a nós outros um objeto na experiência, que. não seja sujeito às condições do tempo.
Contestamos, portanto, toda pretensão da re­alidade absoluta do tempo, a saber: a que o consi­dera, sem atender à forma da nossa intuição sen­sível, como absolutamente inerente às coisas, quer dizer, como condição ou propriedade. Tais proprie­dades que pertencem às coisas em si, não podem nunca ser dadas pelos sentidos.
Cumpre admitir a idealidade transcendental do tempo, no sentido de que se se abstraem as condições subjetivas da intuição sensível, não é absolutamente nada não podendo ser atribuida, tampouco, as coisas em si mesmas (independen­temente de toda relação com a nossa intuição).
Todavia, esta idealidade, a mesma que a do espaço, não deve ser comparada aos dados subje­tivos das sensações, porque aqui se supõe que o fenômeno mesmo a que se unem estes atributos tem uma realidade objetiva; a realidade que falta completamente aqui, a não ser que se considere só empiricamente, quer dizer, seja a título de subs­tância, seja a título de qualidade. Veja-se sobre isto a observação da primeira seção.

7
Explicação

Contra esta teoria, que admite a realidade empírica do tempo, combatendo a sua realidade absoluta e transcendental, homens doutos formularam-me uma objeção, que me parece ocorra ao comum dos leitores, pouco familiariza­dos com estes assuntos. Tal é a objeção: há mu­danças reais (o que é provado pela sucessão de nossas representações, querendo-se negar os fe­nômenos externos e suas mudanças); ora, a mu­dança das representações não é possível senão no tempo; logo, o tempo é qualquer coisa de real.
A resposta não é difícil: aceito todo o argu­mento. O tempo, não resta dúvida, é qualquer coisa de real: é, com efeito, a forma real da intui­ção interna. Possui, pois, uma realidade subjetiva em relação à experiência interna: quer dizer, te­nho realmente a representação do tempo e de mi­nhas próprias determinações nele.
Conseqüentemente, o tempo não é real como objeto. Mas, se eu mesmo ou um outro ente me pudesse perceber sem esta condição da sensibili­dade, estas mesmas determinações que nós nos representamos atualmente como mudanças nos dariam um conhecimento em que não se encon­trará mais a representação do tempo, nem, por conseguinte, a de mudança, não existiriam. Sua realidade empírica permanece, pois, como condi­ção de todas as nossas experiências. Mas a reali­dade absoluta não se pode, segundo vimos, conce­der ao tempo.
Ele não é mais do que a forma de nossa intui­ção interna. Se se tira desta intuição a condição especial de nossa sensibilidade, desaparece igualmente o conceito de tempo, porque esta forma não pertence aos objetos mesmos, mas ao sujeito que os percebe.
Porém a causa, pela qual tal objeção é formu­lada tão concordemente, entre os que nada têm a opor contra a idealidade do espaço, é esta: é que não esperavam poder demonstrar apoditicamente a realidade absoluta do espaço, inibidos, pelo idea­lismo, segundo o qual a realidade dos objetos exteriores não é suscetível de nenhuma demonstra­ção rigorosa, enquanto que a do objeto do nosso sentido interno (de mim mesmo e de meu estado) lhes parecia imediatamente claro pela consciên­cia.
Aqueles poderiam ser simples aparência; mas este, a seu juízo, é inegavelmente qualquer coisa real. Entretanto, os partidários de tal opinião olvi­dam que essas duas classes de objetos, sem neces­sidade de combater sua realidade como represen­tações, pertencem somente ao fenômeno, que tem sempre dois aspectos: um, quando o objeto é con­siderado em si mesmo (prescindindo da maneira de percebê-lo, cuja natureza permanecerá sendo sempre problemática); outro, quando se considera a forma da intuição deste objeto, forma que não deve ser buscada no objeto em si, mas no sujeito, a quem aparece, e que, não obstante, pertence real e necessariamente ao fenômeno que esse ob­jeto manifesta. São, pois, tempo e espaço duas fontes de conhecimentos, de que podem derivar-se “a priori” diferentes conhecimentos sintéticos, como mostra o exemplo das matemáticas puras, respeito ao conhecimento do espaço e de suas re­lações.
Eles são, ambos, formas puras de toda intui­ção sensível que tornam possíveis as proposições sintéticas “a priori”. Mas estas fontes do conheci­mento “a priori”, pela mesma razão de que só são simples condições da sensibilidade, determinam o seu próprio limite, enquanto se referem aos obje­tos, considerados como fenômenos, e não repre­sentam coisas em si. O valor “a priori” de ditas fontes se limita aos fenômenos; não tem aplicação objetiva fora dos mesmos.
Esta realidade formal do tempo e do espaço deixa intata a seguridade do conhecimento expe­rimental, porque estamos igualmente certos desse conhecimento, quer essas formas sejam necessa­riamente inerentes às coisas em si, quer somente à nossa intuição das coisas.
Pelo contrário, aqueles que sustentam a reali­dade absoluta do espaço e do tempo, quer os to­mem como subsistentes por si mesmos, quer como inerentes nos objetos, acham-se em contradição com os princípios da experiência. Se se decidem pelo primeiro e tomam espaço e tempo como sub­sistentes por si mesmos (partido comumente se­guido pelos fisico-matemáticos), têm que admitir necessariamente duas quimeras (espaço e tempo), eternas e infinitas, que só existem (sem que seja algo real) para compreender em seu seio tudo quanto é real.
Aceitando a segunda opinião seguida por al­guns metafísicos da natureza, que consiste em considerar tempo e espaço como relações de fenô­menos (simultâneos no espaço e sucessivos no tempo), abstraídos da experiência, ainda que con­fusamente representados nessa abstração, é pre­ciso negar a validade das teorias matemáticas “a priori” das coisas reais (p. ex., no espaço); ou pelo menos sua certeza apoditica, posto que não possa ser esta achada “a posteriori”.
De igual modo, os conceitos “a priori” de es­paço e tempo, segundo esta opinião, seriam só criação da fantasia cuja verdadeira fonte deve buscar-se na experiência, porque de suas relações abstraídas se tem valido fantasia para formar algo que contenha o que de geral há nela, ainda que sem as restrições que a natureza lhes tem posto.
Os primeiros têm a vantagem de deixar livre o campo dos fenômenos para as proposições mate­máticas; mas essas mesmas condições os embara­çam em extremo quando o entendimento quer sair deste campo.
Os segundos têm neste último ponto a vanta­gem de que as representações de espaço e tempo não os detêm, quando quer julgar os objetos, não como fenômenos, mas em sua relação com o en­tendimento; mas não podem nem dar um funda­mento das possibilidades dos conhecimentos ma­temáticos “a priori”, faltando-lhes uma verdadeira intuição objetiva “a priori”, nem tampouco condu­zir a uma conformidade necessária as leis da ex­periência e aquelas asserções.
Em nossa teoria da verdadeira natureza destas duas formas primitivas da sensibilidade ficam re­solvidas ambas as dificuldades. Finalmente é ób­vio que a Estética transcendental não pode conter mais do que esses elementos, a saber: espaço e tempo, posto que todos os outros conceitos, que pertencem à sensibilidade, mesmo o de movi­mento que reúne os dois anteriores, implicam algo empírico, porque o movimento supõe a percepção de algo movível.
O espaço considerado em si mesmo não tem nada de movível: o movível deve ser, pois, algo que somente se encontra pela experiência no es­paço, e, conseguintemente, um dado empírico. A Estética transcendental não pode tampouco contar entre os seus dados “a priori” o conceito de mu­dança; porque o tempo mesmo não muda, mas sim algo que existe no tempo. Necessita-se, pois, para isso, a percepção de uma certa coisa e da su­cessão de suas determinações, por conseguinte, da experiência.

8
Observações gerais sobre a Estética transcendental

I – Com o fim de evitar erros e más interpre­tações neste assunto, devemos explicar clara­mente nossa opinião sobre a natureza fundamen­tal do conhecimento sensível em geral.
Temos querido provar que todas as nossas in­tuições só são representações de fenômenos, que não percebemos as coisas como são em si mes­mas, nem são as suas relações tais como se nos apresentam, e que se suprimíssemos nosso sujeito, ou simplesmente a constituição subjetiva dos nos­sos sentidos em geral, desapareceriam também todas as propriedades, todas as relações dos obje­tos no espaço e no tempo, e também o espaço e o tempo, porque tudo isto, como fenômeno, não pode existir em si, mas somente em nós mesmos.
Para nós é completamente desconhecida qual possa ser a natureza das coisas em si, independen­tes de toda receptividade da nossa sensibilidade. Não conhecemos delas senão a maneira que temos de percebê-las; maneira que nos é peculiar; mas que tão pouco deve ser necessariamente a de todo ser, ainda que seja a de todos os homens.
É a esta maneira de perceber que nos atere­mos, unicamente.
Tempo e espaço são as formas puras desta percepção, e a sensação, em geral, a sua matéria. Só podemos conhecer “a priori” as formas puras do espaço e do tempo, quer dizer, antes de toda percepção efetiva, e por isso se denomina intuição pura; a sensação, pelo contrário, é que faz ser o nosso conhecimento “a posteriori”, quer dizer, in­tuição empírica. Aquelas formas pertencem abso­luta e necessariamente à nossa sensibilidade, e qualquer espécie que sejam as nossas sensações; estas podem ser mui diversas.
Por mais alto que fosse o grau de clareza que pudéssemos dar à nossa intuição, nunca nos apro­ximaríamos da natureza das coisas em si; porque em todo caso só conheceríamos perfeitamente nossa maneira de intuição, quer dizer, nossa sen­sibilidade, e isto sempre sob as condições de tempo e espaço originariamente inerentes no sujeito.
O mais perfeito conhecimento dos fenômenos que é o único que nos é dado atingir, jamais nos proporcionará o conhecimento dos objetos em si mesmos.
Desnaturam-se os conceitos de sensibilidade e de fenômeno inutilizando e destruindo toda a doutrina do conhecimento, quando se quer que toda a nossa sensibilidade consista na representa­ção confusa das coisas, representação que conte­ria absolutamente tudo o que elas são em si, ainda que sob a forma de um amontoado de caracteres e representações parciais, que não distinguimos cla­ramente uns de outros.
A diferença entre uma representação obscura e outra clara é puramente lógica, e não se refere ao seu conteúdo.
Sem dúvida, o conceito de direito, empregado pela sã inteligência comum, contém tudo o que a mais sutil especulação pode desenvolver do mes­mo, ainda que no uso prático e comum não se te­nha consciência das diversas representações con­tidas nesse conceito. Mas não se pode dizer por isto que o conceito vulgar seja sensível e não de­signe senão um simples fenômeno; porque o di­reito não poderia ser um objeto de percepção, pois o seu conceito existe no entendimento e representa uma qualidade (a moral) das ações, que elas pos­suem em si mesmas.

Pelo contrário, a representação de um corpo na intuição não contém absolutamente nada que propriamente possa pertencer a um objeto em si, mas somente o fenômeno (a manifestação) de al­guma coisa e a maneira de como nos afeta.
Ora, esta receptividade de nossa faculdade de conhecer, que se denomina sensibilidade, perma­nece sempre profundamente distinta do conheci­mento do objeto em si, ainda que se pudesse pene­trar o fenômeno até o seu âmago. A filosofia leib­nitzwolfiana adotou, nas suas indagações sobre a natureza e origem dos nossos conhecimentos, um ponto de vista errôneo, ao considerar como exclu­sivamente lógica a diferença entre a sensibilidade e o entendimento.
Tal diferença é claramente transcendental, e não se refere só à clareza ou obscuridade, mas também à origem e conteúdo de nossos conheci­mentos; de tal sorte que, mediante a sensibilidade, não conhecemos de nenhuma maneira as coisas em si mesmas. Desde o momento em que fazemos abstração de nossa natureza subjetiva, o objeto representado e as propriedades que lhe atribuímos mediante a intuição desaparecem; porque a natu­reza subjetiva é precisamente quem determina a forma desse objeto como fenômeno.
Por outro lado, sabemos distinguir muito bem nos fenômenos o que pertence essencialmente à intuição dos mesmos, e vale em geral para todo o sentido humano, daquilo que só lhe pertence de modo acidental, e que não vale para toda relação em geral da sensibilidade, mas unicamente para a posição particular ou organização deste ou da­quele sentido. Do primeiro conhecimento se diz que representa a coisa em si e do segundo que re­presenta meramente o fenômeno. Porém essa dife­rença é só empírica. Se se permanece nela (como comumente acontece) e não se considera nova­mente aquela intuição empírica (conforme deverá suceder) como um puro fenômeno, no qual não se encontra nada que pertença a uma coisa em si, desaparece então a nossa distinção transcendental e cremos conhecer as coisas em si, ainda que nas mais profundas investigações do mundo sensível, só possamos ocupar-nos de fenômenos.
Assim; por exemplo, se dissermos do arco-iris que ele é um simples fenômeno que se mostra na chuva iluminada pelo sol, e da chuva que é uma coisa em si, essa maneira de falar é exata, desde que entendemos a chuva em um sentido físico, quer dizer, como uma coisa que, na experiência geral, é determinada de tal modo e não diversamente, quaisquer que sejam as disposições dos sentidos.
Entretanto, se tomamos esse fenômeno empí­rico de uma maneira geral, e sem nos ocuparmos de seu acordo com todos os sentidos humanos, perguntarmos se ele representa também um objeto em si (não direi das gotas de chuva, porque são já, como fenômenos, objetos empíricos), a questão da relação entre a representação e o objeto vem a ser transcendental. Não somente essas gotas de chuva são simples fenômenos, mas mesmo a sua forma e até o espaço em que tombam nada são em si; não passam de modificações ou de disposições de nossa intuição sensível.
Quanto ao objeto transcendental, permanece completamente ignorado por nós.
Outra importante advertência de nossa Esté­tica transcendental é que não merece ser recebida somente como uma hipótese verossímil, mas como um valor tão certo e seguro como pode exigir-se de uma teoria que deve servir de orgânon. E para tornar completamente evidente esta certeza, esco­lhamos um caso que mostre visivelmente o seu va­lor e possa dar luz ao que já foi dito no número 3.
Suponho que o espaço e o tempo existem em si objetivamente e como condições da possibilidade das coisas em si, uma primeira dificuldade se apresenta. Nós tiramos “a priori” de um e doutro, mas particularmente do espaço, que aqui toma­mos, como principal exemplo, um grande número de proposições apodíticas e sintéticas.
Posto que as proposições da Geometria são co­nhecidas sinteticamente “a priori” e com uma cer­teza apodítica, pergunto: de onde tomais seme­lhantes proposições e em que se apóia o nosso en­tendimento para chegar a essas verdades absolu­tamente necessárias e universalmente válidas?
Só existem dois meios para elas: os conceitos e as intuições. Tais meios nos são fornecidos “a priori” ou “a posteriori”.
Os conceitos empíricos e o seu fundamento, ou seja, a intuição empírica, nunca podem fornecer-nos outras proposições sintéticas além das empíri­cas e de que caracterizam todas as proposições da Geometria.
O outro meio restante consistiria em alcançar esses conhecimentos com simples conceitos ou in­tuições “a priori”; mas resulta que de simples conceitos não se pode chegar a nenhum conheci­mento sintético, pois só permitem conhecimentos analíticos. Tomai, por exemplo, a proposição: en­tre duas linhas retas não pode encerrar-se um es­paço e, por conseguinte, não é possível figura al­guma; procurai deduzi-la dos conceitos de reta e do número dois. Tomai outro exemplo: uma figura é possível com três linhas retas, e intentai deduzi-la desses mesmos conceitos.
Todos os vossos esforços seriam inúteis, e vos verieis necessitados de recorrer à intuição, que é o que sempre fez a Geometria.
Dai-nos um objeto na intuição; mas de que es­pécie é essa intuição? É ela pura, “a priori”, ou empírica? Se fosse esta última, nunca poderia provir dela uma proposição universal, e menos ainda, uma apodítica porque, mediante a expe­riência, não podem ter esta necessidade e esta universalidade que, sob esse título de proposições experimentais, não se podem jamais conseguir de semelhante natureza.
Ver-vos-eis obrigados a dar “a priori” vosso ob­jeto na intuição e fundar nele vossa proposição sintética. Se não existisse em vós uma faculdade de intuição “a priori”, e se esta condição subjeti­va, quanto à forma, não fosse ao mesmo tempo a geral condição “a priori”, única que torna possível o objeto desta intuição (externa) mesma; se fosse, enfim, o objeto (o triângulo) algo em si mesmo e alheio a toda relação com vosso sujeito, como po­dei-íeis dizer que o que é necessário em vossas condições subjetivas para construir um triângulo deve também pertencer imprescindivelmente ao triângulo em si?
Porque vós não podeis acrescentar aos vossos conceitos (de três linhas) nada de novo (a figura), que necessariamente deva encontrar-se no objeto porque esse objeto é dado anteriormente ao nosso conhecimento e não por ele. Se não fosse, pois, o espaço (e mesmo o tempo) uma forma pura de vossa intuição, que contém as condições “a prio­ri”, as únicas que podem fazer com que sejam para vós as coisas objetos exteriores, e que sem esta condição subjetiva não são nada em si, não poderíeis determinar nada sinteticamente “a prio­ri” dos objetos externos. É portanto indubitavel­mente certo, e não só verossímil ou possível, que espaço e tempo, como condições necessárias para toda experiência (interna e externa) não são mais do que condições puramente subjetivas de todas as nossas intuições, e que a este respeito todos os objetos são somente fenômenos e não coisas em si dadas desta maneira.
Destes pode dizer-se muito “a priori”, refe­rente à forma desses objetos; mas nada da coisa em si mesma que possa servir de fundamento a esses fenômenos.
II – Para confirmar esta teoria da idealidade e do sentido interno e externo e, conseqüentemen­te, de todos os objetos do sentido, como puros fe­nômenos, pode-se todavia observar que tudo o que pertence à intuição em nosso conhecimento (exce­tuando o sentimento de prazer, de dor e a vontade, que não são conhecimentos) não contém mais que simples relações: relações de lugar em uma intui­ção (extensão), de mudança de lugar (movimento) e de leis que determinam essa mudança (forças motrizes).
Mas o que está presente no lugar ou o que atua nas coisas mesmas fora da mudança de lugar não está dado na intuição. Pois bem; como pelas simples relações não pode ser conhecida uma coisa em si, é justo julgar que o sentido externo, que só nos fornece simples representações de rela­ções, não possa compreender em sua representa­ção mais do que a relação de um objeto com o su­jeito, e não o que é próprio ao objeto e lhe pertence em si.
O mesmo sucede com a intuição interna. Não são só as representações dos sentidos externos que constituem a matéria própria com que enriquece­mos nosso espírito, porque o tempo (no qual colo­camos estas representações, e que precede à cons­ciência das mesmas na experiência, servindo-lhes de fundamento como condição formal da maneira que temos de dispô-las em nosso espírito) compre­ende já relações de sucessão, de simultaneidade, e do que é simultâneo com o sucessivo (permanen­te)
Ora, tudo o que pode, como representação, preceder a todo ato de pensamento, é a intuição; e como ela não contém senão relações, a firma da intuição, que não representa nada até que alguma coisa seja dada no espírito, não pode ser outra coisa mais do que a maneira segundo a qual o es­pírito foi afetado por sua própria atividade, ou por esta posição de sua representação, por conseguin­te, por si mesmo, quer dizer, um sentido interno considerado em sua forma.
Tudo o que é representado por um sentido é sempre um fenômeno, e, por conseguinte, ou não deve reconhecer-se um sentido interno, ou o su­jeito que é objeto do mesmo não pode ser repre­sentado por este sentido interno senão como um fenômeno, e não como ele se julgaria a si mesmo, se sua intuição fosse simplesmente espontânea, quer dizer: intelectual. Toda a dificuldade consiste em saber-se como um sujeito pode perceber-se intuitivamente a si mesmo; mas esta dificuldade é comum a todas as teorias.
A consciência de si mesmo (apercepção) é a representação simples do eu; e se tudo que existe de diverso no sujeito fosse dado espontaneamente nesta representação, a intuição interna seria ente intelectual. Esta consciência exige no homem uma percepção interna diversa, previamente dada no sujeito, e o modo segundo o qual é dada no es­pírito sem alguma espontaneidade deve, em vir­tude dessa diferença, chamar-se sensibilidade.
Para que a faculdade de ter consciência de si mesmo possa descobrir (apreender) aquilo que está no espírito, cumpre que aquele seja afetado: só sob esta condição podemos ter a intuição de nós mesmos; mas a forma desta intuição, existindo previamente no espírito, determina na represen­tação do tempo a maneira de compor a diversidade no espírito; ele se percebe intuitivamente, não como se representara a si mesmo imediatamente e em virtude de sua espontaneidade, mas segundo a maneira pela qual ele é intuitivamente afetado, e, por conseguinte, tal como ele se oferece a si pró­prio e não como é.
III – Ao afirmar que a intuição dos objetos exteriores, e a que o espírito tem de si mesmo, re­presentam, no espaço e no tempo, cada uma de per si, seu objeto, tal como este afeta os nossos sentidos, isto é, segundo nos aparecem, não quero dizer que esses objetos sejam mera aparência. E sustentamos isto, porque, no fenômeno, os objetos e também as propriedades que lhe atribuímos são sempre considerados como algo dado realmente; somente, como essas qualidades dependem uni­camente da maneira de intuição, do sujeito em sua relação com o objeto dado, este objeto, como manifestação de si mesmo, é distinto do que ele é em si.
Assim, não digo que os corpos parecem existir simplesmente fora de mim, ou que minha alma só parece estar dada em minha consciência, quando afirmo que a qualidade do tempo e do espaço, se­gundo me represento e onde coloco a condição de sua existência, existe em meu modo de intuição e não nos objetos em si. Seria culpa minha se o que deve considerar-se como fenômeno fosse tido como uma pura aparência.(3)
Mas isto não se dá com o nosso princípio de idealidade de todas as nossas intuições sensíveis; concedendo-se, pelo contrário, uma realidade obje­tiva a essas formas da representação, tudo inevi­tavelmente se converte em pura aparência. Ao considerar tempo e espaço como qualidades que devem encontrar-se nas coisas em si para sua pos­sibilidade, reflita-se nos absurdos a que chegam, admitindo duas coisas infinitas sem ser substân­cias, nem algo realmente inerente nelas, mas que devem ser algo existente para condição necessária de existência para todos os objetos, e que subsisti­riam ainda mesmo que cessassem de existir todas as coisas.
Não se deve censurar ao bom Berkeley, por ter reduzido tudo à aparência. Nossa própria existên­cia, dependente em tal caso da realidade subsis­tente em si de uma quimera, tal como o tempo, será como este uma vá aparência: absurdo que até agora ninguém ousou sustentar.
IV – Na Teologia natural, em que se con­cebe um objeto que não só não pode ser para nós outros objeto de intuição, nem tampouco o pode ser de nenhuma intuição sensível, distingue-se cuidadosamente de sua própria intuição as condi­ções de espaço e tempo (digo de sua intuição, por­que todo o seu conhecimento deve ter este caráter e não o de pensamento, que supõe limites).
Mas, com que direito se procede assim, uma vez que se consideram espaço e tempo como for­mas dos objetos em si, e formas tais que subsisti­riam como condições “a priori” da existência das coisas, ainda que estas desaparecessem? Se são condições de toda existência em geral, devem ser também da existência de Deus.
Se não são, pois, considerados espaço e tempo como formas objetivas de todas as coisas, é indis­pensável tê-los por formas subjetivas de nosso modo de intuição, tanto interna como externa. E afirmamos de tais intuições a sua qualidade de sensíveis, porque não são tais que por si sós pro­duzam a existência real do objeto (cujo modo de intuição cremos que só pode pertencer ao ser su­premo), mas que depende da existência do objeto e só são possíveis sendo afetada a faculdade repre­sentativa do sujeito.
Tampouco é necessário que limitemos a ma­neira de conhecer por intuição pelas quais repre­sentamos as coisas no espaço e no tempo, à sensi­bilidade humana. Quiçá todos os seres finitos, pensantes, conformem necessariamente nisto com os homens (ainda que nada possamos decidir neste particular); mas nem por essa universali­dade deixará a intuição de ser sensibilidade, por­que é derivada (intuitus derivatus) e não primi­tiva (intuitus originarius), e, por conseguinte, não é intuição intelectual, como a que parece per­tencer tão-só ao ser supremo pelas razões antes indicadas e não um ser independente, tanto pela sua existência como pela sua intuição (que deter­mina a sua existência em relação com os objetos dados). Esta última observação não deve ser con­siderada mais do que um esclarecimento e não como uma prova de nossa teoria estética.

Conclusão da Estética transcendental

Já possuímos um dos dados requeridos para a solução do problema geral da Filosofia transcen­dental: como são possíveis as proposições sintéti­cas “a priori”?
Quer dizer, estas intuições puras “a priori”: espaço e tempo. Quando em nosso juízo “a priori” queremos sair do conceito dado, encontramos algo que pode ser descoberto “a priori” na intuição cor­respondente e não no conceito, e que pode ser en­laçado sinteticamente a este conceito; mas juízos que, por esta razão, só alcançam aos objetos dos sentidos e só valem para os da experiência.


--------------------------------------------------------------------------------

PARTE SEGUNDA
DA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDENTAL
LÓGICA TRANSCENDENTAL
– Introdução –

Idéia de Uma Lógica Transcendental

I – Da Lógica em geral

Nosso conhecimento emana de duas fontes principais do espírito: a primeira consiste na ca­pacidade de receber as representações (a recepti­vidade das impressões), e a segunda, na faculdade de conhecer um objeto por meio dessas represen­tações (a espontaneidade dos conceitos). Pela pri­meira nos é dado um objeto, pela segunda é pen­sado em relação a essa representação (como pura determinação do espírito).
Constituem, pois, os elementos de todo nosso conhecimento, a intuição e os conceitos; de tal modo, que não existe conhecimento por conceitos sem a correspondente intuição ou por intuições sem conceitos. Ambos são puros ou empíricos: empíricos se neles se contém uma sensação (que supôe a presença real do objeto); puro, se na re­presentação não se mescla sensação alguma. Pode chamar-se à sensação, a matéria do conhecimento sensível.
A intuição pura, portanto, contém unicamente a forma pela qual é percebida alguma coisa, e o conceito puro a forma do pensamento de um ob­jeto em geral. Somente as intuições e conceitos puros são possíveis “a priori”; os empíricos só o são “a posteriori”.
Se denominamos sensibilidade à capacidade que tem nosso espírito de receber representações (receptividade), quando é de qualquer modo afeta­do, pelo contrário, chamar-se-á entendimento à fa­culdade que temos de produzir nós mesmos repre­sentações ou a espontaneidade do conhecimento.
Pela índole da nossa natureza a intuição não pode ser senão sensível, de tal sorte, que só con­tém a maneira de como somos afetados pelos obje­tos. O entendimento, pelo contrário, é a faculdade de pensar o objeto da intuição sensível. Nenhuma dessas propriedades é preferível à outra. Sem sen­sibilidade, não nos seriam dados os objetos, e sem o entendimento, nenhum seria pensado. Pensa­mentos sem conteúdo são vazios, intuições sem certos conceitos, são cegos.
Assim, é necessário tornar sensíveis os concei­tos (quer dizer, fornecer-lhes o objeto dado na in­tuição), bem como tornar inteligíveis as intuições (submetendo-as a conceitos). Estas duas faculda­des ou capacidades não podem trocar de funções. O entendimento não pode perceber e os sentidos não podem pensar coisa alguma. Somente quando se unem, resulta o conhecimento.
Cumpre, no entanto, não confundir as suas funções, importando separá-las e distingui-las cui­dadosamente. Em semelhante distinção se acha a base para distinguir também a ciência das regras da sensibilidade em geral, quer dizer, a Estética, da ciência das leis do entendimento em geral, quer dizer, da Lógica.
A Lógica, por sua vez, pode ser considerada sob dois pontos de vista, conforme se examinem as operações gerais ou as operações particulares do entendimento. A primeira compreende as regras absolutamente necessárias do pensar, sem as quais não podem ter lugar as operações intelec­tuais, e, por conseguinte, ela encara esta faculda­de, independentemente da diversidade dos objetos aos quais pode aplicar-se. A Lógica das operações particulares contém as regras para pensar retamente sobre certos objetos determinados.
A primeira pode chamar-se Lógica elementar; a segunda, é o orgânon desta ou daquela ciência. Esta última é habitualmente ensinada nas escolas como propedêutica das ciências, embora no de­senvolvimento da razão humana ela seja o último lugar a ser atingido; pois só ali chegamos quando a ciência se encontra muito adiantada, e só espera a última palavra para atingir o mais elevado grau de exatidão e perfeição. Com efeito, é preciso co­nhecer os objetos suficientemente, para poder dar as regras segundo as quais pode formar-se a ciên­cia.
A Lógica geral é pura ou aplicada. Na primei­ra, abstraímos todas as condições empíricas, sob as quais se exerce o nosso entendimento, p. ex.: a influência dos sentidos, o jogo da imaginação, as leis da memória, o poder do hábito, a inclinação etc.; conseguintemente, também as fontes dos pre­juízos e, em geral, todas as causas verdadeiras ou supostas de que podem derivar-se certos conheci­mentos que, por não se referirem só ao entendi­mento necessitam da experiência.
A Lógica geral e pura tem por único objetivo princípios “a priori” e é um cânon do entendi­mento e da razão, mas unicamente em relação à parte formal de seu uso, qualquer que seja o seu conteúdo (empírico ou transcendental). Diz-se que uma Lógica geral é aplicada, quando se ocupa das regras do uso do entendimento, sob as condições empíricas e subjetivas que nos ensina a Psicolo­gia. Esta Lógica tem, pois, também, princípios empíricos, ainda que seja geral enquanto trata da aplicação do entendimento sem distinção de obje­tos. Portanto, não é um cânon do entendimento em geral, nem um orgânon das ciências particula­res, mas unicamente um purificador (4) do enten­dimento comum.
Deve ser, pois, completamente separada na Lógica geral, aquela parte que constitui a teoria pura da razão, da outra que forma a Lógica apli­cada (por mais que esta seja também geral).
Só a primeira é propriamente uma ciência, certa e árida, como o exige um tratado escolástico da doutrina elementar do entendimento. Nesta parte os lógicos devem ter sempre presentes, duas regras:
1) Como Lógica geral, abstrai a matéria do conhecimento intelectual e toda a diversidade de seus objetos, e só se ocupa da forma do pensamen­to.
2) Como Lógica pura, não tem nenhum prin­cípio empírico e, por conseguinte, não empresta nada (como frequentemente se persuade) da Psico­logia, que não exerce influência alguma sobre o cânon do entendimento. É uma doutrina demons­trada, e tudo deve ser nela amplamente “a priori”.
Quanto à Lógica que denomino aplicada (con­tra a significação comum desta palavra, que de­signa certos exercícios e cuja regra a Lógica pura fornece) é que representa o entendimento e as re­gras de seu uso necessário considerado “in concre­to”, quer dizer, enquanto se acha submetido às condições contingentes do sujeito que poderão ser-lhe opostas ou favoráveis, não sendo jamais dadas “a priori”. Essa Lógica trata da atenção, de seus obstáculos e efeitos, da origem dos erros, do estado da dúvida, do escrúpulo, da persuasão, etc.
Possui com a Lógica geral e pura a mesma re­lação que existe entre a moral pura, que contém unicamente as leis morais necessárias de uma vontade livre em geral, e a ética propriamente dita (teoria das virtudes) que examina essas leis em re­lação aos obstáculos com que tropeçam nos sentimentos, inclinações e paixões a que muito ou pouco estão sujeitos os homens. Esta nunca seria uma ciência demonstrada, porque do mesmo modo que a Lógica aplicada, ela tem necessidade de princípios empíricos e psicológicos.

II – Da Lógica transcendental

Já temos dito que a Lógica geral faz abstração de todo conteúdo do conhecimento, quer dizer, de toda relação entre o conhecimento e o objeto, e que só compreende a forma lógica dos conheci­mentos em todas as suas respectivas relações: em uma palavra, a forma do pensamento em ge­ral. Mas assim como há intuições puras tanto quanto intuições empíricas (que a Estética trans­cendental prova), poderia muito bem achar-se uma diferença entre um pensamento puro e um empírico dos objetos.
Sendo assim, haveria uma Lógica em que se não faria abstração de todo o conteúdo do conhe­cimento, porque a que só contivesse as regras do pensamento puro de um objeto, excluiria todos es­ses conhecimentos cujo conteúdo fosse empírico. Esta Lógica investigaria também a origem do nosso conhecimento de objetos, enquanto tal ori­gem não possa ser atribuida aos objetos; a Lógica geral, pelo contrário, não se ocupa com essa ori­gem do conhecimento, e só se limita a examinar as nossas representações sob o ponto de vista das leis com que o entendimento a emprega e reúne entre si, quando pensa. Pouco lhe interessa que essas representações tenham sua origem “a priori” em nós outros ou que tenham sido dadas empiri­camente; unicamente se ocupa da forma que o en­tendimento pode dar-lhes, quaisquer que sejam as suas fontes de proveniência. Devo fazer aqui uma observação que tem muita importância para o que se segue e que é preciso não olvidar um só instan­te.
A palavra transcendente não convém a todo conhecimento “a priori”, mas só àquele mediante o qual conhecemos que certas representações (in­tuições ou conceitos) não são aplicadas ou possí­veis senão “a priori” e como o são (pois esta pala­vra designa a possibilidade do conhecimento ou de seu uso “a priori”). Desta sorte, não são represen­tações transcendentais o espaço nem qualquer de­terminação geométrica “a priori” do espaço, e só pode ter o nome de transcendental o conhecimento da origem não empírica dessas representações e da maneira com que podem referir-se “a priori” a objetos da experiência.
Assim, também, será transcendental a aplica­ção do espaço aos objetos em geral, e empírica, quando se limitar unicamente a objetos dos senti­dos. A diferença do transcendental e do empírico pertence, pois, tão-só à crítica dos conhecimentos e em nada respeita à relação desses conhecimen­tos com seus objetos.
Na presunção de que há conceitos que se po­dem relacionar “a priori” aos objetos, não como intuições puras ou sensíveis, mas somente como atos de pensamento puro, e que por conseguinte são conceitos, mas conceitos cuja origem não é empírica nem estética, nós concebemos previamente a idéia de uma ciência do entendimento puro e do conhecimento racional pela qual nós pensamos os objetos completamente “a priori”. Semelhante ciência que determinasse a origem, a extensão e o valor objetivo desses conhecimentos, se deveria chamar Lógica transcendental, porque ao mesmo tempo em que se ocupasse com as leis da entendimento e da razão, por outro lado, só te­ria que ver com objetos “a priori” e não, como a Lógica geral, com conhecimentos empíricos ou pu­ros sem distinção alguma.

III – Divisão da Lógica geral em Analítica e Dialética

Que é a verdade? Com esta antiga quão céle­bre pergunta acreditava-se colocar em dificuldade os lógicos, obrigando-os a incidir na logomaquia mais lamentável, ou a confessarem a sua ignorân­cia e, por conseguinte, toda a fatuidade de sua ar­te. A definição do vocábulo verdade, como sendo a conformidade do conhecimento ao objeto, já está admitida e suposta nesta obra; mas o que se de­seja conhecer é o critério geral e certo de todo conhecimento.
Saber aquilo que racionalmente se deve inda­gar, já por si prova exuberância de entendimento e sabedoria; porque se a pergunta é absurda em si e requer respostas ociosas, não só desonra a quem a formula, como produz o inconveniente de preci­pitar no absurdo ao que sem pensar responde e dá deste modo o triste espetáculo de duas pessoas que, como dizem os antigos, um ordenha enquanto o outro segura a vasilha.
Se a verdade consiste na conformidade de um conhecimento com seu objeto, este objeto deve, por isso mesmo, ser distinguido de todos os outros; pois um conhecimento é falso se não concorda com o objeto a que se relaciona, por mais que de outro modo contenha algo que possa servir para outros objetos. Assim, um critério geral da ver­dade valeria, sem distinção de seus objetos, para todos os conhecimentos.
Mas como então se faria a abstração de todo conteúdo do conhecimento (de sua relação com o objeto), e a verdade precisamente se refere a tal conteúdo, é claro ser de todo impossível e absurdo salientar uma característica suficiente e universal da verdade.
E, como já antes chamamos ao conteúdo do conhecimento de sua matéria, é lógico dizer que encerra uma contradição querer-se buscar um cri­tério universal para a verdade do conhecimento quanto à matéria, por ser contraditório em si. No que se refere ao conhecimento considerado sim­plesmente na forma (abstração feita de todo con­teúdo), é claro que uma lógica, expondo as regras universais e necessárias do entendimento, fornece nessas mesmas critérios da verdade.
Tudo quanto contradite a essas leis é falso, porque o entendimento se põe em contradição com as regras gerais de seu pensamento, quer dizer: consigo mesmo. Mas esses critérios só respeitam à forma da verdade, quer dizer, ao pensar em geral, e se já estes conceitos são exatos, não são sufi­cientes, porque ainda que um conhecimento con­corde completamente com a forma lógica (quer di­zer, que não esteja em contradição consigo mesmo), pode muito bem suceder que contradiga ao objeto.
O critério simplesmente lógico da verdade, a saber: a concordância de um conhecimento com as leis universais e formais do entendimento e da razão, será pois a condição “sine qua non”, quer dizer, negativa, de toda verdade; mais longe não pode ir a Lógica, faltando-lhe uma pedra de toque, pela qual possa descobrir o erro, que alcance ao conteúdo e não à forma.
A Lógica geral decompõe, pois, em seus ele­mentos toda a obra formal do entendimento e da razão, e os apresenta como princípios de toda apreciação lógica do nosso conhecimento. A esta parte da Lógica pode dar-se o nome de analítica, e e desta sorte a pedra de toque da verdade, ainda que negativa, porque cumpre controlar e julgar segundo as suas regras a forma de todo conheci­mento, antes de lhe examinar o conteúdo, para ver se em relação ao objeto contém alguma verdade positiva. Mas como não basta de modo algum para decidir sobre a verdade material (objetiva) do co­nhecimento, a forma pura do mesmo, por muito que concorde com as leis lógicas, ninguém pode aventurar-se apenas com a Lógica a julgar obje­tos, nem a afirmar nada, sem ter antes achado, e independentemente dela, manifestações fundadas, salvo pedir em seguida às leis lógicas em uso e encadeamento em um todo sistemático, ou melhor ainda, submetê-los simplesmente a essas leis. To­davia, há alguma coisa de sedutor na posse desta arte precisa que consiste em dar a todos os nossos conhecimentos a forma do entendimento, por va­zio e pobre que possa ser o seu conteúdo, que esta Lógica geral que só é um cânon do juízo, converter-se em certo modo em orgânon que uti­liza para tirar afirmações objetivas, pelo menos aparentemente, cometendo assim um verdadeiro abuso. Tomada a Lógica geral por orgânon, tem o nome de Dialética.
Por diferente que seja a significação dada pe­los antigos a essa palavra da nossa, pode-se, sem embargo, deduzir do uso que realmente faziam, que a Dialética para eles era só a Lógica da apa­rênçia; quer dizer, uma arte sofistica, própria para dar à sua ignorância e aos seus artificios precon­cebidos o verniz da verdade, tratando de imitar o método fundamental que prescreve a Lógica em geral e auxiliados pela Tópica para dar curso às mais vãs alegações. Mas convém repetir, e é uma advertência que tanto tem de segura quanto de útil, que a Lógica geral, considerada como orgâ­non, é sempre uma Lógica de aparência, quer dizer, Dialética.
Porque como nos não ensina nada sobre o con­teúdo do conhecimento, e só se limita a expor as condições formais da concordância do conheci­mento com o entendimento, condições que, por ou­tro lado, são por completo indiferentes aos objetos, resulta que a pretensão de servir-se desta Lógica como de instrumento (orgânon) para estender e aumentar os seus conhecimentos só pode conduzir a uma pura parolagem, pela qual se afirma ou se nega aquilo que se deseja com a mesma aparência de razão. Tal ensinamento está totalmente em oposição à dignidade da Filosofia. Por isso, é justo aplicar o nome de Dialética à aparência dialética. Neste sentido é que aqui a compreendemos.

IV – Divisão da Lógica transcendental em analítica e Dialética transcendental

Na Lógica transcendental, nós isolamos o en­tendimento (como na Estética transcendental iso­lamos a sensibilidade), e só tomamos do nosso co­nhecimento a parte do pensamento que só tem sua origem no entendimento. Mas há antes, no uso deste conhecimento puro, uma condição que se supõe a saber: que os objetos a que possa aplicar-se nos tenham sido dados na intuição, por­que sem intuições carece de objetos todo o nosso conhecimento e está inteiramente vazio.
A parte da Lógica transcendental que expõe os elementos do conhecimento puro do entendimento e os princípios sem os quais nenhum objeto em geral pode ser pensado, é a Analítica transcenden­tal. Ela é ao mesmo tempo uma Lógica da verda­de.
Com efeito, nenhum conhecimento pode estar em contradição com esta Lógica sem logo perder todo o seu conteúdo, quer dizer, toda relação com – algum objeto, por conseguinte, toda verdade.
Mas como é muito atraente, muito sedutor servir-se desses conhecimentos e princípios puros do entendimento sem consideração à experiência, ou mesmo saindo dos limites da experiência, única que nos pode fornecer a matéria à qual se aplicam estes conceitos puros, o entendimento corre o risco de fazer, por meio de raciocínios vãos, um uso ma­terial dos princípios simplesmente formais do en­tendimento puro, e de pronunciar indistintamente sobre objetos que nos não são dados e que talvez não o possam ser de nenhuma maneira.
Se a Lógica, pois, não deve ser mais do que um campo que só serve para julgar o uso empírico dos conceitos do entendimento, é um verdadeiro abuso querer fazê-la passar por um orgânon com uso universal e ilimitado e aventurar-se, com ape­nas o entendimento puro, a emitir julgamentos sintéticos sobre os objetos em geral e decidir dizer algo sobre eles. É neste caso que o uso do enten­dimento puro é dialético.
A segunda parte da Lógica transcendental de­ve, pois, ser uma crítica desta aparência dialética; e se porta o título de Dialética transcendental, não é como arte de suscitar dogmaticamente essa apa­rência (arte, por infelicidade, muito difundida da fantasmagoria filosófica), mas como crítica do en­tendimento e da razão em seu uso hiperfísico, crítica tendo por fim descobrir a falsa aparência que cobre suas vãs pretensões, e de limitar esta ambi­ção que se vangloria de achar e estender o conhe­cimento unicamente por meio de leis transcenden­tais, e julgar e controlar somente o entendimento puro e a premuni-lo contra as ilusões sofisticas.


--------------------------------------------------------------------------------

Primeira Divisão da Lógica Transcendental – Analítica Transcendental
Esta analítica é a decomposição de todo nosso conhecimento “a priori" nos elementos do conhe­cimento puro do entendimento. É preciso levar em conta os seguintes pontos: 1.° que os conceitos sejam puros e não empíricos; 2.° que os mesmos não pertençam à intuição e à sensibilidade, mas ao pensamento e ao entendimento; 3.° que sejam conceitos elementares diferentes dos derivados ou dos que são compostos; 4.° que seu quadro seja completo e abarque todo o campo do entendimento puro.
Esta perfeição de uma ciência não pode ser admitida com toda confiança, se ela não for mais do que um agregado formado por simples tentati­vas: ela só é possível por meio de uma idéia do todo do conhecimento “a priori” devida ao enten­dimento, e, pela divisão, precisa por isso mesmo dos conceitos que a constituem, em uma palavra, por meio de sua ligação em um sistema. O enten­dimento puro não se distingue somente de todo elemento empírico, mas ainda de toda sensibilida­de. Ele forma uma unidade que existe por si mes­ma, que subsiste em si mesma, e que não pode ser acrescida por qualquer adição de elemento estra­nho.
O conjunto de seu conhecimento formará, pois, um sistema compreensível e determinável, sob uma só idéia e cuja totalidade e organização servem para provar a legitimidade e valor de todos os elementos constitutivos do conhecimento. Mas esta parte da Lógica transcendental se divide em dois livros, compreendendo um os conceitos e ou­tro, os princípios do entendimento puro.


--------------------------------------------------------------------------------

LIVRO PRIMEIRO
DA ANALÍTICA TRANSCENDENTAL
Analítica dos conceitos

Entendo por analítica dos conceitos, não a análise dos mesmos ou o método, geralmente se­guido nas indagações filosóficas, consistente em decompor os conceitos que se apresentam para dar clareza ao seu conteúdo, mas a decomposição, ainda pouco intentada, da faculdade mesma do entendimento, para examinar a possibilidade dos conceitos “a priori” que buscamos somente no en­tendimento, como no seu lugar de origem, e consi­derar, em geral, a aplicação pura desta faculdade. Tal é o objeto da Filosofia transcendental; o res­tante é o estudo lógico dos conceitos, tal como se usa na Filosofia.
Seguiremos os conceitos puros até as suas raí­zes ou seus primeiros rudimentos, no entendi­mento humano, onde existiam precedentemente, à espera da experiência para o seu desenvolvimento e que, livres por esse mesmo entendimento das condições empíricas que lhes são inerentes, che­guem a ser expostos em toda a sua pureza.


--------------------------------------------------------------------------------

CAPÍTULO I
Orientação para a descoberta de todos os conceitos puros do entendimento

Ao exercitar a faculdade de conhecer em de­terminadas circunstâncias, apresentam-se diferen­tes conceitos que mostram a existência desta faculdade, e que podem ser expostas em uma lista mais ou menos extensa, segundo seja a sua obser­vação mais detida e profunda. Não se pode assina­lar, com segurança, o termo desta indagação, cujo procedimento é, para dizer assim, mecânico.
Existem também conceitos, que se descobrem só ocasionalmente, e que não estão em uma ordem dada nem em uma unidade sistemática. A ordena­ção destes conceitos só pode fazer-se mediante certas analogias e a importância de seu conteúdo, indo do simples ao composto; tal série nada possui de sistemático ainda que tenha sido realizada me­todicamente.
A Filosofia transcendental tem a vantagem, e por seu turno a missão, de investigar estes concei­tos, segundo um princípio porque procedem do entendimento puro e sem mescla alguma, como de uma unidade absoluta, e devem, por conseguinte, compor-se entre si sob um conceito ou idéia. Mas tal composição proporciona uma regra, segundo a qual o lugar de cada conceito puro do entendimen­to, e a integridade de seu conjunto, podem ser de­terminados “a priori”, pois dependeriam do capri­cho ou do azar, em caso contrário.


--------------------------------------------------------------------------------

Primeira Seção

Orientação Transcendental Para a Descoberta de Todos os Conceitos do Entendimento

Do uso lógico do entendimento em geral

O entendimento foi definido, antes, de uma maneira puramente negativa: uma faculdade de conhecer não sensível. Pois bem; como não pode­mos ter nenhuma intuição independente da sensi­bilidade, não é portanto o entendimento uma fa­culdade intuitiva. Mas fora da intuição, não há outra maneira de conhecer senão por conceitos. É, por conseguinte, o conhecimento do entendimento, pelo menos o do homem, um conhecimento por conceitos, quer dizer, não intuitivo, mas discursi­vo.
Todas as intuições enquanto sensíveis apóiam-se nas afeições, mas os conceitos supõem funções. Entendo por função a unidade de ação para ordenar diferentes representações sob uma comum a todas elas. Fundam-se, pois, os conceitos na espontaneidade do pensamento, do mesmo modo que as intuições sensíveis na receptividade das impressões. O entendimento não pode fazer destes conceitos outro uso senão julgar por seu in­termédio.
Como nenhuma representação se refere ime­diatamente ao objeto, a não ser a intuição, nunca um conceito se referirá imediatamente a um ob­jeto senão a qualquer outra representação desse objeto (seja intuição, seja conceito). O juízo é, pois, o conhecimento mediato de um objeto, por conseguinte, a representação de uma representa­ção do objeto. Em todo juízo há um conceito apli­cável a muitas coisas e que sob esta pluralidade compreende também uma representação dada, a qual se refere imediatamente ao objeto. Assim, por exemplo, no juízo: todos os corpos são divisíveis, o conceito de divisibilidade se refere também a ou­tros, entre os quais se faz aqui uma relação espe­cial ao conceito de corpo, referido por seu turno a certos fenômenos que se oferecem à nossa vista. Assim, pois, estes objetos são representados pelo conceito de divisibilidade.
Todos os juízos são função da unidade entre as nossas representações, que, em lugar de uma re­presentação imediata, substitui outra mais ele­vada que compreende em seu seio a esta e outras muitas e que serve para o conhecimento do objeto reunindo deste modo muitos conhecimentos possí­veis em um só. Mas podemos reduzir todas as ope­rações do entendimento a juízos; de modo que o entendimento em geral pode ser representado como a faculdade de julgar. Porque, segundo o que precede, é uma faculdade de pensar.
O pensamento é o conhecimento por conceitos. Mas os conceitos se relacionam como predicados de juízos possíveis com uma representação qual­quer de um objeto ainda indeterminado. Assim, o conceito de corpo significa algo, por exemplo, um metal que pode ser conhecido mediante aquele conceito. É, pois, somente, conceito conquanto diante as quais pode referir-se a objetos. É, pois, o predicado de um juízo possível, por exemplo, des­te: todo metal é um corpo. As funções do entendi­mento podem ser achadas se se expõem com cer­teza as funções de unidade no juízo. A seção que segue mostrará que isto pode ser feito perfeita­mente.


--------------------------------------------------------------------------------

Segunda Seção

9

Da função lógica do entendimento no juízo

Se abstraímos todo o conteúdo de um juízo em geral e somente atendemos à pura forma do en­tendimento, acharemos que a função do pensa­mento no juízo pode compreender-se sob quatro tí­tulos que contêm, respectivamente, cada um, três momentos. Podem ser facilmente representados no seguinte quadro:

Tábua das Categorias

1
QUANTIDADE DOS JUÍZOS
Gerais
Particulares
Singulares
2
QUALIDADE
Afirmativos
Negativos
Indefinidos 3
RELAÇÃO
Categóricos
Hipotéticos
Disjuntivos
4
MODALIDADE
Problemáticos
Assertórios
Apodíticos

Como esta divisão parece diferir em alguns pontos, ainda que não essenciais, da técnica usada pelos lógicos, serão úteis as seguintes observações, para evitar uma má interpretação.
1.° Os lógicos dizem, com razão, que no uso que se faz dos juízos nos raciocínios pode-se tratar do mesmo modo os juízos singulares e os gerais. Porque, precisamente, eles não têm extensão, seu predicado não pode ser referido simplesmente a uma parte do que contém o conceito do sujeito e ser excluído do restante. Ele se aplica, pois, a todo esse conceito sem exceção, como se se tratasse de um conceito geral, a cuja extensão conviria o pre­dicado. Mas se comparamos um julgamento singu­lar com um julgamento geral, a título simples­mente de conhecimento e sob o ponto de vista da quantidade, veremos que o primeiro está para o segundo assim como a unidade está para o infini­to, e que, por conseguinte, é em si essencialmente distinto.
Se examinarmos um juízo singular “judicium singulare”, não somente quanto ao seu valor in­trínseco, como também como conhecimento em geral, segundo a quantidade que tem em compa­ração com outros conhecimentos, é, indubitavel­mente, distinto dos juízos gerais “judicia commu­nia”, e merece um lugar particular em uma tábua perfeita dos momentos do pensamento em geral (ainda que seguramente não em uma lógica limi­tada puramente ao uso dos juízos em si).
2.° De igual modo, em uma lógica transcen­dental, os juízos indefinidos devem ser distingui­dos dos julgamentos afirmativos, ainda que na ló­gica geral estejam incluídos na mesma posição e não formem subdivisão à parte. Esta última (lógi­ca) faz abstração de toda a matéria do predicado (mesmo quando for negativo) e considera somente se esse atributo pertence ao sujeito ou lhe é opos­to.
A primeira, pelo contrário, considera também o juízo quanto à matéria ou conteúdo desta afir­mação lógica, feita mediante um atributo pura­mente negativo, e indaga o que esta afirmação re­presenta para o conhecimento em geral. Se digo da alma: ela não é mortal, livro-me, mediante um juízo negativo, pelo menos de um erro. Pela pro­posição: a alma não é mortal, afirmei segundo a forma lógica, colocando a alma na ílimitada cir­cunscrição dos seres imortais. Porque constituindo o mortal uma parte de toda a extensão dos seres possíveis, e o imortal a outra parte, por minha proposição não se disse outra coisa senão que a alma é uma dentre as muitas coisas que permane­cem quando se tirou delas tudo quanto é mortal.
Mas a esfera indefinida de tudo o que é possí­vel foi somente limitada enquanto se separou dela tudo quanto é mortal, e colocou-se a alma na parte restante. Porém este espaço permanece sempre indefinido e muitas partes poderiam suprimir-se sem que por este conceito de alma aumentasse num mínimo e pudesse ser determinado afirmati­vamente. Estes juízos indefinidos, em relação à circunscrição lógica, são realmente limitativos em relação à matéria do conhecimento em geral, e por isto não devem omitir-se na tábua transcendental de todos os momentos do pensamento nos juízos, porque a função exercida aqui pelo entendimento quiçá possa ser importante no campo de seu co­nhecimento puro “a priori”.
3.° Todas as relações do pensamento são: a) do predicado ao sujeito; b) do princípio à conseqüência; c) do conhecimento dividido e de todos os membros da divisão entre si.
Na primeira espécie de juízo só se consideram os conceitos, na segunda os juízos, na terceira muitos juízos relacionados uns com os outros. Esta proposição hipotética: se há uma justiça per­feita o delinqüente será punido, contém propria­mente a relação de duas proposições que são: “há uma justiça perfeita” e “o delinquente será casti­gado”. Fica aqui sem solução a verdade peculiar de cada uma destas proposições, pensando-se nesse juízo somente na consequência.
Finalmente, o juízo disjuntivo contém uma re­lação de duas ou mais proposições entre si; não de conseqüência mas de oposição lógica, no sentido de que a esfera de uma exclui a esfera de outra. Contém ainda uma relação de comunidade en­quanto juntas ambas as esferas completam a do conhecimento próprio. Contém pois uma relação das partes da esfera de um conhecimento, posto que a esfera de cada uma dessas partes é a parte complementar da outra relativamente ao conjunto do conhecimento próprio, por exemplo: “O mundo existe ou por uma causa acidental, ou por uma necessidade interna, ou por uma causa externa.”
Cada uma destas quatro proposições compre­ende uma parte da esfera do conhecimento possí­vel da existência do mundo em geral; todas juntas compõem a esfera total. Excluir o conhecimento de uma dessas esferas é colocá-lo em uma das ou­tras; pelo contrário, colocá-lo em uma delas é excluí-lo das restantes. Há, pois, em um juízo dis­juntivo uma certa comunidade de conhecimentos que, excluindo-se reciprocamente uns e outros, de­terminam não obstante no todo o verdadeiro co­nhecimento, posto que tomando-os em conjunto, constituam o objeto total de um conhecimento particular dado. Creio ser suficiente o que fica di­to, para a compreensão do que segue.
4.° A modalidade dos juízos é uma função completamente particular dos mesmos, cujo cará­ter proeminente é o fato de não entrarem no con­teúdo dos juízos (conteúdo esse formado pela quantidade, pela qualidade e pela relação), mas sim referir-se unicamente ao valor da cópula em relação com o pensamento em geral. Juízos pro­blemáticos são aqueles em que se aceita a sua afirmação ou sua negação, somente como possí­veis (voluntárias); assertóricos são aqueles que são considerados como reais (verdadeiros); apodi­ticos, aqueles cuja afirmação ou negação são ne­cessárias. Assim, os dois juízos cuja relação cons­titui o juízo hipotético, (“antecedens et conseqüens”), e os que por sua reciprocidade formam o disjuntivo (membros da divisão), são ambos so­mente problemáticos.
No exemplo precedente, o juízo “se há uma justiça perfeita” não está posto assertoricamente, mas somente pensado como um juízo arbitrário, que pode ser admitido por qualquer um, não ha­vendo senão a conseqüência como assertórica. Donde se segue que tais juízos podem ser manifes­tamente falsos e, não obstante, tomados problema­ticamente, servir de condições ao conhecimento da verdade. Assim este juízo: “o mundo é o efeito de um cego azar”, não tem, no julgamento disjunti­vo, senão uma significação problemática, isto é, qualquer um poderia admiti-lo por um momento; e, portanto (como indicação de uma falsa rota no número de todas aquelas que se pode seguir), serve para achar o verdadeiro caminho.
A proposição problemática é aquela que não exprime senão uma possibilidade lógica (que não é objetiva), quer dizer, uma Livre escolha que se po­deria fazer como valível, ou um ato puramente ar­bitrário em virtude do qual se admitiria no enten­dimento; a proposição assertórica anuncia uma realidade ou verdade, quase o mesmo que em um raciocínio hipotético no qual o antecedente é pro­blemático na maior, assertórico na menor e mos­tra que a proposição se acha ligada com o enten­dimento segundo as leis que a regem.
A proposição apodítica concebe a proposição assertórica como determinada por estas leis mes­mas do entendimento e, afirmando, por conseguin­te, “a priori”, manifesta em certa maneira uma necessidade lógica. Estas três funções de modali­dade podem ser designadas “como momentos do pensamento em geral”, porque tudo se une aqui gradualmente ao entendimento, de tal sorte, que o que antes se julgava como problemático, toma-se depois assertoricamente como verdadeiro, para concluir, por fim, por uni-lo inseparavelmente com o entendimento, quer dizer, por afirmá-lo como necessário e como apodítico.


--------------------------------------------------------------------------------

Terceira Seção

10

Dos conceitos puros do entendimento ou categorias

A Lógica geral abstrai, como já dissemos, toda a matéria do conhecimento e espera que lhe sejam dadas representações de outra parte, de onde quer que seja, para convertê-las em conceitos mediante a análise. A Lógica transcendental, pelo contrário, tem por objeto uma diversidade de elementos sen­síveis “a priori”, que lhes oferece a Estética trans­cendental para servir de matéria aos conceitos pu­ros do entendimento, e sem o qual careceria a Ló­gica de objeto, sendo por conseguinte completa­mente vazia.
O espaço e o tempo contêm, certamente, uma diversidade de elementos da intuição pura “a prio­ri”; mas, sem embargo, pertencem à condicionali­dade receptiva do nosso espírito, sob a qual uni­camente podem receber-se as representações dos objetos e por conseguinte afeta sempre também ao seu conceito. Mas a espontaneidade de nosso pen­samento exige para fazer desta diversidade um conhecimento, que primeiramente tenha sido per­corrida, recebida e enlaçada de certa maneira. Esta operação denomina-a síntese.
Entendo por síntese, em sua mais alta signifi­cação, a operação de reunir as representações umas com as outras e resumir toda a sua diversi­dade em um só conhecimento. Esta síntese é pura, quando a diversidade não é empírica, mas dada “a priori” (como a do espaço e do tempo). As repre­sentações devem ser anteriores a toda análise, e não há conceitos cuja matéria possa ser explicada analiticamente.
Mas a síntese de uma diversidade (seja dada a priori" ou “a posteriori”) produz desde logo um conhecimento que em seu princípio pode ser in­forme e confuso e que, por isso mesmo, necessite de análise; mas a síntese é, não obstante, a que propriamente junta os elementos para o conheci­mento e os reúne de certa maneira para dar-lhes conteúdo; é, pois, o primeiro a que devemos dedicar nossa atenção quando queremos julgar a origem de nossos conhecimentos.
É a síntese em geral, como proximamente ve­remos, a simples obra da imaginação, quer dizer, uma função cega, ainda que indispensável, da al­ma, sem a qual não teríamos conhecimento de nada, função de que raras vezes temos consciên­cia. Mas é uma função que pertence ao entendi­mento, e que é a única que nos procura o conhe­cimento propriamente dito, o reduzir esta síntese a conceitos.
A síntese pura, representada geralmente, nos dá o conceito intelectual. Mas entendo por síntese pura, a que se funda em um princípio da unidade sintética “a priori”. Assim nossa numeração (o que se nota melhor ainda nos números elevados) é uma síntese segundo conceitos, porque tem lugar segundo um princípio comum de unidade (p. ex.: o decimal). Sob esse conceito é necessária a uni­dade na síntese da diversidade. Podem submeter-se, mediante a análise, diferentes representações a um só conceito, assunto de que se ocupa a Lógica geral. A Lógica transcendental, pelo contrário, en­sina a submissão aos conceitos, não das representações, mas da síntese pura das representações.
O que primeiramente nos deve ser dada “a priori”, para facilidade do conhecimento de todos os objetos, é a diversidade de elementos da intui­ção pura; a síntese desta diversidade pela imagi­nação é o segundo, ainda que, todavia, não dê co­nhecimento nenhum. Os conceitos que dão uni­dade a esta síntese pura, e que consistem unica­mente na representação desta unidade sintética necessária, são a terceira condição para o conhe­cimento de um objeto qualquer e assentam no en­dendimento.
A mesma função que dá unidade às diferentes representações, em um só juízo, é a que dá tam­bém unidade à simples síntese de diferentes repre­sentações em uma só intuição, que, em sentido geral, denomina-se conceito puro do entendimen­to. Exercendo precisamente o entendimento às mesmas operações, em virtude das quais dá aos conceitos a forma lógica de um juízo, mediante a unidade analítica, introduz também uma matéria transcendental em suas representações mediante a unidade sintética dos elementos diversos na in­tuição em geral. Por esta razão, se chamam con­ceitos puros intelectuais que se referem “a priori”, aos objetos, o que não pode fazer a Lógica geral. De modo que há tantos conceitos puros de enten­dimento, que se referem “a priori” aos objetos da intuição em geral como funções lógicas segundo a precedente tabela em todos os juízos possíveis. Porque o entendimento se acha completamente esgotado e toda a sua faculdade perfeitamente re­conhecida e medida nessas funções. Denomina­remos a esses conceitos categoriais, seguindo a Aristóteles, pois igual é o nosso fim, embora haja muita diferença na execução.

Tábua das Categorias

1
DE QUANTIDADE
Unidade
Pluralidade
Totalidade
2
DE QUALIDADE
Realidade
Negação
Limitação 3
DE RELAÇÃO
Substância e acidente
Causalidade e dependência
(Causa e efeito)
Comunidade
(Reciprocidade entre agente e paciente)
4
DE MODALIDADE
Possibilidade – Impossibilidade
Existência – Não-existência
Necessidade – Contingência

Esta é, pois, a classificação de todos os concei­tos originalmente puros da síntese, que o enten­dimento contém em si “a priori” e pelos quais é um entendimento puro somente: só por eles pode compreender algo na diversidade da intuição, quer dizer, pode pensar o objeto. Esta divisão é siste­maticamente deduzida de um princípio comum, a saber: da faculdade de julgar, que é o mesmo que a faculdade de pensar. Não é, pois, esta divisão uma rapsódia procedente de uma indagação for­tuita e sem ordem dos conceitos puros de cuja per­feição não se pode estar certo, por haver sido for­mada por indução, sem pensar que obrando deste modo não se sabe nunca por que estes conceitos, e não outros, são inerentes ao entendimento puro.
O propósito de Aristóteles, ao buscar estes conceitos fundamentais, era digno de um homem tão elevado. Mas como ele não tinha um princípio, recolhia-os conforme se apresentavam e reuniu primeiramente dez, a que chamou categorias (predicamentos). Depois acreditou encontrar toda­via outros cinco e os aditou aos precedentes com o nome de pós-predicamentos. Mas sua tábua conti­nuou sendo imperfeita.
Ademais, entre as suas categorias há alguns modos da sensibilidade pura (quando, “ubi, situs”, o mesmo que “prius, simil”) e também um modo empírico (“motus”) que não pertence de modo al­gum a esta tábua genealógica do entendimento. Contava também entre os conceitos primeiros os derivados (“actio, passio”), faltando por outro lado alguns dos conceitos primeiros.
É preciso notar quanto aos conceitos primiti­vos que as categorias, como conceitos verdadei­ramente fundamentais do entendimento puro, pos­suem também os seus derivados não menos puros e que não podem de modo algum omitir-se em um sistema completo de Filosofia transcendental mas limito-me a mencioná-los neste ensaio puramente crítico.
Seja-me permitido chamar a esses conceitos puros do entendimento, mas derivados, os predi­cáveis do entendimento puro (por oposição aos predicamentos). Uma vez de posse dos conceitos primitivos e originais é fácil obter os derivados e subalternos, e fica então a árvore genealógica do entendimento puro completamente traçada. Não me proponho aqui tratar da totalidade de um sis­tema mas unicamente de seus princípios, reservo-me este complemento para outro trabalho.
Mas isto pode facilmente conseguir-se to­mando manuais ontológicos e aditando, por exem­plo: à categoria de causalidade, os predicados de força, de ação, de paixão; à de comunidade, os predicáveis de presença, de oposição; à de modali­dade, os predicáveis de nascimento, morte, de mudança, e assim sucessivamente. Ao combinar as categorias entre si ou com os modos da pura sensibilidade, resultam grande número de concei­tos derivados “a priori”. Ainda que sua enumera­ção fosse uma obra útil e agradável, podemos escusar-nos desse trabalho.
Omito intencionalmente a definição destas ca­tegorias neste tratado, ainda que bem o pudesse fazer. Analisarei estes conceitos mais adiante tão fundamentalmente como exige a metodologia que me ocupa. Em um sistema da razão pura, seriam exigíveis essas definições com o pleno direito; mas aqui não fariam mais que fazer perder a atenção para o ponto capital da indagação, porque produzi­riam dúvidas e objeções que sem faltar ao nosso objeto essencial podemos relegar para outro traba­lho.
Resulta claramente do pouco que temos dito que é possível e fácil formar um vocabulário com­pleto dos conceitos puros contendo todas as expli­cações necessárias. Disposta a fôrma, só resta enchê-la: e uma Tópica sistemática como a atual indica facilmente o lugar que propriamente per­tence a cada conceito e faz ao mesmo tempo notar os que ainda estão vazios.

* * *

11

Podem fazer-se sobre esta tábua das catego­rias considerações mui curiosas, suscetíveis de proporcionar-nos talvez conseqüências mui impor­tantes para a forma científica de todos os conhe­cimentos racionais. Com efeito, é fácil compreen­der que esta tábua serve extraordinariamente para a parte teórica da Filosofia e é indispensável para o plano completo de uma ciência, enquanto tal ciência se baseie em princípios “a priori” e para dividi-la matematicamente segundo princípios de­terminados.
Basta para convencer-se disto pensar que esta tábua contém completamente todos os conceitos elementares do entendimento e também a forma do sistema dos mesmos na inteligência humana, e que, por conseguinte, nos indica todos os momen­tos de uma ciência especulativa projetada assim como também sua ordenação, como já provei em outra parte. Eis aqui algumas dessas observações.
Primeira observação: Esta tábua de catego­rias, que compreende quatro classes de conceitos, divide-se primeiramente em duas partes, das quais a primeira se refere aos objetos da intuição (pura ou empírica) e a segunda à existência destes obje­tos (seja em relação entre si ou com o entendi­mento).
Denominaria à primeira classe destes concei­tos categorias matemáticas e, à segunda, catego­rias dinâmicas. Só a segunda classe possui corre­lativos, enquanto que a primeira carece dos mes­mos. Esta diferença deve, sem embargo, ter uma razão na natureza do entendimento.
Segunda observação: Em cada classe é o mesmo número das categorias, a saber, três: o que não pode menos atrair a atenção, pois que toda ou­tra divisão por conceitos “a priori” deve ser uma dicotomia. Ainda pode aditar-se a isto, que a ter­ceira categoria resulta sempre da união da pri­meira com a segunda de sua classe.
Assim, a totalidade é a pluralidade conside­rada como unidade; a limitação, a realidade em união com a negação; a comunidade, a causali­dade de uma substância determinada por outra que ela por seu turno determina, e, finalmente, a necessidade, a existência dada pela mesma possi­bilidade. Mas não se pense por isto que a terceira categoria é um conceito simplesmente derivado do entendimento puro e que não seja um conceito primitivo do mesmo. Porque a união da primeira e da segunda categorias para produzir a terceira exige um ato especial do entendimento que é dis­tinto dos que têm lugar na primeira e na segunda.
Assim, o conceito de um número (que pertence à categoria de totalidade) não é sempre possível ali donde se encontrem os conceitos de pluralidade e de unidade (por exemplo, na representação do infinito); nem porque eu una o conceito de causa e de substância se entende imediatamente a in­fluência, quer dizer, como uma substância pode ser causa de algo em outra substância. Clara­mente se vê que para isto é necessário um ato es­pecial do entendimento; e assim sucede com todas as restantes.
Terceira observação: Tão-só em uma catego­ria de comunidade, compreendida no título III, não é tão evidente como nas demais sua confor­midade com a forma do juízo disjuntivo que lhe corresponde na tábua das funções lógicas.
Para certificar-se desta conformidade, é pre­ciso notar que em todos os juízos disjuntivos sua esfera (o conjunto de tudo o que é compreendido em um destes juízos) é representada como um todo dividido em partes (os conceitos subordina­dos); mas como nenhuma destas partes se acha contida nas outras, devem ser concebidas como coordenadas e não como subordinadas, de tal modo que se determinem entre si, não sucessiva e parcialmente como em uma série, mas mutua­mente como em um agregado, de modo que, afir­mado que seja um membro da divisão, exclua aos restantes, e assim respectivamente.
Concebendo-se, pois, semelhante enlace em um todo de coisas, uma dessas coisas não está, com efeito, subordinada à outra como causa de sua existência, mas ambas estão coordenadas ao mesmo tempo e reciprocamente como causas uma da outra com referência a sua determinação (p. ex.: em um corpo cujas partes se atraem e re­pelem mutuamente). Tal enlace é diferente do que se acha na simples relação de causa e efeito (de. fundamento e conseqüência) no qual a conseqüência não determina por sua vez reciproca­mente o princípio, e por essa razão não forma um todo com ele (como o Criador com o Mundo).
O processo do entendimento quando se repre­senta a esfera de um conceito dividido, é o mesmo que segue quando pensa uma coisa como divisí­vel: e do mesmo modo que no primeiro caso os membros da divisão se excluem uns aos outros, ainda que estejam, todavia, reunidos em uma esfera, se representam as partes de uma coisa divi­sível, como tendo cada uma (como substância) uma existência independente das outras, e reuni­das, não obstante, em um todo.

* * *

12

Encontra-se também na Filosofia transcenden­tal dos antigos um capitulo que contém conceitos puros do entendimento, que, embora não fossem incluídos entre as categorias, eram tidos como de­vendo ter o valor de conceitos “a priori” de obje­tos. Mas se isso fosse assim, seria aumentado o número das categorias, o que não pode ser. Esses conceitos são expressos por esta proposição tão cé­lebre entre os escolásticos: “quod libet ens est unum, verum, bonum”.
Embora no uso este princípio tenha levado a singulares conseqüências (quer dizer, a proposi­ções evidentemente tautológicas), se bem que em nossos dias somente por conveniência se faz men­ção do mesmo na Metafísica; todavia um pensa­mento que resistiu por tão longo tempo, por vazio que pareça, merece sempre uma pesquisa de sua origem, e justifica a suposição que tenha o seu próprio fundamento em alguma regra do entendi­mento que, como sucede com freqüência, teria sido somente mal interpretada. Esses pretendidos predicados transcendentais das coisas não são nada mais que exigências lógicas e critérios de todo conhecimento das coisas em geral, à qual dão por fundamento as categorias da quantidade, quer dizer, da unidade, da pluralidade e da totalidade.
Estas categorias, que devem ser consideradas com um valor material como condições para a possibilidade das coisas, eram usadas exclusivamente pelos antigos em sentido formal como exi­gências lógicas de todo conhecimento e por sua vez convertidos estes critérios do pensamento, de uma maneira inconseqüente, em propriedades das coisas mesmas.
Em todo conhecimento de um objeto existe propriamente a unidade do conceito que pode chamar-se unidade qualitativa Considerando so­mente sob ela o conjunto dos elementos diversos do conhecimento, como, por exemplo, a unidade do tema em um drama, em um discurso ou em uma fábula. Em segundo lugar, há que considerar a verdade em relação às conseqüencias. Quantas mais conseqüencias resultarem de um conceito dado, tantos mais caracteres há de sua realidade objetiva. Isto poderia chamar-se a pluralidade qualitativa dos signos que pertencem a um con­ceito comum (sem que sejam pensados como quantidades).
Finalmente, em terceiro lugar, é preciso ter em conta a perfeição, que consiste em que a plura­lidade por sua vez se refira à unidade do conceito e que concorde completa e unicamente com este, o que se pode chamar integridade qualitativa (tota­lidade). Donde resulta que estes três critérios lógi­cos da possibilidade dos conhecimentos em geral transformam aqui por meio da qualidade de um conhecimento tomada como princípio, às três ca­tegorias do quantum, deve tomar-se como cons­tantemente homogênea e somente com o fim de enlaçar na consciência elementos heterogêneos de conhecimento.
O critério da possibilidade de um conceito (não do objeto mesmo) é a definição, da qual a unidade do conceito, a verdade de tudo aquilo que pode ser derivado imediatamente dele, e finalmente a inte­gridade do mesmo resulta, são indispensáveis para a formação do conceito total. Assim, também, o critério de uma hipótese consiste na inteligibili­dade do princípio de explicação admitido ou em sua unidade (sem hipótese mediadora); na ver­dade das conseqüencias derivadas, concordâncias destas com a experiência, e finalmente na integridade do princípio de explicação com respeito a es­sas conseqüencias que deixam no mesmo estado o que se tomou como hipótese, e para o que se pen­sou sinteticamente “a priori” o procuram de novo analiticamente, “a posteriori”, conformando-se ade­mais com eles.
Os conceitos de unidade, verdade e perfeição, não completam de modo algum a lista transcen­dental das categorias como se fosse defeituosa, mas a relação desses conceitos a objetos, sendo posta de lado, o uso que faz dela o espírito entra nas regras lógicas gerais do acordo do conheci­mento consigo mesmo.


--------------------------------------------------------------------------------

CAPÍTULO II
Dedução dos Conceitos Puros do Entendimento
Primeira Seção

13

Dos princípios de uma dedução transcendental em geral

Quando os jurisconsultos falam de direito e de usurpações, distinguem no caso a questão do di­reito “quid juris”, da questão de fato “quid facti”; e, como exigem uma prova de cada uma delas, denominam dedução à primeira, que é aquela que deve demonstrar o direito ou a legitimidade da pretensão (dedução).
Servimo-nos de um grande número de concei­tos empíricos sem achar oposição alguma; e nos cremos autorizados também sem dedução para atribuir-lhes um sentido imaginado, porque sem­pre temos à mão a experiência como para demons­trar a sua realidade objetiva.
Por outro lado existem conceitos usurpados como os de destino, etc., que circulam com uma aquiescência quase geral, contra os quais ocorre às vezes perguntar: “quid juris?”, não sendo então pequeno o obstáculo que oferece ao deduzi-los, visto como não se pode alegar nenhum princípio claro de direito, seja da experiência, seja da razão, que justifique o seu uso.
Mas entre os numerosos conceitos que formam o complicadíssimo tecido do conhecimento humano, alguns há destinados a um uso puro “a priori” (completamente independentes de toda experiên­cia) e cujo direito necessita sempre uma dedução porque os quadros tomados da experiência não bastam para estabelecer a legitimidade de um tal uso, sendo, não obstante, preciso saber como esses conceitos podem referir-se a objetos que não pro­cedem de experiência alguma.
Denomino dedução transcendental à explica­ção do modo como se referem a objetos-conceitos “a priori”, e a distingo da dedução empírica que indica a maneira como um conceito foi adquirido por meio da experiência e de sua reflexão, e que, portanto, não concerne à sua legitimidade, mas ao fato mesmo de que resulta a aquisição deste con­ceito. Temos já duas espécies bem distintas de conceitos, mas que têm de comum o referir-se completamente “a priori” a objetos, a saber: os conceitos de espaço e de tempo, como formas da sensibilidade, e as categorias como conceitos do entendimento.
Querer buscar neles uma dedução empírica, fora vão intento, porque o distintivo que os carac­teriza se refere aos seus objetos sem haver tomado da experiência qualquer elemento para a sua re­presentação. Se pois uma dedução desses concei­tos é necessária cumpre que ela sempre seja transcendental. Entretanto, desses conceitos, como de todo conhecimento, pode-se procurar experiência, na falta do princípio da sua possibili­dade, as causas ocasionais de sua produção; com efeito, as impressões dos sentidos nos oferecem primeiro motivo para desenvolver toda nossa faculdade de conhecer e para constituir as experiên­cias.
Contém, pois, a experiência dois elementos bem distintos, a saber: uma matéria para o conhecimento, que oferecem os sentidos, e certa forma ordenadora desta matéria, procedente da fonte in­terna da intuição e do pensamento puro, que, uni­camente motivada pela primeira, produz os con­ceitos. É sumamente útil indagar os primeiros es­forços da nossa faculdade de conhecer para elevar-nos das percepções particulares a conceitos gerais.
O célebre Locke foi quem primeiro devassou esse caminho. Mas é impossível conseguir por esse meio uma dedução de conceitos puros “a priori”, pois não está de modo algum dentro desse cami­nho, porque relativamente ao seu uso futuro, que deve ser totalmente independente da experiência, necessitam mostrar um outro ato de nascimento que o faz derivar da experiência. Essa tentativa de derivação fisiológica, que não é, propriamente falando, uma dedução, porque diz respeito a uma questão de fato, eu a denominei explicação da posse de um conhecimento puro. É claro, portanto, que só pode haver desses conceitos senão por uma dedução transcendental, e de nenhum modo uma dedução empírica, e que esta não é, relativamente aos con­ceitos puros “a priori”, senão uma vã tentativa, de que se pode ocupar aquele que não compreendeu a natureza própria desta espécie de conhecimento.
Mas, ainda que não haja mais do que uma maneira possível de dedução do conhecimento puro “a priori”, a saber: a que se segue por via transcendental, disto não resulta que ela seja ab­solutamente necessária. Anteriormente seguimos os conceitos de espaço e tempo até as suas fontes, mediante uma dedução transcendental, e deter­minamos e explicamos “a priori” seu valor objeti­vo; não obstante, a Geometria segue os seus pas­sos seguros por conhecimentos puramente “a prio­ri", sem necessidade de pedir um certificado à Fi­losofia para a pura e legítima origem de seu con­ceito fundamental de espaço.
Entretanto, nesta ciência o uso do conceito al­cança somente ao mundo exterior sensível de que espaço é a forma pura de sua intuição. Tem, por conseguinte, todo conhecimento geométrico, uma existência imediata, porque ela se funda sobre uma intuição “a priori” e que os objetos são dados a priori” (quanto à forma) na intuição pelo co­nhecimento mesmo.
Os conceitos puros do entendimento, pelo contrário, fazem nascer em nós uma indispensável necessidade de procurar não somente sua dedução transcendental, mas também aquela do espaço. Com efeito, como os predicados que se atribuem aqui aos objetos não são aqueles da intuição e da sensibilidade, mas se relacionam a objetos em ge­ral, independentemente de todas as condições da sensibilidade; e como eles não são fundados sobre a experiência, não podem mostrar na intuição “a priori” nenhum objeto sobre o qual se funde a sua síntese anteriormente a toda experiência.
Daqui resulta que não somente fazem suspei­tar com respeito ao seu valor objetivo e aos limites de sua aplicação, como também convertem em duvidoso o conceito de espaço pela inclinação que tem em usá-lo além das condições da intuição sensível. É, portanto, necessária a presente dedu­ção transcendental do dito conceito, O leitor deve estar convencido da indispensável necessidade de semelhante dedução transcendental antes de dar um só passo no campo da razão pura; porque, de outro modo, procederia cegamente e, depois de haver vagado de um ponto para outro, voltaria à ignorância de onde partira. Mas é também preciso que antes dê conta das suas naturais dificuldades, para que se não queixe depois da obscuridade em que o assunto mesmo está envolvido, e para que não desfaleça muito cedo ante os obstáculos a transpor, porque se trata de renunciar completa­mente a toda pretensão com respeito à razão pura, em seu campo mais atraente, a saber: além dos limites de toda experiência possível, encami­nhando esta indagação crítica à sua completa per­feição.
Não nos foi difícil fazer compreender como os conceitos do espaço e do tempo, ainda que conhe­cimentos “a priori”, devem, necessariamente, referir-se a objetos, e como possibilitam um co­nhecimento sintético dos mesmos, independente­mente de toda experiência. Efetivamente, como somente mediante essas formas puras da sensibi­lidade pode oferecer-se-nos um objeto (quer dizer, ser objeto da intuição empírica), resulta que o es­paço e o tempo são intuições puras que contêm “a priori” as condições de possibilidade dos objetos como fenômenos, e tem a síntese nas mesmas um valor objetivo.
Não representam, pelo contrário, as categorias do entendimento, as condições sob as quais os ob­jetos se dão na intuição, e, por conseguinte, po­dem aparecer como tais objetos sem que necessa­riamente tenham que relacionar-se com as fun­ções do entendimento e sem que este contenha as condições “a priori” dos mesmos. Daqui resulta uma dificuldade, que não achamos no campo da sensibilidade, a de saber como as condições subje­tivas do pensar devem ter um valor objetivo, quer dizer, dar as condições de possibilidade de todo conhecimento de objetos, porque, indubitavelmen­te, podem oferecer-se fenômenos na intuição sem as funções do entendimento.
Tomo por exemplo o conceito de causa, que significa uma maneira especial de síntese, na qual se une algo A, segundo uma regra, a B, que lhe é totalmente diferente. Não se vê claramente “a priori” porque os fenômenos devam conter antes algo semelhante (porque as experiências não o provariam, posto que o valor objetivo deste con­ceito deve poder-sé demonstrar “a priori”), se o re­ferido conceito de causa é completamente vazio, e em parte alguma pode achar-se objeto entre os fe­nômenos. É evidente que os objetos da intuição sensível devem conformar-se com as condições formais da sensibilidade, existentes “a priori” em nosso espírito, pois que de outra maneira não se­riam objetos para nós outros; mas é dificil conce­ber porque esses objetos devem além disso estar de acordo com as condições que o entendimento necessita para a compreensão sintética do pensar.
Bem pudera ser que os fenômenos fossem de tal natureza que o entendimento não os achasse de modo algum conforme com as condições de sua unidade, e que tudo estivesse em tal confusão que, por exemplo, na sucessão dos fenômenos não exis­tisse nada capaz de fornecer uma regra de síntese, correspondente ao conceito de causa e efeito, e que fosse portanto dito conceito completamente vão, nulo e sem significação.
Não ofereceriam, por isto, os fenômenos me­ros objetos para a intuição, porque não necessito de maneira alguma das funções de pensar.
Pretendendo evitar o trabalho destas investi­gações dizendo-se que a experiência apresenta sem cessar exemplos desta espécie de regulari­dade nos fenômenos, que nos fornecem suficien­temente a ocasião de tirar delas o conceito de causa e confirma ao mesmo tempo o valor objetivo do mesmo conceito, olvida-se que o conceito de causa não pode produzir-se de modo algum desta maneira e que, ou deve achar-se fundado comple­tamente “a priori" no entendimento, ou abandonar-se totalmente como uma pura quimera. Porque o tal conceito exige necessariamente que A seja de tal espécie, que o B siga mediante uma re­gra absolutamente geral.
Os fenômenos apresentam casos de que se pode tirar uma regra segundo a qual acontece algo comumente, mas jamais se deduzirá daqui que a conseqüência seja necessária. Na síntese de causa e efeito há também uma dignidade que é impossí­vel exprimir empiricamente, a saber: que o efeito não se adita simplesmente à causa, mas, por esta mesma, se vê posto e produzido.
A estrita universalidade da regra não é tam­pouco uma propriedade das regras empíricas, por­que não pode receber na indução mais do que uma generalidade comparativa, quer dizer, uma extensa aplicação. O uso dos conceitos puros do entendimento variaria totalmente se tão-só se qui­sesse empregá-los como produtos empíricos.

Nenhum comentário: