quarta-feira, 12 de agosto de 2009

ESTUDOS SOBRE O LIVRO DE ÊXODO

— CAPÍTULO 1 —

A REDENÇÃO

Os Caminhos de Deus para com Israel
Pela graça de Deus, vamos agora encetar o estudo do Livro do Êxodo, cujo assunto principal é a REDENÇÃO. Os primeiros cinco versículos relembram as cenas finais do livro precedente. Os obje-tivos favorecidos do amor de Deus são postos perante nós, e depressa nos vemos conduzidos pelo autor inspirado à ação do livro.
No nosso estudo sobre o Livro do Génesis, vimos que o que levou os irmãos de José a descerem ao Egito foi o seu procedimento para com ele. Este fato deve ser considerado sob dois aspectos distintos. Em primeiro lugar podemos ver nele uma lição solene com o procedimento de Israel para com Deus; e em segundo lugar, temos nele uma lição cheia de estímulo no desenrolar dos planos de Deus a favor de Israel.
E, no tocante ao procedimento de Israel para com Deus, poderá haver coisa mais solene do que seguir até ao fim os resultados da maldade que cometeram contra aquele em quem a mente espiritual discerne um símbolo admirável do Senhor Jesus Cristo? Totalmen¬te indiferentes à angústia da sua alma, os filhos de Jacó entregaram José nas mãos dos incircuncisos, e qual foi o resultado1? Desceram ao Egito para aí passarem por aquelas profundas e dolorosas expe¬riências de coração tão gráfica e comovedoramente descritas nos capítulos finais do Génesis. E isto não foi tudo: uma época longa de provação estava reservada aos seus descendentes, no próprio país onde José encontrara um cárcere.
Porém, Deus intervinha em tudo isto, assim como o homem, e dispunha-Se a usar das Suas prerrogativas, que consiste em fazer com que do mal saia bem. Os irmãos de José puderam vendê-lo aos ismaelitas; os ismaelitas, por sua vez, venderam-no a Potif ar; e este lançou-o na prisão, mas o Senhor estava, acima de tudo, cumprindo os Seus poderosos desígnios. A cólera do homem redundará em Seu louvor (Sl 76:10). Ainda não tinha chegado a altura em que os herdeiros estariam preparados para a herança, nem a herança estava preparada para os herdeiros. Os fornos de tijolo iriam constituir uma escola severa para os descendentes de Abraão; enquanto que nos montes e vales da terra prometida (Dt 11:11) se acumulava a iniquidade dos amorreus.

Como Deus Cumpre seus Desígnios
Tudo isto é profundamente interessante e instrutivo. Há rodas que giram dentro de outras rodas no mecanismo do governo de Deus (Ez 1:16). O Senhor serve-Se duma variedade infinda de agentes para realizar os Seus propósitos inexcrutáveis. A mulher de Potifar, o copeiro do rei, os sonhos do Faraó, o cárcere, o trono, as cadeias, o sinete real, a fome—tudo está ao Seu soberano dispor, e tudo serve de instrumento no desenrolar dos Seus prodigiosos desígnios. A mente espiritual deleita-se em meditar nestas coisas ao percorrer o vasto domínio da criação e da providência e ao reconhe¬cer, em tudo, o mecanismo que o Deus Onisciente e Onipotente utiliza para executar os Seus propósitos de amorredentor.
É verdade que podemos ver muitos sinais da serpente, pegadas bem definidas do inimigo de Deus e do homem; coisas que não podemos explicar nem compreender; a inocência que sofre e a maldade que prospera podem dar certa aparência de verdade ao raciocínio dos incrédulos e cépticos; porém o verdadeiro crente descansa na certeza de que "O Juiz de toda a terra" fará justiça (Gn 18:25).
Bendito seja Deus pela consolação e encorajamento que nos dão estas reflexões! Precisamos delas a cada instante, ao atravessarmos este mundo de pecado, onde o inimigo tem feito mal aterrador, no qual os vícios e paixões dos homens produzem frutos tão amargos e onde o caminho do verdadeiro discípulo apresenta escabrosidades tais que a simples natureza jamais poderia suportar. A fé sabe, de certeza, que existe Alguém atrás dos bastidores a Quem o mundo não vê nem respeita, e, sabendo-o, pode dizer com serenidade: "tudo vai bem".
Estes pensamentos são-nos sugeridos pelas palavras no começo deste livro. "O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade" (Is 46:10), diz o Senhor.
O inimigo pode opor-se; mas Deus há-de estar sempre acima dele; e tudo que precisamos é de um espírito simples e pueril de confiança e descanso nos propósitos divinos. A incredulidade pre¬fere olhar para os esforços que o inimigo faz para neutralizar os planos de Deus, sem ter em conta o poder de Deus para lhes dar cumprimento. E para este poder que a fé volve os olhos, e assim obtém vitória e goza de paz constante. E com Deus que a fé tem que ver e a Sua infalível fidelidade. Não se apoia sobre as areias move¬diças das coisas humanas e das influências terrenas, mas sim na rocha inabalável da eterna Palavra de Deus. E esta a base sólida e santa da fé. Venha o que vier, permanece nesse santuário de força.
"Sendo, pois, José falecido, e todos os seus irmãos, e toda aquela geração." E depois? A morte poderia porventura prej udicar os desíg¬nios do Deus vivoi Certamente que não. Deus aguardava apenas o momento destinado, o momento oportuno, e então as influências mais hostis serviram de instrumento no desenrolar dos Seus planos.

Um Rei que não conhecia a Deus
"Depois, levantou-se um novo rei sobre o Egito, que não conhe¬cera a José, o qual disse ao seu povo: Eis que o povo dos filhos de Israel é muito e mais poderoso do que nós. Eia, usemos sabiamente para com ele, para que não se multiplique, e aconteça que, vindo guerra, ele também se ajunte com os nossos inimigos, e peleje contra nós, e suba da terra" (versículos 8-10). Vemos aqui o raciocínio de um coração que nunca aprendera a contar com Deus nos seus cálculos. O coração não-regenerado nunca o pode fazer, e por isso, quando Deus se revela, todos os seus argumentos caem por terra. Fora de Deus, ou indepen¬dentemente d'Ele, podem parecer muito prudentes, mas logo que Deus aparece em cena, vê-se que são perfeita loucura.
Mas porque havemos nós de permitir que as nossas mentes sejam, de qualquer modo, influenciadas por argumentos e cálculos que dependem, para a sua verdade aparente, da exclusão total de Deus? Fazê-lo é, em princípio, e de acordo com a sua extensão, praticamente, ateísmo. No caso de Faraó verificamos que ele podia julgar corretamente as várias eventualidades dos negócios do seu reino: a multiplicação do povo, as possibilidades de guerra e de os israelitas fazerem causa comum com o inimigo e abandonarem o país. Ele podia pesar todas estas circunstâncias na balança com invulgar sagacidade; mas nunca lhe ocorreu que Deus pudesse ter alguma coisa a ver com o assunto. Este simples pensamento, se alguma vez tivesse ocorrido a Faraó, bastaria para lançar a confusão em todos os seus planos classificando-os como loucura.
Ora é conveniente refletirmos que sucede sempre assim com o raciocínio da mente céptica do homem. Deus é inteiramente excluído; sim, a sua pretendida verdade e solidez dependem dessa exclusão. O aparecimento de Deus em cena dá o golpe mortal em todo o cepticismo e infidelidade. Até ao momento em que o Senhor aparece, podem pavonear-se no palco com maravilhosa demonstra¬ção de sabedoria e destreza; porém, assim que o olhar distingue o mais fraco vislumbre do bendito Senhor, são despojados do manto da sua ostentação e revelados em toda a sua nudez e deformidade.
Com referência ao rei do Egito, pode dizer-se, com segurança, que errou grandemente, não conhecendo a Deus nem os Seus desígnios imutáveis. Faraó ignorava que, muitos séculos antes, ainda ele estava longe de respirar o fôlego desta vida mortal, a palavra e o juramento de Deus—"duas coisas imutáveis"—haviam assegurado infalivelmente a libertação completa e gloriosa daquele mesmo povo que ele, na sua sabedoria, propunha esmagar. Tudo isto ele desconhecia; e, portanto, todos os seus pensamentos e todos os seus planos baseavam-se sobre a ignorância dessa grande verdade, fundamento de todas as verdades, que DEUS, É. Imaginava, louca¬mente, que, com a sua sabedoria e poder, poderia impedir o cresci¬mento daqueles acerca dos quais Deus havia dito: "serão como as estrelas dos céus e como a areia que está na praia do mar" (Gn 22:17).
Portanto, o seu procedimento não passava de loucura e insensatez.
O pior erro que alguém pode cometer é agir sem contar com Deus. Mais cedo ou mais tarde o pensamento de Deus impor-se-á ao seu espírito e então dá-se a destruição terrível de todos os seus planos e cálculos. Quando muito, tudo quanto é empreendido sem contar com Deus só pode durar o tempo presente. Mas não pode de modo algum alongar-se para a eternidade. Tudo quanto é apenas humano, por muito sólido, brilhante e atraente que possa ser, está destinado a cair nas garras da morte e a abolorecer no silêncio do túmulo. A leiva do vale há-de cobrir as maiores honras e as glórias mais brilhantes do homem (Jó 21:33); a mortalidade está esculpida na sua fronte, e todos os seus projetos são evanescentes.
Pelo contrário, tudo aquilo que está ligado e fundado em Deus permanecerá para sempre. "O seu nome permanecerá eternamen¬te; o seu nome se irá propagando de pais a filhos" (SI 72:17).

A Segurança proporcionada pela Fé
Quão grande é portanto a estultícia do débil mortal que se levanta contra o Deus eterno arremetendo "com os pontos grossos dos seus escudos" (Jó 15:26). Era como se o monarca do Egito tivesse procurado deter com a sua fraca mão a maré do oceano, impedir a multiplicação daqueles que eram objetos dos propósitos eternos do Senhor. Por isso, embora pusessem "sobre eles maiorais de tributos, para os afligirem com as suas cargas... quanto mais os afligiam, tanto mais se multiplicavam e tanto mais cresciam". E assim há-de ser sempre. "Aquele que habita nos céus se rirá: o Senhor zombará deles" (SI 2:4). Sobre a oposição dos homens e dos demónios cairá eterna confusão. Isto dá doce descanso ao coração, num ambiente onde tudo é, aparentemente, tão hostil a Deus e tão contrário à fé. Se não tivéssemos a certeza de que "a cólera do homem louvará" o Senhor (SI 76:10) sentir-nos-íamos abatidos frequentemente em face das circunstâncias e das influências que nos rodeiam neste mundo. Mas graças a Deus não atentamos "nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se vêem são temporais, e as que se não vêem são eternas" (2 Co 4:18) .Com esta certeza bem
podemos dizer: "Descansa no SENHORe espera nele; não te indignes por causa daquele que prospera em seu caminho, por causa do homem que executa astutos intentos" (SI 37:7). Como a verdade destas palavras é claramente discernida neste capítulo, tanto no caso dos oprimidos como no que se refere ao opressor! Se Israel tivesse atentado nas coisas que se viam, que eram elas £ A ira do Faraó, a severidade dos exatores, as aflições, um serviço rigoroso, a amarga escravatura, barro e tijolos. Porém, as coisas que se não viam o que eram1?- Os propósitos eternos de Deus, as Suas promessas infalíveis, o dealbar de um dia de salvação e a "toda de fogo" da redenção de Jeová. Que maravilhoso contraste! Só a fé podia compreender tudo isto, assim como nada senão a fé podia habilitar qualquer pobre israelita oprimido a lançar uma vista de olhos desde os fornos de tijolo do Egito para os campos verdejantes e os ricos vinhedos da terra de Canaã. Só a fé podia reconhecer nesses escravos oprimidos, que labutavam nos fornos de tijolo do Egito, os herdeiros da salvação e os objetos do interesse e do favor celestiais.
Assim era então e assim é agora. "Andamos por fé e não por vista" (2 Co 5:7). "Ainda não é manifesto o que havemos de ser" (1 Jo 3:2). "Enquanto estamos no corpo, vivemos ausentes do Senhor" (2 Co 5:6). Como fato estamos no Egito, no entanto, em espírito, estamos em Canaã celestial. A fé põe o coração sobre o poder das coisas divinas e invisíveis e deste modo habilita-o a elevar-se acima de tudo o que existe aqui, onde reinam "a morte e as trevas". Ah! se tivéssemos esta fé infantil que se senta junto à fonte pura e eterna da verdade para beber da sua água, a qual reanima o espírito prestes a desfalecer e comunica energia ao novo homem em marcha para a casa do Pai!

As Parteiras Hebréias
Os versículos finais deste capítulo oferecem-nos uma lição edificante com a conduta dessas mulheres tementes a Deus, Sifrá e Puá. Arrostando com a ira do rei não executaram o seu plano cruel e porissoDeus lhes fezcasas."...aos que me honram, honrarei" (1 Sm 2:30). Recordemos sempre esta lição e atuemos de acordo com ela.












































— CAPÍTULO 2 —

O NASCIMENTO DE MOISÉS

O Fracasso de Satanás
Esta parte do Livro do Êxodo abunda em princípios profundos de verdade divina—princípios que podemos subdividir da seguinte forma: o poder de Satanás, o poder de Deus e o poder da fé.
No último versículo do primeiro capítulo lemos: "Então, orde¬nou Faraó a todo o seu povo, dizendo: A todos os filhos que nascerem lançareis no rio". Este era o poder de Satanás. O rio era o lugar da morte; e, por meio da morte, o inimigo procurou frustrar os propósitos de Deus. Tem sido sempre assim. A serpente sempre tem vigiado com olhar maligno os instrumentos que Deus está prestes a usar para realizar os Seus desígnios. Vejamos o caso de Abel, em Génesis, capítulo 4. A serpente não estava espreitando aquele vaso de Deus para o pôr de parte por meio da morte? Vejamos o caso de José, em Génesis, capítulo 37. Aí o inimigo procura pôr o homem escolhido por Deus num lugar de morte. Vejamos o caso da "semen¬te real", em 2 Crônicas, capítulo 22; a matança promovida por Herodes, em Mateus 2; e a morte de Cristo, em Mateus 27. Em todos estes casos vemos o inimigo procurando, com a morte, interromper a corrente de atuação divina.
Mas, bendito seja Deus, há qualquer coisa depois da morte. Toda a esfera de ação divina, pelo que respeita à redenção, está para além dos limites do domínio da morte. Quando o poder de Satanás se esgota é que o de Deus começa a mostrar-se. A sepultura é o limite da atividade de Satanás; mas é aí que começa também a atividade divina. Isto é uma verdade gloriosa. Satanás tem o poder da morte; porém, Deus é o Deus dos vivos e dá a vida que está fora do alcance e poder da morte—uma vida na qual Satanás não pode tocar. O coração encontra doce refrigério nesta verdade, num mundo onde reina a morte. A fé pode contemplar calmamente Satanás empre¬gando a plenitude do seu poder; ela pode apoiar-se sobre a potente intervenção de Deus na ressurreição. Pode postar-se junto da sepul¬tura que acabou de fechar-se sobre um ente amado e beber dos lábios d'Aquele que é "a ressurreição e a vida" a elevada garantia de uma imortalidade gloriosa. Ela sabe que Deus é mais forte que Satanás e pode portanto esperar, serenamente, a manifestação desse poder superior, e enquanto assim espera encontra a sua vitória e a sua paz. Temos um nobre exemplo deste poder da fé nos primeiros versículos do capítulo que estamos considerando.

Os Pais de Moisés
"E f oi-se um varão da casa de Levi e casou com uma filha de Levi. E a mulher concebeu, e teve um filho, e, vendo que ele era formoso, escondeu-o três meses. Não podendo, porém, mais escondê-lo, tomou uma arca de juncos e a betumou com betume e pez; e, pondo nela o menino, a pôs nos juncos à borda do rio. E a irmã do menino postou-se de longe, para saber o que lhe havia de acontecer" (versículos la4).
Aqui temos uma cena de tocante interesse, qualquer que seja o ponto de vista por que a encaramos. Na realidade, era simplesmente o triunfo da fé sobre as influências da natureza e da morte, deixando lugar para que o Deus da ressurreição agisse na Sua esfera e no caráter que Lhe é próprio. É certo que o poder do inimigo está patente, visto a criança ter de ser colocada em tal posição — em princípio, uma posição de morte. E, além disso, era como se uma espada atravessasse o coração da mãe ao ver o seu filho precioso exposto à morte. Satanás podia agir e a natureza podia chorar; contudo, o Vivificador dos mortos estava detrás daquela nuvem sombria e a fé via-O ali iluminando o cume dessa nuvem com os Seus raios brilhantes e vivificadores. "Pela fé, Moisés, já nascido, foi escondido três meses por seus pais, porque viram que era um menino formoso; e não temeram o mandamento do rei" (Hb 11:23).

A Arca de Junco
Assim, esta digna filha de Leviensina-nos uma santa lição. A sua arca de juncos betumada com betume epez proclama a confiança que ela tinha na verdade que havia qualquer coisa que, como no caso de Noé, "pregoeiro da justiça", podia defender aquele "menino formo¬so" das águas da morte. Devemos nós supor que esta "arca" fosse apenas uma invenção humanai Foi inventada por previsão e habi¬lidade do homem'?- Foi a criança colocada na arca por inspiração do coração da mãe, que alimentava a doce mas ilusória esperança de salvar, por esse meio, o seu ente querido da morte1? Se a nossa resposta a estas interrogações fosse afirmativa perderíamos, quanto a mim, o ensino precioso de todo o assunto. Como admitir a suposição que a "arca" fosse inventada por quem não via outro destino para o seu filho senão afogando-o? Não há outra maneira de encarar essa significante estrutura senão como um saque da fé apresentado na tesouraria do Deus da ressurreição. Aquela arca foi inventada pela fé, como vaso de misericórdia, para conduzir o "menino formoso" através das águas da morte ao lugar que lhe era designado pelos propósitos imutáveis do Deus vivo. Quando con¬templamos esta filha de Levi curvada sobre aquela "arca" de juncos, que a sua fé havia construído, despedindo-se do seu filho, conclu¬ímos que ela segue as mesmas pisadas que seu pai Abraão deu quando se levantou de diante do seu morto para comprar a cova de Macpela aos filhos de Hete (Gênesis, capítulo 23). Não vemos nela apenas a energia da natureza que se debruça sobre o objeto das suas afeições prestes a cair nas garras do rei dos terrores. Não, mas reconhecemos nela a energia da fé que a habilitou a postar-se, como vencedora, junto da margem do caudal frio da morte, observando o vaso escolhido de Jeová até que passe em segurança para a outra margem.
Sim, prezado leitor, a fé pode voar ousadamente a essas regiões que estão muito afastadas deste mundo de morte e vasta desolação; e com o seu olhar de águia atravessar essas nuvens que se acumulam sobre a sepultura e ver como o Deus da ressurreição cumpre os Seus desígnios eternos numa esfera onde os dardos da morte não podem jamais chegar. Ela pode postar-se sobre a Rocha dos Séculos e esperar em atitude de triunfo enquanto as vagas da morte bramam e se desfazem a seus pés.
Deixai-me perguntar: que valor tinha o mandamento do rei para alguém que possuía este princípio celestiais
Que importância tinha esse mandamento para uma mulher que podia permanecer calmamente ao lado da sua "arca de juncos" e encarar impavidamente a morteS O Espírito Santo responde: "não temeram o mandamento do rei" (Hb 11:26). O espírito que sabe um pouco o que é ter comunhão com Aquele que ressuscita os mortos nada receia e pode fazer coro triunfante com 1 Coríntios 15: "Onde está, ó morte, o teu aguilhãoS Onde está, ó inferno, a tua vitoriai Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Mas graças a Deus, que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo". Pode pronunciar estas palavras de triunfo sobre Abel martirizado, sobre José no fundo da cova, sobre Moisés na arca de j uncos, sobre "a semente real" exterminada por mão de Atália e sobre os inocentes de Belém, assassinados por ordem do cruel Herodes; e, acima de tudo, no túmulo do Capitão da nossa salvação.
Contudo, é possível que alguns não possam distinguir a obra da fé na arca de juncos. Alguns talvez não possam ultrapassar a compreensão da irmã de Moisés, a qual se "postou de longe, para saber o que lhe havia de acontecer". É que a "sua irmã" não estava à altura da mãe pelo que respeitava à fé. Sem dúvida, havia nela esse profundo interesse, essa verdadeira afeição, que vemos em "Maria Madalena e a outra Maria, assentadas defronte do sepulcro" (Mt 27:61). Porém, naquela que fez a arca de juncos havia alguma coisa muito superior ao interesse ou afeto. E certo que a mãe do menino não se postou de longe para ver o que havia de acontecer ao seu filho; e, por isso, à semelhança do que acontece frequente¬mente, a dignidade da fé poderia parecer, no seu caso, indiferença. Porém, não era indiferença, mas, sim, verdadeiro engrandecimen¬to da fé. Se o afeto natural não a obrigava a ficar junto daquele ambiente de morte era apenas porque o poder da fé lhe havia confiado uma obra mais nobre na presença do Deus da ressurrei¬ção. A fé dela havia aberto lugar para Deus naquele ambiente, e Ele manifesta-Se logo duma maneira gloriosa.

A Filha de Faraó
"E a filha de Faraó desceu a lavar-se no rio, e as suas donzelas passeavam pela borda do rio; e ela viu a arca no meio dos juncos e enviou a sua criada, e a tomou. E, abrindo-a, viu o menino, e eis que o menino chorava; e moveu-se de compaixão dele e disse: Dos meninos dos hebreus é este" (versículo 5-6). Aqui, pois, começa a soar a resposta divina em doce murmúrio aos ouvidos da fé. Deus intervinha em tudo isto. O racionalismo, o cepticismo, a infideli¬dade, e o ateísmo, podem rir-se desta ideia. E a fé também; mas são risos diferentes. Os primeiros riem com desprezo da ideia da inter¬venção divina num banal passeio duma princesa real pela margem do rio. A segunda ri de cordial contentamento ao pensar que Deus está em tudo. E, de fato, se alguma vez Deus interveio em qualquer coisa foi neste passeio da filha do Faraó, embora ela o não soubesse.
Uma das mais ditosas ocupações da alma regenerada é seguir as pegadas divinas em circunstâncias e acontecimentos que a mente irrefletida atribui ao acaso ou à fatalidade. Por vezes a coisa mais banal pode ser um importantíssimo elo numa cadeia de aconteci¬mentos de que Deus Se está servindo para levar avante os Seus grandiosos desígnios. Vejamos, por exemplo, Ester 6:1; que encon-tramos? Um monarca pagão que passa uma noite inquieta. Nada há de extraordinário nisso, podemos supor; e no entanto, esta circuns¬tância constitui um elo numa grande cadeia de acontecimentos providenciais, ao fim da qual surge a maravilhosa libertação dos descendentes oprimidos de Israel.
Assim sucedeu com a filha do Faraó e o seu passeio pela margem do rio. Mas ela não pensava que estava ajudando os intentos do "Senhor Deus dos hebreus"! Mal ela sabia que o bebé que chorava na arca de juncos viria ainda a ser o instrumento do Senhor para abalar a terra do Egito até aos seus alicerces! E contudo era assim. O Senhor pode fazer com que a cólera do homem redunde em Seu louvor (SI 76:10) e restringir o restante dessa cólera. Como a verdade deste fato transparece claramente nas palavras que se seguem!
"Então, disse sua irmã à filha de Faraó: Irei eu a chamar uma ama das hebréias, que crie este menino para tií- E a filha de Faraó disse-lhe: Vai. E foi-se a moça e chamou a mãe do menino. Então, lhe disse a filha de Faraó: Leva este menino e cria-mo; eu te darei teu salário. E a mulher tomou o menino e criou-o. E, sendo o menino já grande, ela o trouxe à filha de Faraó, a qual o adoptou; e chamou o seu nome Moisés e disse: Porque das águas o tenho tirado" versículos (7a 10).
A fé da mãe de Moisés encontra aqui a sua inteira recompensa; Satanás fica embaraçado e a sabedoria maravilhosa de Deus é revelada. Quem poderia supor que aquele que havia dito às parteiras das hebréias "se for filho, matai-o", acrescentando, "a todos os filhos que nascerem lançareis no rio", havia de ter na sua própria corte um desses próprios filhos? O diabo foi vencido com as suas próprias armas, porque Faraó, de quem queria servir-se para frustrar os propósitos de Deus, foi usado por Deus para alimentar e educar esse Moisés, que havia de ser o Seu instrumento para confundir o poder de Satanás. Providência notável! Maravilhosa sabedoria! Certa¬mente, "até isto procede do Senhor" (Is 28:29). Possamos nós confiar n'Ele com mais simplicidade, e então a nossa carreira será mais brilhante e o nosso testemunho mais eficaz.

A Sua Educação
Meditando sobre a história de Moisés é necessário considerar este grande servo de Deus debaixo do ponto de vista duplo do seu caráter pessoal e o seu caráter figurativo.
No caráter pessoal de Moisés há muito, muitíssimo, que apren¬der. Deus teve não só de o elevar como de o treinar, dum e doutro modo, durante o longo espaço de oitenta anos: primeiro na casa da filha do Faraó e depois "atrás do deserto". À nossa fraca mentalidade oitenta anos parecem muito tempo para a preparação dum ministro de Deus. Mas os pensamentos de Deus não são os nossos pensamen¬tos. O Senhor sabia que eram necessários esses dois períodos de quarenta anos para preparar o Seu vaso eleito. Quando Deus educa alguém, fá-lo duma maneira digna de Si e do Seu Santo serviço. O seu trabalho não o confia a noviços. O servo de Cristo tem muitas lições que aprender, deve passar por vários exercícios e padecer muitos conflitos em segredo antes de estar realmente apto a agirem público. A natureza humana não gosta deste método — prefere evidenciar-se em público a aprender em particular. Gosta mais de ser contemplada e admirada pelos homens do que de ser disciplina¬da pela mão de Deus. Porém isto não serve. Nós temos que seguir o caminho traçado pelo Senhor.
A natureza pode precipitar-se no campo das operações, mas Deus não a quer ali. É necessário que aquilo que é humano seja quebran¬tado, consumido e posto de lado: o lugar que lhe compete é o da morte. Se a natureza teima em entrar em atividade, Deus, na Sua fidelidade infalível e na Sua perfeita sabedoria, ordena as coisas de tal maneira que o resultado dessa atividade se transforma em fracasso e confusão. Ele sabe o que há-de fazer com a nossa natureza, onde deve ser colocada e como guardá-la. Oh! que todos possamos estarem mais íntima comunhão com Deus no que diz respeito aos Seus pensamentos quanto ao "eu" e tudo que com ele se relaciona. Assim cairemos menos em erro, a nossa vida será mais fiel e moralmente elevada, o nosso espírito estará tranquilo e o nosso serviço será, então, mais eficiente.

O Primeiro Contato com seus Irmãos
"E aconteceu naqueles dias que, sendo Moisés já grande, saiu a seus irmãos e atentou nas suas cargas; e viu que um varão egípcio feria a um varão hebreu, de seus irmãos. E olhou a uma e a outra banda, e, vendo que ninguém ali havia, feriu ao egípcio e escondeu-o na areia" versículos (11-12). Moisés mostra aqui zelo por seus irmãos "mas não com entendimento" (Rm 10:2). Ainda não che¬gara o tempo determinado por Deus para julgar o Egito e libertar Israel, e o servo inteligente deve aguardar sempre o tempo de Deus. Moisés era "já grande" e "instruído em toda a ciência dos egípcios"; e, além disso, "cuidava que seus irmãos entenderiam que Deus lhes havia de dar liberdade pela sua mão" (At 7:25). Tudo isto era verdade, todavia, ele correu, evidentemente, antes de tempo, e quando alguém procede assim o resultado é o fracasso (1).
E não só o fracasso como também manifesta incerteza, falta de serena devoção e santa independência no progresso de um trabalho começado antes do tempo determinado por Deus. Moisés olhou a uma c outra banda." Não há necessidade disto quando se age com e para Deus e na plena compreensão dos Seus pensamentos quanto aos pormenores da Sua obra. Se o tempo determinado por Deus tivesse realmente chegado, e se Moisés sentisse que havia sido incumbido de executar a sentença de Deus sobre o egípcio, se sentisse ainda a presença divina consigo, não teria olhado "a uma e outra banda."
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(1) No discurso de Estêvão, perante o conselho, em Jerusalém, há uma referência à ação de Moisés, que é conveniente considerar. "E, quando completou a idade de quarenta anos, veio-lhe ao coração ir visitar seus irmãos, os filhos de Israel. E, vendo maltratado um deles, o defendeu e vingou o ofendido matando o egípcio. E ele cuidava que os seus irmãos entenderiam que Deus lhes havia de dar liberdade pela sua mão; mas eles não entenderam" (At 7:23-25). É evidente que o fim de Estêvão, com todo o seu discurso, era fazer com que a história da nação produzisse efeito sobre as consciências daqueles que estavam perante ele; e seria contrário a este objetivo e contra a regra do Espírito no Novo Testamento levantar aqui a questão se Moisés não havia atuado antes do tempo determinado por Deus.
Além disso, Estêvão limita-se a dizer que lhe veio ao coração ir visitar seus irmãos. Não diz que Deus o enviou por essa época. Tão-pouco toca de nenhuma maneira na questão do estado moral daqueles que o rejeitaram: "...eles não entenderam". Quanto a eles, isto um fato, quaisquer que fossem as lições que Moisés pudesse ter de aprender com o assunto. O homem espiritual não tem dificuldade em compreender isto.
Considerando Moisés como uma figura, podemos ver neste acontecimento da sua vida a missão de Cristo a Israel e a forma como eles o rejeitaram e a recusa em que Ele reinasse sobre eles. Em contrapartida, se considerarmos Moisés pessoalmente, vemos que ele, à semelhança de outros, cometeu erros e mostrou fraquezas: em algumas ocasiões andou depressa, noutras devagar. Tudo isto é fácil de compreender e só contribui para engradecer a graça infinda e a paciência inexaurível de Deus.

A Morte do Egípcio, um Ato Impensado e Prematuro
Este ato de Moisés encerra uma lição profundamente prática para todos os servos de Deus. Duas circunstâncias se ligam com ela, a saber: o receio da ira do homem e a esperança do favor humano. O servo do Deus vivo não deve atentar numa nem outra. Que importa a ira ou o favoritismo dum pobre mortal àquele que está investido da incumbência divina e que goza da presença de Deus?-Para um tal servo estas coisas têm menos importância que o pó dos pratos duma balança. "Não o mandei eui- Esforça-te e tem bom ânimo; não pasmes, nem te espantes, porque o SENHOR, teu Deus, é contigo, por onde quer que andares" (Js 1:9). "Tu, pois, cinge os teus lombos, e levanta-te, e dize-lhes tudo quanto eu te mandar-, não desanimes diante deles, porque eu farei com que não temas na sua presença. Porque eis que te ponho hoje por cidade forte, e por coluna de ferro, e por muros de bronze, contra toda a terra; e contra os reis de Judá, e contra os seus príncipes, e contra os seus sacerdotes, e contra o povo da terra. E pelejarão contra ti, mas não prevalecerão contra ti; porque eu sou contigo, diz o SENHOR, para te livrar" (Jr 1:17-19).
Colocado assim sobre este terreno elevado, o servo de Cristo não olha a uma e outra banda, mas atua de acordo com o conselho da sabedoria celestial: "Os teus olhos olhem direitos e as tuas pálpebras olhem diret amente diante de ti" (Pv 4:25). A sabedoria divina f az-nos sempre olhar para cima e para a frente. Sempre que olhamos em redor para evitar o olhar desdenhoso de um mortal ou para merecer o seu sorriso, podemos estar certos que há qualquer coisa que está mal; estamos fora do terreno próprio de serviço divino. Falta-nos a certeza de termos a incumbência divina e de sentirmos a presença do Senhor, ambas as coisas tão essenciais.
É verdade que há muitos que, por ignorância profunda ou excessiva confiança em si próprios, entram para uma esfera de serviço para a qual Deus nunca os destinou e para a qual, portanto, os não preparou. E não só o fazem como aparentam uma frieza de ânimo e uma confiança em si próprios perfeitamente espantosas para aqueles que podem formar um conceito imparcial dos seus dons e dos seus méritos. Contudo essas aparências depressa cedem à realidade, e não podem modificar em nada o princípio que nada pode impedir realmente o homem de olhar "a uma e outra banda" senão aconvicção íntima de ter recebido uma missãodeDeuse de desfrutar a Sua presença. Quando possuímos estas coisas somos inteiramente livres das influências humanas e estamos independentes dos homens. Ninguém está em tão boas condições de servir os homens como aquele que é independente deles; contudo, aquele que conhece o seu verdadeiro lugar pode baixar-se e lavar os pés dos seus irmãos. Quando desviamos o olhar do homem e o fixamos sobre o único Servo verdadeiro e perfeito, não o encontramos "olhando a uma e outra banda", pelo simples motivo que nunca procurou agradar aos homens mas a Deus. Não temia a ira do homem nem cortejava o seu favor. Os Seus lábios nunca se abriram para provocar os aplausos dos homens, nem jamais os fechou para evitar as suas críticas. Por isso, o que dizia e fazia tinha uma santa estabilidade e elevação. Jesus é o único de quem se pôde dizer com verdade, "cujas folhas não caem e tudo quando fizer prosperará" (Sl 1:3). Em tudo que fazia prosperava, porque fazia todas as coisas para Deus. Cada ação, cada palavra, cada movimento, cada olhar, cada pensamento era como um belo cacho de frutos enviados ao alto para refrescar o coração de Deus. Jamais receou pelos resultados da Sua obra, porquanto sempre trabalhou com e para Deus na compreensão plena da sua vontade. A Sua própria vontade, posto que fosse divinamente perfeita, nunca se confundiu com o que, como homem, fazia sobre a terra, e assim podia dizer: "Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou" (Jo 6:38). Por isso, deu "o seu fruto na estação própria" (Sl 1:3), e fez sempre o que agradava ao Pai (Jo 8:29), e, portanto, nada teve que temer, nem necessidade de arrepen¬dimento nem de "olhar a uma e a outra banda".

A Graça de Deus Lembra-se Somente dos Atos da Fé (Hebreus 11)
Nisto, como em tudo mais, o Mestre bendito forma um contraste notável com os Seus servos mais honrados e destacados. O próprio Moisés "temeu" (versículo 14), e Paulo teve de se arrepender (2 Co 7:8); porém, o Senhor Jesus nunca fez uma coisa nem outra. Jamais se viu forçado a recuar um passo, a arrepender-se duma palavra ou a corrigir um pensamento.
Tudo quanto fez foi absolutamente perfeito. Era tudo fruto dado na estação própria. O curso da Sua vida santa e celestial deslizava adiante sem obstáculos nem deslizes. A sua vontade estava perfeitamente submissa ao Pai. Os melhores homens, e até mesmo os mais dedicados, cometem erros; mas é perfeitamente exato que quando mais, pela graça, nos é dado mortificarmos a nossa vontade, menos erramos. E uma feliz circunstância quando, dum modo geral, a nossa vida é de fé e de dedicação exclusiva a Cristo.
Assim sucedeu com Moisés. Era um homem de fé, um homem que absorveu em alto grau o espírito do seu Mestre e que seguiu com maravilhosa firmeza os Seus passos. É certo que antecipou, como notámos, em quarenta anos o período que Deus destinara para julgar o Egito e libertar Israel; todavia, quando lemos o comentário inspirado do Capítulo 11 de Hebreus nenhuma menção encontra¬mos deste fato. Encontramos somente o princípio divino que, dum modo geral, orientou a sua vida: "Pela fé, Moisés, sendo já grande, recusou ser chamado filho da filha de Faraó, escolhendo, antes, ser maltratado com o povo de Deus do que por, um pouco de tempo, ter o gozo do pecado; tendo, por maiores riquezas, o vitupério de Cristo do que os tesouros do Egito; porque tinha em vista a recompensa. Pela fé, deixou o Egito, não temendo a ira do rei; porque ficou firme, como vendo o invisível" (Hb 11:24-27).
Esta passagem apresenta-nos os atos de Moisés de uma maneira cheia de graça.
É assim que o Espírito Santo sempre conta a história dos santos do Velho Testamento. Quando descreve a vida dum homem, apre-senta-o como ele é, com todas as suas falhas e imperfeições. Mas quando, no Novo Testamento, comenta essa biografia limita-se a dar o princípio que o orientou e o resultado da sua atividade. Por isso, não obstante lermos em Êxodo que Moisés "olhou a uma e a outra banda", e disse; "certamente este negócio foi descoberto", e por fim que "fugiu de diante da face de Faraó", lemos também na epístola aos Hebreus que o que ele fez, fê-lo "pela fé"— não temeu a ira do rei — e ficou firme como vendo o invisível.
Assim acontecerá em breve quando vier o Senhor, "o qual tam¬bém trará à luz as coisas ocultas das trevas e manifestará os desígnios dos corações; e então cada um receberá de Deus o louvor" (1 Co 4:5). Eis aqui uma verdade consoladora e preciosa para toda a alma reta e o coração fiel. O coração pode formar muitos projetos que, por diversas razões, a mão não pode realizar. Todos esses intentos serão manifestados quando o Senhor vier. Bendita seja a graça divina por nos haver dado uma tal certeza! As devoções do coração são muitos mais preciosas para Cristo do que as obras mais espaventosas que as mãos possam executar. Estas podem dar algum brilho aos olhos do homem; mas aquelas são devidamente apreciadas pelo coração de Jesus. As obras podem ser assunto de conversação dos homens, mas as afeições são manifestadas diante de Deus e dos Seus anjos. Que todos os servos de Cristo saibam ter os seus corações somente ocupados com Ele e os seus olhos postos na Sua vinda.

Aquilo que a Fé Compreende
Estudando a vida de Moisés, vemos que a fé o fez seguir um caminho completamente diferente do curso normal da natureza humana, levando-o a desprezar não apenas todos os prazeres e atrações e honras da corte de Faraó, mas a abandonar uma larga esfera de atividade. A razão teria feito com que ele seguisse um caminho completamente oposto, aconselhando-o a usar a sua influência a favor do povo de Deus em vez de sofrer com ele. Segundo o parecer do homem, parecia que a Providência havia aberto um campo de trabalho extenso e importante para Moisés; e de fato se alguma vez a mão de Deus se manifestou pondo um homem numa posição especial foi decerto o caso de Moisés. Devido a uma inter¬venção maravilhosa e por uma série incompreensível de circuntâncias, em que era revelada em cada uma delas a mão do Todo-Poderoso, e que nenhuma provisão humana jamais poderia combinar, a filha do Faraó veio a ser o instrumento usado para tirar Moisés das águas, criá-lo e educá-lo até que "completou a idade de quarenta anos" (At 7:23). Em tais circunstâncias o abandono da sua alta posição e da influência que esta lhe dava não podia ser conside¬rado senão como consequência de um zelo mal entendido.
A pobre razão podia assim discorrer. Porém a fé pensa de uma maneira diferente, porque a natureza e a fé estão sempre em oposição uma à outra. E embora não possam estar de acordo em um só ponto, é possível que não haja nada em que se acham tão distanciadas como sobre aquilo que se chama geralmente "indica¬ções providenciais". A natureza considerará sempre essas indica¬ções como autorizações de complacência; ao passo que a fé encon¬trará nelas a oportunidade de renúncia própria. Jonas podia ter imaginado que era um caso extraordinário da Providência o fato de encontrar um navio que ia partir para Tarsis; mas o fato é que isso foi apenas uma porta pela qual ele fugiu do caminho da obediência.
Sem dúvida alguma, é privilégio do crente ver a mão de seu Pai celestiale ouvira Sua voz em todas as coisas; mas não deve ser guiado pelas circunstâncias. Um crente que é assim guiado é como um barco no mar alto sem leme nem bússola, à mercê das ondas e do vento. A promessa de Deus aos Seus filhos é esta: "Guiar-te-ei com os meus olhos" (SI 32:8); e a Sua palavra de admoestação é: "Não sejas como o cavalo, nem como a mula, que não têm entendimento, cuja boca precisa de cabresto e freio, para que se não atirem a ti" (SI 32:9). E muito melhor sermos guiados pelos olhos do nosso Pai Celestial do que pelo cabresto e freio das circunstâncias; e nós sabemos que, na acepção normal da palavra, "Providência" é apenas outro termo para o impulso das circunstâncias.
Ora, a energia da fé mostra-se recusando e desprezando constan¬temente essas pretendidas manifestações providenciais. "Pela fé Moisés... recusou ser chamado filho da filha de Faraó", e "pela fé deixou o Egito" (Hb 11:24 e 27). Tivesse ele formado o seu juízo pela luz dos seus olhos, e teria agarrado a dignidade proposta como dádiva evidente da Providência, e teria continuado na corte do Faraó como sendo uma esfera de utilidade aberta plenamente para si pela mão de Deus. Porém, ele andou por fé e não por vista: e, por isso, desprezou tudo. Que nobre exemplo! Que Deus nos dê graça para podermos imitá-lo!
E note-se o que foi "o vitupério de Cristo" que Moisés "teve por maiores riquezas do que os tesouros do Egito" (Hb 11.26). Não foi apenas o opróbrio por Cristo: "...as afrontas dos que te afrontaram cairam sobre mim" (Sl 69:8). O Senhor identificou-Se em graça perfeita com o Seu povo. Veio do céu, e, deixando o seio do Pai, pondo de parte a Sua glória, tomou o lugar do Seu povo, confessou o pecado dos Seus e sofreu o seu castigo no madeiro de maldição. Tal foi o Seu sacrifício voluntário; não somente agiu por nós, como Se fez um conosco, libertando-nos desta forma perfeitamente de tudo que era ou poderia ser contra nós.
Vemos, pois, como Moisés estava em harmonia com o espírito e a mente de Cristo, pelo que respeitava ao povo de Deus. Vivera rodeado de todo o conforto, pompa e dignidade da casa do Faraó, onde "o gozo do pecado" e "os tesouros do Egito" o cercavam profusamente. Tudo isto ele podia ter gozado se quisesse. Podia ter vivido e morrido no meio da riqueza e do esplendor. Toda a sua vida, desde o começo até ao fim, podia, se ele tivesse preferido, ter sido iluminada pelo sol do favor real; mas isso não teria sido "fé"; nem tão-pouco conforme com Cristo. Da sua elevada posição, ele viu os seus irmãos vergados sob o peso do seu fardo, e a f é levou-o a ver que o seu lugar era estar com eles. Sim, com eles em toda a sua ignomínia, escravidão e sofrimento. Fosse ele movido apenas pela benevolên¬cia, pela filantropia ou o patriotismo e podia ter usado a sua influência pessoal a favor de seus irmãos; talvez conseguisse indu¬zir Faraó a aliviar o seu fardo e tornar a sua vida um pouco mais fácil por meio de concessões reais a seu favor; porém um tal procedimen¬to nunca satisfazia um coração que pulsava em comum com o coração de Cristo. Era um coração assim que Moisés, pela graça de Deus, trazia em seu seio; e, portanto, com todas as forças e todo o afeto desse mesmo coração, lançou-se de alma, corpo e espírito no próprio meio dos seus irmãos oprimidos. Escolheu antes ser maltra¬tado com o povo de Deus", e, além disso, fê-lo por fé.
Que o leitor pondere este fatos. Não nos devemos contentar com dese j ar apenas bemaopovodeDeus,em servi-lo ou em falar benevolamente em seu favor. Devemos estar inteiramente identificados com ele, por desprezado ou injuriado que possa ser. Até certo ponto, é uma coisa agradável para um espírito benévolo e generoso favorecer o Cristianismo; mas é uma coisa muito diferente e se identificar com os cristãos ou sofrer com Cristo. Um defensor é uma coisa, um mártir é outra totalmente diferente. Esta distinção é clara em todo o Livro de Deus. Obadias teve cuidado das testemunhas de Deus, mas Elias foi uma testemunha para Deus (1 Rs 18:3- 4). Dário era tão dedicado a Daniel que perdeu o repouso de uma noite por causa dele; porém Daniel passou essa mesma noite na cova dos leões, como testemunha da verdade de Deus (Dn 6:18). Nicodemos aventurou-se a falar uma palavra a favor de Cristo, porém um discipulado mais completo tê-lo-ia levado a indentificar-se com Cristo.

José e Moisés, Figuras de Cristo
Estas considerações são eminentemente práticas. O Senhor Jesus não quer proteção, mas sim comunhão. A verdade a Seu respeito é-nos revelada, não para advogarmos a Sua causa na terra, mas para termos comunhão com a Sua Pessoa no céu. Ele identifi-cou-Se a Si Próprio conosco ao preço enormíssimo de tudo que o amorpodiadar. Nada o obrigava a isso; podia ter continuado a gozar o Seu lugar "no seio do Pai" por toda a eternidade. Mas, então, como poderia essa onda poderosa de amor, que estava retida em Seu coração, avançar até nós, pecadores culpados e merecedores do infernou Então entre Ele e nós não podia existir nenhuma unidade senão sob condições que exigiam de Sua parte o abandono de todas as coisas. Contudo, bendito seja o Seu nome adorável por todos os séculos eternos, esse abandono foi feito voluntariamente. "O qual se deu a si mesmo por nós, para nos remir de toda a iniquidade e purificar fará si um povo seu especial, zeloso de boas obras" (Tt 2.14). Não quis gozar sozinho a Sua glória. O Seu coração amantíssimo deleita-se em associar "muitos filhos" Consigo nessa glória. "Pai", diz Ele, "aqueles que me deste quero que, onde eu estiver, também eles estejam comigo, para que vejam a minha glória que me deste; porque tu me hás amado antes da criação do mundo" (Jo 17:24). Tais eram os pensamentos de Cristo com respeito ao Seu povo; e podemos ver facilmente como Moisés simpatizou com estes preciosos pensamentos. Indubitavelmente, participou em altograu do espírito do Seu Mestre, e mostrou esse espírito excelen¬te sacrificando de sua própria vontade todas as considerações pes¬soais e associando-se sem reservas ao povo de Deus.
O caráter pessoal e os atos deste honrado servo de Deus serão considerados no estudo subsequente destelivro, limitamo-nos aqui a considerá-lo como uma figura do Senhor Jesus Cristo. Que Moisés é uma figura do Senhor é evidente pela leitura da passagem seguinte: "O SENHOR, teu Deus, te despertará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, como eu; a ele ouvireis" (Dt 18:15). Não estamos, portanto, fantasiando em imaginaçãohumana quando consideramos Moisés como uma figura, pois que é este o ensino claro das Escrituras, e nos versículos finais deste capítulo de Êxodo vemos este símbolo sob dois aspectos: primeiro, sendo rejeitado por Israel; e, segundo, na sua união com uma mulher estrangeira do país de Midiã.
Estes dois pontos já foram considerados, até certo ponto, na história de José, o qual, sendo rejeitado por seus irmãos segundo a carne, se uniu a uma noiva egípcia. Neste caso, como no caso de Moisés, vemos simbolizados a rejeição de Cristo por Israel e a Sua união com a Igreja, mas num aspecto diferente. No caso de José temos a demonstração de inimizade positiva contra a suapessoa. Em Moisés é a rejeição da sua missão, que vemos. No caso de José lemos, "...seus irmãos... aborreceram-noe não podiam falar com ele paci¬ficamente" (Gn 37:4). Mas no caso de Moisés, foi-lhedito: "Quem te tempostoa ti por maioral e juiz sobre nósf" (Êx 2:14). Em suma, aquele foi pessoalmente odiado; este oficialmente rejeitado.
O mesmo acontece na forma como o grande mistério da Igrej a é exemplificado na história desses dois santos do Velho Testamen¬to. "Asenate" representa uma fase da Igreja de todo diferente daquela que temos na pessoa de "Zípora" (Gn 41:45, Êx. 2:21). Asenate foi unida a José no tempo da sua exaltação; Zípora foi a companheira de Moisés durante o tempo da sua vida obscura no deserto (comparem-se Gn41:41-45 com Êx. 2:15; 3:1).É verdade que José e Moisés foram, ao tempo da sua união com mulheres estrangeiras, rejeitados por seus irmãos; todavia, o primeiro era governador sobre toda a terra do Egito, ao passo que o último apascentava as ovelhas "atrás do deserto".
Portanto, quer contemplemos Cristo em glória ou oculto para a visão do mundo, a Igreja está intimamente unida com Ele. E agora, visto que o mundo não O vê, tão-pouco pode tomar conhecimento desse corpo que é inteiramente um com Ele. "Por isso o mundo nos não conhece, porque o não conhece a ele" (1 }o 3:1). Muito em breve, Cristo aparecerá em Sua glória, e a Igrej a com Ele. "Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então, também vós vos manifestareis com ele em glória" (Cl 3:4).
E em João 17:22 e 23, lemos, também: "Eeu dei-lhes a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós somos um. Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade, e para que o mundo conheça que tu me enviaste a mim e que tens amado a eles como me tens amado a mim" (¹).
Tal é, pois, a posição santa e gloriosa da Igreja. Ela é uma com Aquele que é rejeitado pelo mundo, mas que ocupa o trono da Majestade nos céus. O Senhor Jesus Cristo tornou-Se responsável por ela na cruz, a fim de que ela pudesse compartilhar com Ele da Sua rejeição agora e da sua glória no futuro. Que todos os que fazem parte de um corpo assim altamente privilegiado sejam mais compenetrados do sentimento que lhes convém seguir e do caráter de que devem estar revestidos! Então haveria uma resposta clara e plena por parte dos filhos de Deus a esse amor com que Ele nos amou e à dignidade com que Ele os investiu. A vida do cristão deveria ser sempre o resultado natural de um privilégio realizado e não o resultado constrangido de votos e resoluções legais, o fruto próprio de uma posição conhecida e gozada pela fé e não o fruto dos esforços próprios para se chegara uma posição "pelas obras da lei". Todos os verdadeiros crentessáo uma parte da noiva de Cristo. Por isso devem a Cristo os af etos que correspondem a essa relação. É uma relação que não se obtém devido ao afeto, mas o afeto emana dessa comunhão. Que assim seja, ó Senhor, com todo o povo amado que tu adquiriste à custa do teu sangue!

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(1) Em João 17:21- 23 fala-se da unidade que a Igreja tinha a responsabilidade de manter, mas em que falhou completamente, e da unidade que Deus realizará infalivelmente e que manifestará em glória.












— CAPÍTULO 3 —

DEUS CHAMA A MOISÉS

A Escola de Deus
Vamos agora retomar a história pessoal de Moisés e considerar este grande servo de Deus durante o período tão interessante da sua vida de solidão, período este que não vai além de quarenta dos seus melhores anos, se assim podemos dizer. O Senhor, na Sua bondade, Sua sabedoria e Sua fidelidade, põe o Seu servo à parte, livre das vistas e dos pensamentos dos homens, para o poder educar debaixo da Sua imediata direção. Moisés tinha necessidade disso. Havia passado quarenta anos na casa do Faraó; e, conquanto a sua estadia ali não deixasse de ser proveitosa, todavia, tudo que tinha aprendido ali não era nada em comparação com o que aprendeu no deserto. O tempo passado na corte pode ter sido valioso, mas a sua estadia no deserto era indispensável.
Nada há que possa substituir a comunhão secreta com Deus ou a educação que se recebe debaixo da Sua disciplina. "Toda a ciência dos egípcios" não havia habilitado Moisés para o serviço a que devia ser chamado. Havia podido seguir uma carreira brilhante nas escolas do Egito, e deixara-as coberto de honras literárias, com uma inteligência enriquecida por vastos conhecimentos e o coração cheio de orgulho e vaidade. Havia podido tomar os seus títulos nas escolas dos homens, mas tinha ainda de aprender o alfabeto na escola de Deus. Porque a sabedoria e a ciência humanas, por muito valor que tenham em si mesmas, não podem fazer de ninguém um servo de Deus nem qualificar alguém para desempenhar qualquer cargo no serviço divino. Tais conhecimentos podem qualificar o homem natural para desempenhar um papel importante diante do mundo: porém é necessário que todo aquele que Deus quer empregar ao Seu serviço seja dotado de qualidades bem diferentes, quali¬dades aliás que só se adquirem no santo retiro da presença de Deus.
Todos os servos de Deus têm aprendido por experiência a verdade do que acabamos de dizer: Moisés em Horeb, Elias no ribeiro de Kerith, Ezequiel junto ao rio Chebar, Paulo na Arábia, e João em Patmos, são todos exemplos da grande importância de estarmos a sós com Deus. E se considerarmos o Servo Divino, vemos que o tempo que Ele passou em retiro foi dez vezes aquele que gastou no Seu ministério público. Ainda que perfeito em inteligên¬cia e vontade, passou trinta anos na casa humilde de um carpinteiro de Nazareth, antes de se manifestar em público. E, mesmo depois de ter entrado na Sua carreira pública, quantas vezes o vemos afastar-Se das vistas dos homens, para gozar a solidão santa da presença do Pai!
Pode perguntar-se, como poderá a falta de obreiros, que tanto se faz sentir, ser suprida se é necessário que todos passem por uma educação secreta tão prolongada antes de tomarem o seu trabalhou Mas isto é um assunto do Mestre, e não nosso. É Ele Quem sabe chamar os obreiros, e Quem sabe também prepará-los. Não é obra do homem. Só Deus pode chamar e preparar um verdadeiro obrei¬ros, e se Ele toma muito tempo para educar um tal homem, é porque assim o julga bom; sabemos que, se outra fosse a Sua vontade, Ele podia realizar esta obra num instante. Uma coisa é evidente: Deus tem tido todos os Seus servos muito tempo a sós Consigo, tanto antes como depois da sua entrada no ministério público; ninguém poderá dispensar este treino, e sem esta disciplina, sem este exercício privativo, nunca seremos mais que teóricos superficiais e inúteis. Todo aquele que se aventura numa carreira pública sem se haver pesado na balança do santuário, e medido na presença de Deus, parece-se com um navio saindo à vela sem lastro próprio, que terá fatalmente de sossobrar ao primeiro embate do vento. Pelo contrá¬rio, existe para todo aquele que tem passado pelas diferentes classes da escola de Deus uma profundidade, uma solidez, e uma constân¬cia que são os elementos essenciais na formação do carácter de um verdadeiro e eficiente servo de Deus.
Por isso, quando vemos Moisés, à idade de quarenta anos, afastado de todas as honras e magnificência de uma corte, para passar quarenta anos na solidão do deserto, podemos esperar vê-lo empreender uma carreira de serviço notável; no que aliás não ficamos desapontados. Ninguém é verdadeiramente educado se¬não aquele a quem Deus educa. Não está dentro das possibilidades do homem preparar um instrumento para serviço do Senhor. A mão do homem é incapaz de moldar um "vaso idóneo para uso do Senhor" (2Tm2:21). SomenteAquelequequerusá-lo pode prepará-lo; e no caso presente temos um exemplo singularmente belo do Seu modo de o fazer.

No Deserto
"E APASCENTAVA Moisés o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote em Midiã; e levou o rebanho atrás do deserto e veio ao monte de Deus, a Horebe" (versículo 1). Aqui temos, pois, uma mudança admirável na vida de Moisés. Lemos em Génesis, capítulo 46:34, que "todo o pastor de ovelhas é abominação para os egípcios" e no entanto, Moisés, que era "instruído em toda a ciência dos egípcios", é transferido da corte do Egito para trás do deserto para apascentar um rebanho de ovelhas e preparar-se para o serviço de Deus. Seguramente isto não "é o costume dos homens" (2 Sm 7:19) nem o curso natural das coisas: é um caminho incompreensível para a carne e o sangue. Nós havíamos de pensar que a educação de Moisés estava terminada logo que se tornou mestre de toda a sabedoria do Egito, gozando ao mesmo tempo das vantagens que oferece a este respeito a vida de uma corte. Poderíamos supor que um homem tão privilegiado havia de ter não apenas uma instrução sólida e extensa mas também uma distinção tal em suas ações que o tornariam apto para cumprir toda a espécie de serviço. Porém, ver um tal homem, tão bem d otadoe instruído, ser chamado a abando¬nar a sua elevada posição para ir apascentar ovelhas atrás do deserto, e qualquer coisa incompreensível para o homem, qualquer coisa que humilha até ao pó o seu orgulho e a sua glória, mostrando que as vantagens humanas são de pouco valor diante de Deus; mais ainda, que são "como esterco", não somente aos olhos do Senhor, mas aos olhos de todos aqueles que têm sido ensinados na Sua escola (Fp. 3:8).
Existe uma diferença enorme entre o ensino humano e o divino. Aquele tem por fim cultivar e exaltar a natureza; este começa por a "secar" e a pôr de lado. "Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente" (1 Co 2:14). Podeis esforçar-vos por educar o homem natural tanto quanto puderdes, sem que jamais consigais fazer dele um homem espiritu¬al. "O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito" (Jo 3:6). Se alguma vez um "homem natural" educado pôde esperar ter êxito no serviço de Deus, esse tal foi Moisés: ele era "instruído... e poderoso em suas palavras e obras" (At 7:22); e todavia teve que aprender alguma coisa "atrás do deserto" que as escolas do Egito nunca lhe haviam ensinado. Paulo aprendeu muito mais na Arábia do que jamais havia aprendido aos pés de Gamaliel (¹). Ninguém pode ensinar como Deus; e é necessário que todos aqueles que querem aprender d'Ele estejam a sós com Ele. Foi no deserto que Moisés aprendeu as lições mais preciosas, mais profun¬das, mais poderosas e mais duráveis; e é ali que devem encontrar-se todos os que queiram ser formados para o ministério.
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(1) O leitor não deve supor, nem por um momento, que pretendemos com estes comentários depreciar o valor de uma instrução realmente proveitosa ou a cultura das faculdades intelectuais. De modo nenhum. Se, por exemplo, o leitor é pai deve adornar a mente de seu filho com conhecimentos úteis: deve ensinar-lhe tudo que poderá ser utilizado mais tarde no serviço do Mestre: não deve embaraçá-lo com aquilo que ele terá de pôr de parte seguindo a carreira cristã, nem deve conduzi-lo, com o fim de lhe dar uma educação brilhante, por uma região da qual é quase impossível sair com uma inteligência imaculada. Seria tão lógico encerrá-lo numa mina de carvão durante dez anos, com o fim de o pôr em condições de discutir as propriedades da luz e da sombra, como fazê-lo caminhar sobre o lodaçal da mitologia pagã com o fim de o preparar para a interpretação dos oráculos de Deus ou de o fazer capaz de pastorear o rebanho de Cristo.

Ali onde só Deus é Exaltado
Possa o leitor conhecer por sua própria experiência o que significa estar "atrás do deserto", esse lugar sagrado onde a natureza é deitada ao pó e só Deus é exaltado. Ali, os homens e as coisas, o mundo e o ego, as circunstâncias presentes e a sua influência são estimados pelo seu justo valor. Ali, e somente ali, encontrará uma balança divinamente afinada para pesar tudo que há no Seu íntimo e à Sua volta.
Ali não há falsas cores, nem falsos penachos, nem vãs pretensões! O inimigo das almas não tem o poder de dourar a areia desse lugar. Tudo ali é realidade. O coração que tem estado na presença de Deus, "atrás do deserto", tem pensamentos justos sobre todas as coisas; e eleva-se muito acima da influência excitante dos negócios deste mundo. O clamor e ruído, a agitação e confusão do Egito não penetram nesse lugar retirado; não se ouve o ruído do mundo comercial e financeiro; a ambição não se faz sentir ali; a ambição da glória do mundo desaparece e a sede de ouro não se sente ali. Os olhos não são obscurecidos pela concupiscência, nem o coração é ocupado pelo orgulho; a adulação dos homens não interessa, e a sua censura não desanima. Em suma: tudo é posto de parte exceto a calma e luz da presença divina; só se ouve a voz de Deus; a Sua luz ilumina; os Seus pensamentos são aceitos pelo coração. Tal é o lugar onde têm de ir todos aqueles que quiserem ser aptos para o ministério.
Prouvera a Deus que todos aqueles que aparecem em cena para servir em público conhecessemmelhoroqueérespiraraatmosfera desselugar. Haveria, então, menos tentativas infrutíferas no exercício do ministé¬rio, mas haveria um serviço bem mais eficaz para glória de Cristo.

O que Vemos e Ouvimos
Examinemos agora o que Moisés viu e ouviu, atrás do deserto. Teremos ocasião de ver como ele aprende ali lições que estão muito acima da inteligência dos mais eminentes sábios do Egito. Poderia parecer à razão humana uma estranha perda de tempo um homem como Moisés ter de passar quarenta anos sem fazer nada senão guardar ovelhas no deserto. Porém, ele estava ali com Deus, e o tempo assim passado nunca é perdido. É conveniente recordar que há para o verdadeiro servo de Cristo alguma coisa mais do que mera atividade. Todo aquele que está sempre em atividade corre o risco de trabalhar demais. Um tal homem deveria meditar cuidadosa¬mente nas palavras profundamente práticas do Servo perfeito: "Ele desperta-me todas as manhãs, desperta-me o ouvido para que ouça, como aqueles que aprendem" (Isaías 50:4). O servo deve estar frequentemente na presença do seu mestre, a fim de poder saber o que deve fazer. O "ouvido" e a "língua" estão intimamente unidos, em vários aspectos; porém, debaixo do ponto de vista espiritual, ou moral, se o ouvido está fechado e a língua desatada, não restam dúvidas que se dirão muitas coisas bem tolas. Por isso, "amados irmãos... todo o homem seja pronto paraowví'/; tardio para falar" (Tiago 1:19). Esta exortação oportuna baseia-se em dois fatos: a saber, que tudo o que é bom vem do alto, e que o coração está repleto de maldade, pronto a transbordar. Daí, a necessidade de ter o ouvido abertoe a língua refreada: rara e admirável ciência!—ciência na qual Moisés fez grande progresso "atrás do deserto", e que todos podem adquirir, desde que estejam dispostos a aprender nessa escola.

A Sarça
"E apareceu-lhe o Anjo do SENHOR em uma, chama de fogo no meio de uma sarça; e olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia. E Moisés disse: agora me virarei para lá e verei esta grande visão, porque a sarça se não queima" (versículos 2-3). Era ef etivamen-te uma grande visão, porque uma sarça ardia e não se consumia. A corte do Faraó nunca poderia oferecer nada de semelhante. Porém, era uma visão graciosa porque nela era simbolizada de um modo notável a situação dos eleitos de Deus. Eles encontra vam-se no meio do forno do Egito; eoSenhorrevelava-senomeiode uma sarça ardente. Porém, assim como a sarça se não consumia, tão-pouco eram eles consumi¬dos, porque Deus estava com eles. "O SENHOR dos Exércitos está conosco: o Deus de Jacó é o nosso refúgio" (SI 46:7). Aqui temos força e segurança, vitória e paz. Deus conosco, Deus em nós, e Deus por nós. Isto é provisão abundante para todas as necessidades.
Não há nada mais interessante e mais instrutivo do que a maneira como aprouve ao Senhor revelar-Se a Moisés na passagem que estamos considerando. Ele ia confiar-lhe o encargo de tirar o Seu povo do Egito, para que eles fossem a Sua Assembleia, para habitar no meio deles tanto no deserto como na terra de Canaã; e é do meio de uma sarça que lhe fala. Símbolo belo, solene e próprio do Senhor habitando no meio do Seu povo eleito e resgatado; "O nosso Deus é um fogo consumidor" (Hb 12:29)-não para MOS consumir, mas para consumir em nós e à nossa volta tudo que é contra a Sua santidade, e que é, portanto, um perigo para a nossa verdadeira e eterna felicidade. "Mui fiéis são os teus testemunhos; a santidade convém à tua casa, SENHOR, para sempre" (Salmo 93:5).
O Velho e o Novo Testamento encerram vários casos em que Deus Se manifesta como "um fogo consumidor": como por exem¬plo o caso de Nadabe e Abiú, em Levítico 10. Tratava-se de uma ocasião solene. Deus habitava no meio do Seu povo, e queria manter este numa posição digna de Si Próprio. Não podia ter feito outra coisa. Não seria para Sua glória nem para proveito dos Seus se Ele tolerasse qualque: coisa, neles incompatível com a pureza da Sua presença. O lugar de habitação de Deus tem que ser santo.
Do mesmo modo, em Josué, capítulo 7, temos outra prova notável, no caso de Acã, de que o Senhor não pode sancionar o mal com a Sua presença, qualquer que seja a forma que o mal possa revestir ou por muito oculto que possa estar. O Senhor é "um fogo consumi¬dor", e, como tal, tinha de agir a respeito de tudo que pudesse manchar a Assembleia no meio da qual habitava. Procurar unir a presença de Deus com o pecado não julgado é o indício da impiedade.
Ananias e Safira (Atos, 5) dão-nos a mesma lição. Deus o Espírito Santo habitava na Igreja, não somente como uma influência, mas, sim, como uma pessoa divina, de tal maneira que ninguém podia mentir na Sua presença. A Igreja era, e é ainda agora, morada de Deus; e é Ele Quem deve governar e julgar no meio dela. Os homens podem reviver em união a concupiscência, a impostura e a hipocri¬sia; mas Deus não pode fazê-lo. Se quisermos que Deus ande conosco, devemos julgar os nossos caminhos, ou então Ele os julgará por nós (veja 1 Co 11:29-32).
Em todos estes casos e em muitos mais que podíamos aduzir, vemos a força destas palavras solenes, "a santidade convém à tua casa, SENHOR, para sempre" (SI 93:5). Para aquele que a tiver compre¬endido, esta verdade produzirá sempre sobre ele um efeito moral idêntico àquele que exerceu sobre Moisés: "Não te chegues para cá; tira os teus sapatos de teus pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa" (versículo 5). O lugar da presença de Deus é santo, e só se pode caminhar por ele com os pés descalços. Deus, habitando no meio do Seu povo, comunica à Assembleia desse povo um caráter de santi¬dade que é a base de todo o santo afeto e de toda a santa atividade. O caráter da habitação deriva do caráter d'Aquele que a habita.
A aplicação deste princípio à Igreja, que é agora a habitação de Deus, em Espírito, é da maior importância prática. Assim como é bem-aventuradamente verdade que Deus habita, pelo Seu Espírito, em cada membro da Igreja, dando deste modo um caráter de santidade ao indivíduo, é igualmente certo que Ele habita na Assembleia; e, por isso, a Assembleia deve ser santa. O centro em volta do qual os membros se reúnem é nada menos do que a Pessoa de um Cristo vivo, vitorioso e glorificado. O poder que os une é nada menos do que o Espírito Santo; e o Senhor Deus Todo-Poderoso habita neles e entre eles (vedeMt 18:20; 1 Co6:19; 3:16-17; Ef 2:21-22). Se tais são a santidade e dignidade que pertencem à morada de Deus, é evidente que nada impuro, quer seja em princípio, quer na prática, deve ser tolerado. Todos os que estão relacionados com esta habitação deviam sentir a importância e solenidade destas palavras, "o lugar em que tu estás é terra santa." "Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá" (1 Co 3:17). Estas palavras são dignas de toda a aceitação da parte de todos os membros da Assembleia—de cada pedra viva no Seu santo templo! Possamos nós todos aprender a pisar os átrios do Senhor com os pés descalços!

O Monte Horebe: Santidade e Graça
Debaixo de todos os aspectos, as visões de Horebe rendem testemunho, ao mesmo tempo, da graça e da santidade do Deus de Israel. Se a graça de Deus é infinita, a Sua santidade também o é; e, assim como a maneira em que Ele se revelou a Moisés nos faz conhecer a primeira, o próprio fato de Se revelar atesta a última. O Senhor desceu porque era misericordioso; mas, depois de haver descido, é dito que Se revelou como sendo santo: "Disse mais: Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó. E Moisés encobriu o seu rosto, porque temeu olhar para Deus" (versículo 6). A natureza humana esconder-se-á sempre como resultado da presença divina; quando estamos na presença de Deus, com os pés descalços e o rosto coberto, quer dizer, naquela disposi¬ção de alma que esses atos exprimem de um modo tão admirável, estamos em condições vantajosas para ouvir os doces acentos da graça. Quando o homem ocupa o lugar que lhe compete, Deus pode falar-lhe em linguagem de pura misericórdia.
"E disse o SENHOR: Tenho visto atentamente a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores, porque conheci as suas dores. Portanto, desci para livrá-lo da mão dos egípcios e para f azê-lo subir daquela terra a uma terra boa e larga, a uma terra que mana leite e mel;.. .E agora, eis que o clamor dos filhos de Israel chegou a mim, e também tenho visto a opressão com que os egípcios os oprimem" (versículos 7 a 9). Neste trecho, a graça absoluta, livre e incondicional do Deus de Abraão brilha em todo o seu esplendor, livre dos "ses" e dos "mas", dos votos, das resoluções e das condições impostas pelo espírito legalista do homem. Deus havia para Se manifestar em Sua graça soberana, para realizar a obra de salvação, para cumprir a Sua promessa a Abraão, promessa repetida a Isaque e a Jacó. Não havia descido para ver se, na realidade, os herdeiros da promessa estariam em condições de merecer a salvação. Bastava-Lhe que Necessitassem dela. Ponderarão seu estado oprimido, as suas aflições, as suas lágrimas, os seus suspiros, e a sua pesada servidão; pois, bendito seja o Seu nome, Ele conta os "ais" do Seu povo e põe as suas lágrimas no Seu odre (S156:8). Não foi por coisa alguma de bom que houvesse visto neles que os visitou, porque Ele sabia o que havia neles. Numa palavra, o verdadeiro fundamento da intervenção misericordiosa do Senhor a favor do Seu povo é revelado nestas palavras: "Eu sou o Deus de Abraão" e "Tenho visto a aflição do meu povo."
Estas palavras revelam um princípio fundamental nos cami¬nhos de Deus. É com base naquilo que Ele é que atua sempre. "EU SOU" assegura todas as cosias para "O MEU POVO". Certamente, Deus não ia deixar o Seu povo no meio dos fornos de tijolo do Egito, e debaixo do azorrague dos exatores do Faraó. Era o Seu povo, e, portanto, queria agir, com respeito a esse povo, de uma maneira digna de Si Próprio. O fato de ser o Seu povo, o objeto favorecido do Seu amor de eleição e possuidor da Sua promessa incondicional, era suficiente. Nada podia impedir a manifestação pública da relação que existia entre o Senhor e aqueles a quem, segundo os Seus desígnios eternos, havia sido assegurada a posse da terra de Canaã. Havia descido para os libertar, e os poderes da terra e do inferno reunidos não poderiam retê-los nem uma hora além do tempo determinado por Ele. Podia servir-Se, e de fato serviu-Se, do Egito como escola, na qual estava o Faraó como um mestre; porém, uma vez cumprida a sua missão, o mestre e a escola são postos de parte, e o Seu povo é libertado com mão forte e braço estendido.


Horebe: A Revelação daquilo que deve Caracterizar todo Servo de Deus
Tal foi, pois, o caráter duplo da revelação feita a Moisés no Monte Horebe. A santidade e a graça estão reunidas naquilo que ele viu e ouviu. E estes dois elementos acham-se sempre, como sabemos, em todas as obras e revelações de Deus, caracterizando-a de um modo notável; e deveriam também caracterizar a vida de todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, trabalham para o Senhor ou têm comunhão com ele. Todo o verdadeiro servo é enviado da presença imediata de Deus com toda a sua santidade e toda a sua graça; e é chamado para ser santo e gracioso — para ser o reflexo da graça e santidade do caráter divino; e para alcançar este estado, não só tem de sair da presença imediata de Deus como também permanecer nela, habitualmente, em espírito. Este é o segredo do serviço eficaz para o Senhor.
Ninguém senão o homem espiritual pode compreender estas duascoisas, "sai e trabalha", "mas não te afastes". Para poder agir por Deus em público, eu preciso de estar com Ele no santuário. Se eu não estiver com Ele no santuário da Sua presença serei completamente malsucedido.
Muitos fracassam particularmente nisto. Existe a possibilidade do perigo de se sair da solenidade e calma da presença divina para o ruído da convivência com os homens e a agitação do serviço ativo. Devemos vigiar contra este perigo.
Se perdermos esta disposição santa de espírito, a qual é represen¬tada aqui nos pés descalços, o nosso serviço será bem depressa insípido e sem proveito. Se consentirmos que o nosso trabalho se interponha entre o nosso coração e o Mestre, será de pouco valor. Só podemos servir a Cristo de um modo eficaz na medida em que desfrutamos d'Ele. É quando o coração se ocupa das Suas perfeições que as mãos executam o serviço que Lhe é aceitável; e ninguém pode servir a Cristo com fervor, vigor, e poder para os seus semelhantes se não estiver sendo alimentado de Cristo, no secreto da sua alma. Poderá, certamente, pregar um sermão, orar, fazer um discurso, escrever uma obra, e cumprir toda a rotina de serviço público, sem contudo servir a Cristo. Aquele que pretender apresentar Cristo aos outros deve ele próprio estar ocupado com Cristo.
Feliz de todo aquele que assim exercer ministério, seja qual for o sucesso ou a aceitação do seu trabalho. Porque ainda que esse minis¬tério não desperte atenção, não exerça influência, ou não produza resultados aparentes, ele tem em Cristo o seu doce retiro e uma parte certa que nada jamais lhe poderá tirar. Ao passo que aquele que se alimenta com os frutos do seu ministério, que sente prazer nos gozos que daí advêm, ou com a atenção que inspira e o interesse que desperta, é semelhante a uma simples mangueira que fornece água e fica só com ferrugem para si. É deplorável encontrar-se alguém em condições idênticas; e todavia é esta a situação em que se encontra todo aquele que se preocupa mais com a obra e seus resultados do que com o Mestre e a Sua glória.
Este assunto exige o juízo mais severo. O coração é enganoso, e o inimigo é astuto; daí, a grande necessidade de prestarmos atenção à exortação, "Sede sóbrios; vigiai." E quando a alma é levada ao convencimento dos numerosos perigos que rodeiam o servo de Cristo que pode compreender a necessidade que tem de estar muito tempo a sós com Deus: é ali que se está seguro e feliz. É quando começamos, continuamos e acabamos a nossa obra aos pés do Mestre que o nosso serviço se torna verdadeiro.

Horebe: O Exame Depois de Quarenta Anos de Escola no Deserto
Depois de tudo que acabamos de dizer, é evidente para o leitor que o ar que se respira "atrás do deserto" é um ar muito saudável para todo o servo de Cristo. Horebe é o verdadeiro ponto de partida para todos aqueles a quem Deus envia para trabalharem para Si. Foi em Horebe que Moisés aprendeu a descalçar os seus pés e a cobrir o seu rosto. Quarenta anos antes ele quisera encetar a sua obra; porém a sua atividade era prematura. Foi na solidão do monte de Deus, e do meio da sarça ardente, que a mensagem divina ressoou aos ouvidos do servo de Deus. "Vem agora, pois, e eu te enviarei a Faraó, para que tires o meu povo, os filhos de Israel, do Egito" (versículo 10). Nestas palavras havia verdadeira autoridade. Existe uma grande diferença entre ser-se enviado de Deus e correr sem ser enviado. Ora, é evidente que Moisés não estava apto para o serviço quando ao princípio se dispôs a atuar. Se nada menos que quarenta anos de disciplina secreta eram precisos, como poderia ter feito a sua obra de outra maneira £ Era impossível. Tinha de ser ensinado por Deus e enviado por Ele; e o mesmo deve ser com todos aqueles que tomam a carreira de serviço e testemunho por Cristo. Oh! se estas lições fossem profundamente gravadas em nossos corações, de modo que todas as nossas obras pudessem ter o selo da autoridade do Mestre e a Sua aprovação!
Mas temos alguma coisa mais que aprender aos pés do Monte Horebe. A alma encontra prazer detendo-se neste lugar. "É bom que estejamos aqui" (Mt 17:4). A presença de Deus é sempre um lugar de profundo exercício; onde o coração pode estar certo de ser descoberto. A luz que resplandece nesse lugar santo manifesta todas as coisas; e esta é a nossa grande necessidade no meio das vãs pretensões que nos rodeiam e do orgulho e da própria satisfação que estão em nós.
Poderíamos pensar que, ao receber a incumbência divina, a resposta de Moisés fosse: "eis-me aqui", ou, "que queres que eu f açaMas Moisés faz ainda outra pergunta, porque o coração humano está cheio de pontos de interrogação. "E Moisés disse a Deus: Eis que, quando vier aos filhos de Israel e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós; e eles me disserem: Qual é o seu nome t Que direi-Ihesi" É maravilhoso ver como o coração shumana argumenta e interroga quando deve a Deus obediência implícita; e ainda mais maravilhosa é a graça que suporta esses argumentos e responde a todas as interrogações. Cada pergunta parece realçar apenas qual¬quer novo aspecto da graça divina.

" EU SOU O QUE SOU"
"E disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós" (versículo 14). O título que Deus dá a Si próprio é maravilhosamente significativo. Ao estudarmos nas Escrituras os vários nomes com que Deus se revela, vemos que se encontram intimamente ligados com as necessidades variáveis daqueles com os quais Ele está em relação: Jeová-Jiré (o Senhor proverá); Jeová Nissi (o Senhor minha bandei¬ra); Jeová Chalom (o Senhor envia a paz); JeováTsidkeno (o Senhor justiça nossa). Todos estes Seus títulos graciosos vão surgindo para ocorrer às necessidades do Seu povo; e quando se intitula "EU SOU", abrange todas elas. Ao assumir este título, o Senhor dava ao Seu povo um cheque em branco, que podia comportar qualquer quantia. Ele chama-Se "EU SOU", e a fé tem somente que pedir, valendo-se deste nome inefavelmente precioso, tudo aquilo que precisa. Deus é o único algarismo a que a necessidade humana só tem que acrescentar os zeros. Se queremos vida, Cristo diz: "EU SOU a vida". Se é justiça que necessitamos Ele é "o SENHOR JUSTIÇA NOSSA". Se quere¬mos paz, Ele é "a nossa paz". Se ansiamos por "sabedoria e santificação e redenção", Ele foi para nós feito por Deus todas estas coisas. Numa palavra, temos de percorrera vasta extensãodas necessidades huma¬nas para formar um conceito justo da espantosa profundidade e âmbito deste nome adorável: "EU SOU".
Que graça não é sermos chamados a andar na companhia d'Aquele que tem um nome assim! Estamos no deserto, onde temos de lutar com a provação, o sofrimento e dificuldades; mas, enquan¬to tivermos o feliz privilégio de podermos recorrer em todo o tempo, e em todas as circunstâncias, Aquele que se revela em tantos aspectos da graça, correspondendo a todas as nossas necessidades e fraquezas, nada temos a recear. Foi quando Deus se dispunha a fazer atravessar o deserto ao seu povo que revelou a Moisés este precioso e compreensivo nome; e, embora o crente possa, agora, dizer "Aba Pai", por meio do Espírito de adoção, nem por isso perde o privilégio de podergozar comunhão com Deus em todas as diversas formas em que Lhe aprouve revelar-Se.
Por exemplo, o nome de "Deus", revela-O agindo na unidade da Sua própria essência, manifestando o seu eterno poder e a Sua divindade nas obras da criação. "Senhor Deus" é o nome que toma em ligação com o homem. Depois, com o "Deus Todo-Poderoso" aparece ao Seu servo Abraão para lhe dar a certeza de que cumprirá a Sua promessa a respeito da sua semente. Como Jeová dá-se a conhecer a Israel, na libertação do Egito e conduzindo-o ao país de Canaã.
Foi assim que Deus falou antigamente muitas vezes e de muitas maneiras aos país pelos profetas (Hb 1:1); e o crente, debaixo de atual dispensação, possuindo o Espírito de adoção, pode dizer: Aquele que assim se revelou, que assim falou, que assim agiu, é meu Pai.
Não há nada mais interessante ou praticamente mais importan¬te no seu género do que o estudo destes grandes nomes que Deus toma nas diferentes dispensações. Estes nomes são sempre empre¬gados com conformidade moral com as circunstâncias em que são revelados; porém, com o nome "EU SOU" existe uma tal altura, uma largura, profundidade e comprimento que excedem todo o entendimento humano.
E não se esqueça que é somente em ligação com o Seu povo que Deus toma este título. Não foi com esse nome que Se dirigiu a Faraó. Quando fala com ele, toma o título importante e majestoso de "O Senhor, o Deus dos hebreus", que quer dizer, Deus em relação com esse mesmo povo que Faraó procurava esmagar. Isto deveria ter sido o bastante para que o Faraó compreendesse a sua terrível posição diante de Deus. "EU SOU" não produzira ao ouvido incircunciso mais que um som ininteligível e não comunicara realidade divina ao coração incrédulo. Quando Deus manifestado em carne fez ouvir aos judeus infiéis do Seu tempo essas palavras, "antes que Abraão fosse, Eu sou", eles pegaram em pedras para o apedrejar. Só o verdadeiro crente pode, em alguma medida, experimentar e gozar o valor desse nome inefável, "EU SOU". Um tal crente pode regozijar-se por ouvir dos lábios do bendito Senhor Jesus afirma¬ções como estas: "Eu sou o pão da vida"; "Eu sou a luz do mundo"; "Eu sou o bom pastor"; "Eu sou a ressurreição e a vida"; "Eu sou o caminho, a verdade e a vida"; "Eu sou a videira verdadeira"; "Eu sou o Alfa e o Ômega"; "Eu sou a resplandecente estrela da manhã". Numa palavra, o Senhor pode tomar qualquer título de excelência e beleza divinas, e, tendo-o posto depois de "EU SOU", encontrai nele JESUS, admirai-0 e adorai-O.
Assim, há doçura, bem como compreensão, no nome "EU SOU" muito para além do poder de expressão. Todo o crente pode encontrar nele exatamente aquilo que convém à sua necessidade espiritual, qualquer que ela seja. Não há um só atalho tortuoso na jornada do cristão, nem uma simples fase da experiência da sua alma, nem um ponto sequer na sua situação que não seja divinamente satisfeito por este título, pela razão simples que só tem que colocar qualquer coisa que ele necessite, pela fé, ao lado desse título "EU SOU" para encon¬trar tudoem Jesus. Paraocrente, portanto, por muito fraco e vacilante que sej a, esse nome encerra uma pura bem-aventurança.
Mas embora fosse ao Seu povo eleito que Deus mandou Moisés dizer "EU SOU me enviou a vós", este nome, considerado em relação com os descrentes, encerra um sentido profundamente solene e uma grande realidade. Se alguém que está ainda em seus pecados contempla, por um momento, este título maravilhoso, não pode deixar de interrogar-se: "Qual é o meu estado em relação com este Ser que se chama a Si Mesmo "EU SOU O QUE SOU"£ Se, de fato, é verdade que ELE É, então o que é Ele para mim? Que devo eu escrever defronte deste nome solene "EU SOU" £ Não quero despo-jar esta pergunta da sua solenidade típica e poder com as minhas próprias palavras; mas oro para que O Espírito de Deus a faça penetrar na consciência de todo o leitor que realmente necessite de ser esquadrinhado por ela.

"Este é meu Nome Eternamente"
Não posso terminar os meus comentários sobre este capítulo sem chamar a atenção do leitor crente, para a declaração profunda¬mente interessante contida no versículo 15: "E disse Deus mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: O SENHOR,ODCUS devossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque; e o Deus de Jacó, me enviou a vós: este é meu nome eternamente, e este é meu memorial de geração em geração." Esta declaração encerra uma verdade muito importan¬te—uma verdade que muitos crentes professos parece esqueceram, a saber: que a relação de Deus com Israel é eterna. Ele é tanto o Deus de Israel agora como o era quando os visitou na terra do Egito. Além disso, Ele ocupa-Se com Israel agora tanto como então, se bem que de um modo diferente. A Sua Palavra é clara e explícita: "este é meu nome eternamente". Não diz "este é meu nome por um tempo, tanto tempo quanto eles continuarem a ser o que devem ser". Não; mas "este é meu nome eternamente, e este é meu memorial de geração em geração". Que o leitor pondere isto. "Deus não rejeitou o seu povo, que antes conheceu" (Rml 1:2). Obedientes ou deso¬bedientes, unidos ou dispersos, manifestos perante as nações ou escondidos da sua vista, são ainda o Seu povo. São o Seu povo e o Senhor é o seu Deus. A declaração do versículo 15 do capítulo 3 de Êxodo é irrefutável. A igreja professa não pode justificar-se de ignorar uma relação que Deus diz deve durar eternamente. Tenha¬mos cuidado como empregamos a palavra "eternamente". Se disser¬mos que não significa eternamente, quando aplicada a respeito de Israel, que provas temos de que quer dizer eternamente quando aplicada a nosso respeitou Deus quer dizer aquilo que diz; e em breve mostrará aos olhos de toda a terra que a Sua relação com Israel sobrevirá todas as resoluções do tempo. "Porque os donse avocação de Deus são sem arrependimento" (Rm 11:29). Quando o Senhor disse "este é meu nome eternamente" falou em sentido absoluto. "EU SOU" declarou que é o Deus de Israel para sempre, e os gentios serão obrigados a compreender esta verdade e a inclinarem-se perante ela, assim como a reconhecer que todos os desígnios provi¬denciais de Deus a seu respeito bem como o seu próprio destino estão ligados de um modo ou de outro com esse povo favorecido e honrado, ainda que julgado e disperso agora. "Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando dividia os filhos de Adão uns dos outros, pôs os termos dos povos, conforme o número dos filhos de Israel. Porque a porção do SENHORé o seu povo; Jacó é a parte da sua herança" (Dt 32:8-9). Isto deixou de ser verdade1?- O Senhor perdeu a Sua "porção" e largou "a parte da sua herança"?- A Sua vista de terno amor já não está fixada sobre as tribos dispersas de Israel, há muito tempo perdidas para a visão humanai Os muros de Jerusalém já não estão perante Elei Ou deixou o seu pó de ser precioso aos Seus olhosi Para responder a estas interrogações seria preciso citar uma grande parte do Velho Testemunho e uma parte não menor do Novo, mas este não é o lugar para examinar pormenorizadamente um tal assunto. Quero apenas dizer, em conclusão deste capítulo, que a Cristandade não deve ser ignorante "Certo sim! este segredo... que o endurecimento veio em parte sobre Israel, até que a plenitude dos gentios haja entrado. E, assim, todo o Israel será salvo" (Rm 11:25-26).


— CAPÍTULO 4 —

A PREPARAÇÃO DO SERVO

As Objeções de Moisés e os Meios de Deus
De novo devemos deter-nos por uns momentos ao pé do monte Horebe, "detrás do deserto" (um lugar sadio para a mente espiritual) para vermos manif estar-se de uma maneira extraordinária a incre¬dulidade do homem e a graça ilimitada de Deus.
"Então, respondeu Moisés e disse: Mas eis que me não crerão, nem ouvirão a minha voz, porque dirão: SENHOR não te apareceu" (versículo 1). Como é difícil vencer a incredulidade do coração do homem, e quão penoso é para ele confiar em Deus! Como o ser humano é vagaroso em confiar em Deus! Como é tardo em se aventurar em qualquer empresa confiando somente nas promessas de Deus! Tudo é bom para a natureza, menos isto. A cana mais fraca para os olhos humanos é considerada pela natureza como infinita¬mente mais sólida, como base da sua confiança, do que a rocha invisível dos séculos (Is 26:4). A natureza precipitar-se-á sem hesitação para qualquer auxílio humano ou cisterna rota, em vez de se alimentar da fonte das águas vivas (Jr 2:13,17:13).
Nós havíamos de pensar que Moisés tinha ouvido e visto o bastante para pôr fim aos seus receios. O fogo consumidor na sarça que se não consumia; a graça de Deus, com toda a sua condescen¬dência; os títulos preciosos de Deus; a missão divina; a certeza da presença de Deus; todas estas coisas deveriam terafugentado todo o pensamento de temor e comunicado ao coração uma segurança firme. Contudo, Moisés continua a fazer perguntas, a que Deus continua a responder; e, como já frisámos, cada nova pergunta põe em evidência nova graça. "E o SENHOR disse-lhe: Que é isso na tua mão?E ele disse: Umavara" (versículo2).
O Senhor estava disposto a aceitar Moisés tal qual ele era e a servir-se do que ele tinha na mão. A vara, com a qual ele havia conduzido as ovelhas de seu sogro, ia ser usada para libertar o Israel de Deus, para castigar o Egito, para abrir através do mar um caminho do povo remido do Senhor, e para fazer brotar água da rocha a fim de refrescar as hostes sedentas de Israel no deserto. Deus serve-se dos instrumentos mais fracos para realizar os Seus planos mais gloriosos. "Uma vara"; um corno de carneiro (Js 6:5); "um pão de cevada" (Jz 7:13); "uma botija de água" (lRs 19:6); "uma funda de pastor" (1 Sm 17:50); tudo, em suma, pode servir nas mãos de Deus para cumprir a obra que Ele tem projetado. Os homens imaginam que não se pode chegar a grandes resultados senão por grandes meios; porém não é assim o método de Deus. Ele tanto pode servir-se de "um bicho" como do sol abrasador; de "uma aboboreira" como de um vento calmoso (veja-se Jonas 4).

A Vara
Porém Moisés tinha de aprender uma lição muito importante, tanto a respeito da vara como da mão que devia usá-la. Ele tinha que aprender, e o povo tinha de ser convencido. "E Ele disse: Lança-a na terra. Ele a lançou na terra, e tornou-se em cobra; e Moisés fugia dela. Então disse o Senhor a Moisés: Estende a tua mão e pega-lhe pela cauda.(E estendeu a sua mão e pegou-lhe pela cauda, e tornou-se em vara na sua mão). Para que creiam que te apareceu o SENHOR; Deus de seus pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó" (versículo 5). Trata-se de um sinal profundamente significante. A vara tornou-se serpente e Moisés fugia dela assus¬tado; mas, segundo ordem do Senhor, pegou-lhe pela cauda e tornou-se numa vara. Não há nada mais próprio do que esta figura para expressar a ideia do poder de Satanás voltado contra si mesmo, e deste fato encontramos numerosos exemplos nos meios que Deus usa; o próprio Moisés foi um exemplo notável. A serpente está inteiramente debaixo do poder de Cristo, e logo que chegar ao fim da sua insensata carreira, será lançada no lago de fogo, para ali receber os frutos da sua obra por toda a eternidade:"... a antiga serpente, "oacusador" e adversário (Ap 12:9-10) será eternamente aterrado com a vara do ungido de Deus.

A Mão Leprosa
"E disse-lhe mais o SENHOR: Mete agora a mão no teu peito; E, tirando-a, eis que a sua mão estava leprosa, branca como a neve. E disse: Torna a meter a tua mão no teu peito. E tornou a meter a sua mão no peito; depois tirou-a do peito; e eis que se tornara como a sua outra carne" (versículos 6 a 7). A mão leprosa e a sua purificação representam o efeito moral do pecado e a maneira como o pecado foi tirado pela obra perfeita de Cristo. Posta no peito, a mão limpa tornou-se leprosa; e a mão leprosa, posta no peito, ficou limpa. Alepra é uma figura bem conhecida do pecado; e assim como o pecado entrou no mundo pelo primeiro homem do mesmo modo foi tirado pelo segundo. "Porque, assim como a morte veio por um homem, também a ressurreição dos mortos veio por um homem" (ICo 15:21).
A degradação veio por um homem, e pelo homem a redenção; pelo homem veio a ofensa e pelo homem o perdão; pelo homem veio o pecado e pelo homem a justiça; a morte veio ao mundo por um homem; por um homem, a morte foi abolida, e a vida, a justiça e a glória foram introduzidas na terra. Assim, a serpente será não só eternamente vencida e confundida, como todos os vestígios da sua obra abominável serão apagados e destruídos e destruídos por meio do sacrifício expiatório d Aquele que Se "manifestou para desfazer as obras do diabo" (1 Jo 3:8).

As Águas Tranformadas em Sangue
"E acontecerá que, se eles te não crerem, nem ouvirem a voz do primeiro sinal, crerão a voz do derradeiro sinal; e, se acontecer que ainda não creiam a estes dois sinais, nem ouçam a tua voz, tomarás das águas do rio e as derramarás na terra seca; e as águas, que tomarás do rio, tornar-se-ão em sangue sobre a terra seca" (versículos 8 a 9).
Esta é uma figura solene e mui expressiva da consequência de uma recusa em submeter-se ao testemunho divino. Este sinal só devia ser executado caso eles recusassem os outros dois. Em primeiro plano, se tratava de um sinal para Israel, e depois de uma praga para o Egito.

A Falta de Eloquência
Com tudo isto o coração de Moisés não se deu por satisfeito.
"Então, disse Moisés ao SENHOR.- Ah! Senhor! Eu não sou homem eloquente, nem de ontem, nem de ante-ontem, nem ainda desde que tens falado ao teu servo; porque sou pesado de boca e pesado de língua" (versículo 10). Que terrível lentidão! Nada senão a paciên¬cia infinita do Senhor poderia suportá-la. Evidentemente, quando Deus lhe disse, "certamente eu serei contigo" dava-lhe a garantia infalível de que nada lhe faltaria de tudo que fosse necessário. Se fosse necessário uma língua eloquente, que devia Moisés fazer senão entregar o caso Aquele que lhe havia dito "EU SOU" 4 Eloquência, sabedoria, poder, energia, estavam encerrados nesse tesouro inesgotável.
"E disse-lhe o SENHOR: Quem fezboca do homem"?- Ou quem fez o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego?- Não sou eu, o SENHOR ?-Vai, pois, agora, e eu serei com a tua boca e te ensinarei o que hás de falar" (versículos 11 a 12). Graça profunda, adorável e incompa¬rável! Como é própria de Deus! Não há ninguém que seja como o Senhor, nosso Deus, cuja graça paciente supera todas as nossas dificuldades e é suficientemente abundante para todas as nossas necessidades e fraquezas. "EU O SENHOR" deveria fazer cessar para sempre todos os argumentos dos nossos corações carnais. Mas, ah! o raciocínio é difícil de derribar, e levanta-se de novo perturban¬do a nossa paz e desonrando Aquele bendito Senhor que Se apresenta às nossas almas em toda a plenitude da Sua graça, a fim de que sejamos cheios dela, segundo as nossas necessidades.
É bom recordarmo-nos que, quando temos o Senhor conosco, as nossas deficiências e fraquezas são uma ocasião para que Ele mani¬feste a Sua graça e infinita paciência. Se Moisés tivesse recordado isto, a sua falta de eloquência não o teria perturbado. O apóstolo Paulo aprendeu a dizer: "De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando estou fraco, então, sou forte" (2 Co 12:9-10). Esta é, sem dúvida, a linguagem de um que chegou a um alto grau na escola de Cristo. É a experiência de um homem que não se havia afligido por não possuir eloquência, por quantohavia encontrado, na graça preciosa do Senhor Jesus Cristo, uma resposta a todas as suas necessidades, quaisquer que fossem.
O conhecimento desta verdade deveria ter livrado Moisés da sua excessiva desconfiança e da timidez que o dominava. Depois de o Senhor, em Sua misericórdia, lhe haver assegurado que estaria com a sua boca, ele deveria ficar tranquilo quanto à questão da eloquên¬cia. Aquele que fez a boca do homem podia, se houvesse necessidade disso, enchê-la da mais poderosa eloquência. Para a fé, isto é bem simples; porém o pobre coração incrédulo confia infini¬tamente mais numa língua eloquente do que n'Aquele que a criou. Este fato seria inexplicável se não conhecêssemos de que elementos se compõe o coração natural. O coração natural não pode confiar em Deus; e esta é a causa do defeito humilhante de desconfiança no Deus vivo, que se manifesta até mesmo entre os filhos de Deus, quando eles se deixarem dominar, de algum modo, pela natureza humana. Por isso, no caso presente, Moisés hesita ainda: "Ah, Senhor! Envia por mão daquele a quem tu hás de enviar" (versículo 13). Esta exclamação equivalia, com efeito, recusar o privilégio glorioso de ser o único mensageiro do Senhor ao Egito e a Israel.

A Falsa Humildade
Todos nós sabemos como a humildade que Deus promove é uma graça inestimável. "Revesti-vos de humildade" éumpreceitodivinoje a humildade é, inconstestavelmente, o adorno mais próprio para um pecador. Porém se recusarmos tomar o lugar que Deus nos designa ou seguir o caminho que a Sua mão nos traça, não somos humildes.
No caso de Moisés é evidente que não tinha verdadeira humildade, visto que a irado Senhor se acendeu contra ele (versículo 14). Longe de ser humildade, o seu sentimento havia ultrapassado os limites de simples fraqueza. Enquanto se revestiu da aparência excessiva de timidez, embora repreensível, a graça de Deus suportou-o e respon-deu-lhe com reiteradas promessas; porém, logo que esse sentimento tomou caráter de incredulidade e lentidão de coração, a justa ira do Senhor acendeu-se contra Moisés; e em lugar de ser ele o único instrumento na obra de testemunho e libertação de Israel, teve de repartir com outro este honroso privilégio.
Nada há que sej a mais desonroso para Deus ou mais perigoso para nós do que uma humildade fingida. Quando, com o pretexto de não reunirmos certas virtudes e condições, recusamos tomar o lugar que Deus nos dá, não mostramos humildade, visto que se pudéssemos convencermo-nos de que possuíamos essas virtudes e essas condições imaginaríamos que tínhamos direito a esse lugar. Por exemplo, se Moisés possuísse uma medida de eloquência como ele julgava neces¬sária, temos motivos para crer que estaria pronto a partir. Ora a questão é de saber qual o grau de eloquência que ele necessitava para poder cumprir a sua missão, enquanto que a resposta é que sem Deus nenhum grau de eloquência humana é suficiente; ao passo que com Deus o mais simples gago pode ser um ministro eficiente.
Eis aqui uma grande verdade prática. A incredulidade não é humildade, mas orgulho. Recusa crer em Deus porque não encon¬tra no ego uma razão para crer. Este é o cúmulo da presunção. Se quando Deus fala me recuso a acreditar, com base nalguma coisa queháemmim, façode Deus mentiroso (ljo5:10). Se quandoDeus declara o Seu amor, eu não me julgo digno dele, faço de Deus mentiroso e manifesto o orgulho inerente de meu coração. O simples pensamento de que posso merecer outra coisa que não seja o inferno, só pode ser considerado como a mais completa ignorância da minha condição perante Deus e do que Deus requer de mim. Enquanto que recusar o lugar que o amor redentor de Deus me indica, com base na expiação efetuada por Cristo, é fazer de Deus mentiroso e aviltar o sacrifício de Cristo na cruz.
O amor de Deus é derramado espontaneamente; não é atraído pelos meus méritos, mas, sim, pela minha necessidade. Tão-Pouco se trata do lugar que mereço, mas do lugar que Cristo merece. Cristo tomou o lugar do pecador na cruz, para que o pecador pudesse tomar lugar com Ele na glória. Cristo tomou o lugar que o pecador merecia, para que o pecador pudesse participar daquilo que Cristo merece. Deste modo, o ego é completamente posto de parte: esta é a verda¬deira humildade. Ninguém pode ser verdadeiramente humilde antes de ter chegado ao lado celestial da cruz; porém ali encontra vida divina, justiça divinaeamisericórdiadeDeus. Entãoacaba para sempre o ego, quanto às pretensões de justiça própria, e é-se nutrido com a abundância de outrem. Então está-se preparado, moralmen¬te, para tomar parte no brado que há de ressoar através da abóbada incomensurável dos céus por todos os séculos eternos, "Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória" (SI 115:1).
Certamente nos ficaria mal se nos detivéssemos sobre os erros e fraquezas de um servo tão honrado como foi Moisés, de quem está escrito que foi "fiel em toda a sua casa, como servo, para testemunho das coisas que se haviam de anunciar" (Hb 3:5). Porém, se não nos devemos deter sobre elas, num espírito de própria satisfação, como se em circunstâncias semelhantes nós pudéssemos proceder de uma maneira diferente, devemos, sem dúvida, aprender as santas lições que elas têm por fim ensinar-nos. Devemos aprender a julgarmo-nos a nós próprios, e a pormos confiança implícita em Deus—a pormos de lado o ego de modo que Deus possa atuar em nós, por nosso intermédio e por nós. Este é o verdadeiro segredo do poder.

Arão Falará por Ti
Vimos como Moisés perdeu o privilégio de ser o único instru¬mento de Deus na obra gloriosa que ia ser realizada. Porém isto não é tudo. "Então, se acendeu a ira do SENHOR, contra Moisés, e disse: Não é Arão, o levita, teu irmãoPrezado leitor, não será isto um espelho fiel no qual se refletem os nossos corações? Sem dúvida que é. Estamos sempre prontos a confiar em qualquer coisa menos no Deus vivo. Apoiados e protegi¬dos por um mortal como nós avançamos resolutamente; pelo con¬trário, hesitamos, titubeamos e vacilamos quando só temos a luz da presença do Mestre para nos animar, e a força do Seu braço onipotente para nos suster. Isto deveria humilhar-nos profundamente diante do Senhor, e levar-nos a uma maior familiaridade com Ele, de modo a podermos confiar implicitamente n'Ele, e a avançarmos com passo firme, porque O temos como o nosso único recurso e porção.
Não restam dúvidas que a companhia de um irmão é preciosa— "Melhor é serem dois do que um" (Ec 4:9)— quer seja no trabalho, no repouso ou no combate. O Senhor Jesus enviou os Seus discípu¬los "a dois a dois" (Mc 6:7), porque a união é sempre melhor que o isolamento; contudo, se a nossa familiaridade pessoal com Deus, e a nossa experiência da Sua presença, não nos proporcionarem, se for necessário, andar sozinhos, a presença de um irmão será de pouca utilidade. É bom notar que Arão, cuja companhia parece ter satis¬feito Moisés, foi quem mais tarde fez o bezerro de ouro (Êx 32:21). Vemos com frequência que a mesma pessoa cuja companhia nos parecia necessária para o nosso êxito e progresso, vem a ser mais tarde um motivo de grande desgosto para os nossos corações. Devemos relembrar isto sempre!

A Ordem na Casa do Servo, no Caminho, na Pousada
De qualquer maneira, Moisés consente por fim em obedecer; porém antes de estar completamente preparado para a obra a quem fora chamado é preciso que passe por outra experiência dolorosa; é necessário que Deus grave com Sua mão a sentença de morte sobre a sua carne. "Atrás do deserto" ele havia aprendido importantes lições; mas agora é chamado para aprender uma lição ainda mais importante "no caminho, numa estalagem" (versículo 24). Ser-se servo do senhor é uma coisa muito séria, e a educação ordinária não é suficiente para qualificar alguém para essa posição. É indispensá¬vel que a natureza seja mortificada, e mantida nessa posição de morte. "Mas já em nós mesmos tínhamos a sentença de morte, para que não confiássemos em nós, mas em Deus, que ress*uscita os mortos" (2 Co 1:9).
Todo servo, para que seja bem sucedido no seu serviço, deve necessariamente saber o que significa esta sentença de morte. Moisés teve de compenetrar-se dela, por experiência própria, antes de ser moralmente qualificado para a sua missão. Dispunha-se a fazer ouvir a Faraó esta solene mensagem:".. .Assim diz o Senhor: Israel é meu filho, meu primogénito. E eu te tenho dito: Deixa ir o meu filho, para que me sirva; mas tu recusaste deixá-lo ir; eis que eu matarei a teu filho, o teu primogénito" (versículos 22-23). Esta era a mensagem que Moisés devia levar a Faraó — mensagem de juízo e de morte; e, ao mesmo tempo, a sua mensagem para Israel era de vida e salvação. Lembremos que aquele que há de falar, da parte de Deus, de morte e juízo, de vida e salvação, tem de, antes de o fazer, realizar o poder prático destas coisas na sua alma. Sucedeu assim com Moisés. No princípio do livro vêmo-lo no lugar da morte, figurativamente; contudo isto era uma coisa diferente de realizar pessoalmente a experiência da morte. Por isso lemos: "E aconteceu no caminho, numa estalagem, que o SENHOR o encontrou, e o quis matar. Então, Zípora tomou uma pedra aguda, e circuncidou o prepúcio de seu filho, e o lançou a seus pés, e disse: Certamente me és um esposo sanguinário. E desviou-se dele. Então, ela disse: Esposo sanguinário, por causa da circuncisão" (versículos 24 a 26). Esta passagem revela-nos um profundo segredo da história doméstica e pessoal de Moisés. É evidente que, até este momento, o coração de Zípora havia fugido à ideia de empregara faca àquilo com que o af eto da natureza estava ligado: tinha evitado a marca que devia ser impressa sobre a carne de todos os membros do Israel de Deus, ignorando que a sua união com Moisés implicava necessariamente a morte da natureza; e ela vacilava ante a cruz. Isto era natural. Porém Moisés havia cedido neste assunto; e isto explica a cena misteriosa na "estalagem". Se Zípora recusa circuncidar seu filho, o Senhor lançará mão do seu marido; e se Moisés cede aos pensamentos de sua esposa, o Senhor procurará matá-lo (versículo 24). A sentença de morte tem de ser escrita sobre a natureza; e se nós procurarmos evitá-la de um modo, encontrá-la-emos de outra forma.

Zípora, Uma Figura da Igreja
Como já acentuamos, Zípora representa um símbolo interes¬sante e instrutivo da Igreja. Ela uniu-se a Moisés durante a época da sua rejeição; e a passagem que acabamos de reproduzir ensina-nos que a igreja é chamada para conhecer Cristo, como Aquele a Quem está unida, "pelo sangue", sendo seu privilégio beber o Seu cálice e ser batizada com o Seu batismo. Estando crucificada com Ele, ela deve assemelar-se à Sua morte, mortificar os seus membros que estão sobre a terra, tomar a sua cruz cada dia e segui-Lo. A sua união com Cristo é baseada no sangue, e a manifestação do poder dessa união implica, necessariamente, a morte da natureza. "E estais perfeitos nele, que é a cabeça de todo principado e potestade; no qual também estais circuncidados com a circuncisão não feita por mão no despojo do corpo da carne, a circuncisão de Cristo. Sepultados com Ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos" (Cl 2:10 -12).
Tal é a doutrina referente à posição da Igreja com Cristo, doutrina cheia dos mais gloriosos privilégios para a Igreja e para cada um dos seus membros: perfeita remissão dos pecados, justificação, completa aceitação, segurança eterna, comunhão perfeita com Cristo em toda a Sua glória. "Estais perfeitos n'Ele". Isto, seguramente, diz tudo. Que se poderia acrescentar àquele que está "perfeito?-" A filosofia, as tradições dos homens, os rudimentos do mundo, a comida ou a bebida, dias santos, a lua nova ou o sábado*? "Não toques" nisto, "não proves" aquilo, "não manuseeis", "os preceitos e doutrinas dos homens", dias e meses e tempos e anos, poderia alguma ou todas estas coisas acrescentar um jota ou um til àquele que Deus declarou "perfeito"1?- Seria o mesmo se perguntássemos se, depois dos seis dias de trabalho empregados por Deus na obra da criação, não teria sido necessário o homem dar uma última demão naquilo que Deus havia declarado ser muito bom.
Nem tão-pouco esta perfeição deve ser considerada, de modo nenhum, como um caso de mérito, alguma coisa a que devemos ainda chegar, e pela qual devemos lutar diligentemente, e de cuja possessão não podemos ter a certeza até nos encontrarmos no leito de morte, ou perante o trono do juízo. Este estado de perfeição é a parte do mais fraco, do mais inexperiente, do menos instruído filho de Deus. O mais fraco dos santos está incluído no vocábulo apostó¬lico: "vós". Todos os filhos de Deus são "perfeitos em Cristo". O apóstolo não diz "sereis perfeitos" ou "podeis ser perfeitos", "podeis esperar serperfeitos", ou "oraipara que sejais perfeitos": não, ele, por intermédio do Espírito Santo, declara da maneira mais absoluta, "estais perfeitos". Este é o verdadeiro ponto de partida para o cristão, e se se toma como fim aquilo que Deus assinalou como ponto de partida, é transtornar tudo.
Mas pode peguntar-se: não temos pecado, nem defeitos, nem imperfeições1? Certamente que sim. "Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e não há verdade em nós" (1 Jo 1:8). Temos pecadoem nós, mas não sobre nós. Demais, diante de Deus não estamos no nosso eu, mas sim em Cristo. É "n'Ele" que estamos "perfeitos". Deus vê o crente em Cristo, com Cristo, e como Cristo. Esta é a sua condição imutável e posição eterna. "O despojo do corpo da carne" é efetuado pela "circuncisão de Cristo" (Cl 2:11). O crente não está na carne, posto que a carne esteja nele; acha-se unido a Cristo no poder de uma vida nova e sem fim, e essa vida está inseparavelmente ligada à justiça divina, na qual o crente está perante
Deus. O Senhor Jesus tirou tudo que era contra o crente e trouxe-o para perto de Deus, no mesmo favor que Ele Próprio goza. Em resumo: Cristo é a sua justiça. Isto põe fima todas as questões, responde a todas as objeções, e impõe silêncio a todas as dúvidas. "Porque, assim o que santifica, como os que são santificados, são todos de um" (Hb 2:11).
Esta série de verdades é devida ao símbolo profundamente interessante que nos é apresentado na união entre Moisés e Zípora. Devemos agora terminar esta parte do livro e sair, por um momento, de "detrás do deserto", sem esquecermos as lições profundas e as santas impressões, tão essenciais para todos os servos de Cristo e para todo o mensageiro do Deus vivo, que ali aprendemos.
Todos os que quiserem servir eficientemente, quer seja na obra importante de evangelização, quer nos vários ministérios da casa de Deus, que é a Igreja, terão a necessidade de receber as instruções preciosas que Moisés recebeu ao pé do Monte Horebe e "no caminho da estalagem".
Se se desse mais atenção às coisas que acabamos de meditar, não se veria tantos que correm sem ser enviados, nem tantos lançarem-se num ministério para o qual nunca foram destinados. Que todo aquele que se levanta para pregar, ou exortar, ou servir de qualquer forma, pondere, seriamente, se, na verdade, está preparado e se foi ensinado e enviado por Deus. No caso negativo o seu trabalho não será reconhe¬cido por Deus nem usado para bênção dos homens, e quanto mais cedo desistir tanto melhor será para si próprio e para aqueles a quem tem procurado impor o pesado fardo de lhe prestarem atenção. Jamais um ministério humanamente ordenado, ou ordenado por vontade pró¬pria, será próprio do recinto sagrado da Igreja de Deus. Todo o servo de Deus deve ser dotado de Deus, ensinado porDeus e enviado por Deus.

Arão vai ao Encontro de Moisés
"Disse também o SENHOR a Arão: Vai ao encontro de Moisés, ao deserto. E ele foi, encontrou-o no monte de Deus e o beijou. E anunciou Moisés a Arão todas as palavras do SENHOR, que o enviara, e todos os sinais que lhe mandara" (versículos 27 -28). Esta formosa cena de união e terno amor fraternal forma um flagrante contraste com outras que tiveram lugar mais tarde na carreira destes dois homens através do deserto. Quarenta anos de vida no deserto devem fazer certamente grandes alterações nos homens e nas coisas. Contudo, é agradável prestar atenção aos primeiros dias de vida cristã, antes das duras realidades da vida do deserto terem impedido, de qualquer modo, o impulso de afeto amoroso: antes de o engano, a corrupção, e a hipocrisia terem praticamente destruído a confian¬ça do coração pondo o ente moral sob a fria influência de uma disposição duvidosa.
Que um tal resultado tem sido produzido, em muitos casos, através dos anos de experiência, é, infelizmente, bem verdade. Feliz aquele que, posto que os seus olhos hajam sido abertos para verem a natureza humana através de uma luz mais clara do que aquela que omundodá, sabe todavia servira suageração na energia daquela graça que emana do seio de Deus. Quem conheceu jamais a profundidade e sinuosidade do coração humano como o Senhor Jesus as conheceu"?- O Senhor Jesus "a todos conhecia; e não necessitava que alguém testificasse do homem, porque ele bem sabia o que havia no homem" (Jo2.-24-25); conhecia os homens tão bem que não podia confiar neles; não podia dar crédito ao que eles professavam, ou sancionar as suas pretensões. E contudo, quem foi jamais tão cheio de graça como Ele1?- Quem como Ele foi tão amoroso, tão terno, tão compassivo e tão condoído1?- Quem tinha um coração que compreendia todos i Ele podia sentir por todos. O perfeito conhecimento que tinha da vileza humana não o levou a afastar-se das suas misérias. "Andou fazendo bem". Porquê? Era acaso porque imaginava que todos aqueles que se agrupavam em torno de Si eram sinceros? Não; mas "porque Deus era com Ele" (At 10:38). Eis o exemplo que devemos imitar. Sigamo-lo, ainda que, f azendo-o, tenhamos que pisar o nosso eu e todos os seus interesses, a cada passo da senda.
Quem desej ará possuir essa sabedoria, esse conhecimento da natureza humana, e essa experiência, que somente podem levar o homem a encerrar-se num círculo de coração duro de egoísmo e a olhar com desconfiança sinistra para todos1?- Um tal resultado
nunca poderá ser o efeito de uma natureza celestial ou excelente. Deus dá sabedoria, mas não é uma sabedoria que encerre o coração a todos os rogos de necessidade e infortúnio humanos; dá-nos um certo conhecimento da natureza; porém não é um conhecimento que nos leve a agarrarmos com avidez egoísta àquilo que chama¬mos erradamente "nosso"; dá-nos experiência; mas não é uma experiência que nos leva a suspeitarmos de toda a gente, menos de nós próprios. Se seguimos as pisadas do Senhor Jesus, se nos absor¬vermos do Seu excelente espírito, e por consequência o manifestar¬mos, se, em resumo, pudermos dizer: "para mim o viver é Cristo", então, à medida que andamos pelo mundo, com o conhecimento daquilo que o mundo é, e contactando com os homens, com o conhecimento daquilo que podemos esperar deles, podemos pela graça manifestar Cristo no meio de tudo.
Os motivos que nos levam a atuar e os fins que temos em vista estão todos emcima, onde está Aquele que "é o mesmoontem, e hoje e eternamente" (Hb 13:8). Foi isto que fortaleceu o coração daquele amadoeveneradoservodeDeus,cujahistória,pelomenos até aqui, nos tem dado tantas profundas e sólidas lições, e o habilitou a vencer as várias cenas penosas da sua vida através do deserto. E nós podemos afirmar, sem receio de nos equivocarmos, que no fim de tudo, não obstante os quarenta anos de lutas e provações, Moisés pôde beijar outa vez seu irmão, quando subiu ao Monte de Hor, com o mesmo afeto com que o fez quando o encontrou no "Monte de Deus". Por certo, os dois encontros tiveram lugar em circunstâncias bem diferentes. No "Monte de Deus", eles encontraram-se, abraçaram-se, e partiram em cumprimento da sua missão divina. No "Monte de Hor" eles encontram-se por mandado do Senhor (Nm 20:25) para que Moisés fizesse despir a seu irmão as vestes sacerdotais e o visse morrer, em virtude de uma falta em que ele mesmo havia incorrido. Como tudo isto é solene e tocante! As circunstâncias mudam: os homens separam-se uns dos outros; mas em Deus "não há mudança nem sombra de variação" (Tg 1:17).
"Então, foram Moisés e Arão e ajuntaram todos os anciãos dos filhos de Israel. E Arão falou todas as palavras que o SENHOR falara a Moisés e fez os sinais perante os olhos do povo" (versículos 29 a 31). Quando Deus intervém, necessariamente, cai todo o obstáculo. Moisés havia dito: "...eis que me não crerão". Porém não era questão de saber se eles creriam nele ou não, mas se creriam em Deus. Quando um homem pode considerar-se simplesmente como envi¬ado de Deus, pode estar completamente tranquilo quanto à aceita¬ção da sua mensagem, e esta perfeita tranquilidade não o desvia, de nenhum modo, da sua terna e afetuosa solicitude para com aqueles a quem se dirige. Pelo contrário, guarda-o daquela ansiedade desordenada de espírito que apenas pode contribuir para o impedir de dar um testemunho firme, elevado e perseverante.
O servo de Deus deve recordar-se sempre que a mensagem que leva é a mensagem de Deus. Quando Zacarias disse ao anjo, "Como saberei isto?-" Acaso se sentiu perturbado este último com essa perguntai Certamente que não. A sua resposta calma, nobre, foi esta: "Eu sou Gabriel, que assisto diante de Deus, e fui enviado a falar-te e dar-te estas alegres novas" (Lucas 1:18-19). As dúvidas do mortal não perturbam o sentimento de dignidade que o anjo tem da sua mensagem. É como se dissesse: "Como podes tu duvidar, quando do trono da Majestade nos céus um mensageiro te foi enviado?" Assim deveria ir todo o mensageiro de Deus, e entregar a sua mensagem neste espírito.




















— CAPÍTULOS 5 e 6 —

ISRAEL OPRIMIDO
E OS RECURSOS DIVINOS

A Escravidão
O resultado da primeira visita a Faraó parece ter sido bem pouco animador. O pensamento de perder os israelitas levou-o a tratá-los com maior crueldade e a sujeitá-los a redobrada vigilância. Sempre que o poder de Satanás é restringido a um ponto o seu furor aumenta. Assim aconteceu neste caso. A fornalha ia ser apagada pela mão do amor libertador; porém, antes de o ser, ela arde com mais intensidade e ferocidade. O diabo não gosta de soltar nenhum daqueles que tem tido debaixo da sua garra terrível. Ele é "o valente", e quando "guarda, armado, a sua casa, em segurança está tudo quanto tem" (Lc 11:21). Porém, bendito seja Deus, há "outro mais valente do que ele", que lhe tirou "a sua armadura em que confiava", e repartiu os seus despoj os pelos objetos favorecidos do Seu amor eterno.
"E depois, foram Moisés e Aarão e disseram a Faraó: Assim diz o SENHOR, Deus de Israel: Deixa ir o meu povo, para que me celebre uma festa no deserto" (capítulo 5:1). Tal era a mensagem do Senhor a Faraó. Deus reivindicava inteira libertação para o povo, sob o fundamento de ser o Seu povo e a fim de que pudessem celebrar-Lhe uma festa no deserto. Nada pode jamais satisfazer Deus acerca dos Seus eleitos senão a sua inteira libertação do jugo da servidão. "Desligai-o e deixa-o ir", é, realmente, o grande lema dos desígnios de Deus acerca daqueles que, embora retidos em servidão por Satanás, são, todavia, os herdeiros da Sua vida eterna.
Quando contemplamos os filhos de Israel no meio dos fornos de tijolo do Egito, temos perante nós uma figura exata da condição de todo o filho de Adão segundo a carne. Ei-los ali, esmagados sob o jugo mortífero do inimigo, sem poder para se libertarem. A simples menção da palavra liberdade não fez mais que aumentar o rigor do opressor para reforçar as cadeias dos seus cativos e carregá-los com um fardo ainda mais opressivo. Era, pois, absolutamente necessário que a salvação viesse de fora. Mas de onde havia de vir?- Onde estavam os recursos para pagar o seu resgate1?- Ou onde estava a força para quebrar as cadeias1? E, admitindo que ambas as coisas existiam, onde estava a vontade para o conseguira Quem estaria disposto a libertá-los?- Ah! Não havia esperança nem de dentro nem de fora. Apenas podiam olhar para cima. O seu refúgio era Deus: Ele tinha tanto o poder como o querer; e podia efetuar a redenção por poder e por preço. No Senhor, e somente n'Ele estava a salvação do povo de Israel oprimido e arruinado.
É sempre assim em todos os casos. "E em nenhum outro há salvação, porque certo sim! debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos" (At 4:12). O pecador está debaixo do poder daquele que o domina com um poder despótico. Está "vendido sob o pecado" (Rm 7:14); está preso à vontade do diabo (2 Tm 2:26) — preso com as cadeias da concupis¬cência, da ira e da cólera, fraco (Rm 5:6), "sem esperança e semDeus" (Ef 2:12). Tale a condição do pecador. Comopoderia,pois,libertar-se
A Velha Natureza
Tão-pouco se trata de uma questão áacondição do pecador: a sua própria natureza está radicalmente corrompida—inteiramente debaixo do poder de Satanás. Por isso, não só necessita de ser introduzido numa nova posição, mas também de ser dotado de uma nova natureza. A natureza e a condição andam sempre unidas. Se fosse possível o pecador melhorar a sua condição, de que lhe serviria isso enquanto a sua natureza continuasse a ser irremediavelmente má? Um nobre poderia recolher e adoptar um mendigo e outorgar-Ihe a fortuna e a posição de nobre, mas nunca poderia transmitir-lhe nobreza; e assima natureza do mendigo nunca poderia achar satisfação ocupando a posição de um nobre. É necessário possuir-se uma natu¬reza que corresponda à posição, e uma posição que corresponda aos desejos, aos afetos, e às tendências dessa natureza.
Por isso, o evangelho da graça de Deus ensina-nos que o crente é introduzido numa posição inteiramente nova e que já não é considerado como estando no seu anterior estado de culpa e conde¬nação, mais sim num estado de eterna e perfeita justificação. A condição em que Deus o vê agora não é apenas de pleno perdão, mas um estado de perfeição tal que a santidade infinita não pode achar nele tanto como uma simples nódoa de pecado. Foi tirado da sua condição de culpa e colocado para sempre numa nova condição de justiça imaculada. Não é que, de modo nenhum, a sua antiga condição haja sido melhorada. Isto seria inteiramente impossível, "Aquilo que é torto não se pode endireitar" (Ec 1:15). "Pode o etíope mudar a sua pele, ou o leopardo as suas manchas1?-" (Jr 13:23). Nada há mais oposto à verdade fundamental do evangelho que a teoria do melhoramento gradual da condição do pecador. O pecador é nascido numa má condição, e enquanto não "nascer de novo" não pode estar em qualquer outra. Poderá procurar melhorar-se. Pode tomar a resolução de ser melhor no futuro — de "voltar uma nova página" da sua existência —, de alterar o seu modo de vida; porém, com tudo isto não consegue sair de sua condição de pecador. Poderá fazer-se religioso, como se ousa dizer, poderá tentar orar, poderá observar diligentemente as ordenações, e revestir as aparências de uma reforma moral; contudo nenhuma destas coisas poderá, no mínimo, alterar a sua posição perante Deus.

A Nova Natureza
A questão é semelhante à questão da natureza. Como poderá o homem alterar a sua natureza? Poderá submetê-la a uma série de operações, poderá dominá-la e discipliná-la; porém continuará a ser natureza. "Aquele que é nascido da carne é carne" (Jo 3:6). E neces¬sário que haja uma nova natureza, assim como uma nova disposição. Mas como poderá o pecador adquiri-las? - Crendo o testemunho que Deus de Seu Filho deu. "A todos quantos o receberam deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus: aos que crêem no seu nome" (Jo 1:12). Aqui aprendemos, que todos os que crêem no nome do unigénito Filho de Deus, têm o direito ou o privilégio de serem feitos filhos de Deus. São feitos participantes de uma nova natureza e têm a vida eterna. "Aquele que crê no Filho tem a vida eterna" (Jo 3:36). "Na verdade, na verdade vos digo que, quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, e não entrará em condena¬ção, mas passou da morte para a vida" (Jo 5:24). "E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti só por único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (Jo 17:3). "E o testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está em seu Filho. Quem tem o Filho tem a vida"(1 Jo5:11,12).

O Fundamento da Justificação
Tal é a doutrina das Sagradas Escrituras quanto à questão importante da condição da natureza. Porém, como é que o crente é feito participante da natureza divina?- Essa mudança admirável depende inteiramente da grande verdade que "JESUS MORREU E RESSUSCITOU" (1 Ts 4:14). Este bendito Senhor deixou o seio do amor eterno, o trono da glória, as mansões de luz imarcescível, veio a este mundo de dores e pecado, tomou sobre Si a forma da carne do pecado, e, depois de haver manifestado e glorificado perfeitamente Deus em todos os atos da Sua vida bendita no mundo, morreu na cruz sob peso de todas as transgressões do Seu povo. E deste modo satisfez tudo que era ou podia ser contra nós. Ele engradeceu e honrou a lei (Is 42:21); e, fazendo-o, tornou-Se maldição sendo pendurado no madeiro. Todos os direitos divinos foram satisfeitos, todos os inimigos reduzidos ao silêncio e os obstáculos foram todos derribados. "A misericórdia e a verdade se encontraram, a justiça e a paz se beijaram" (SL 85:10). A justiça divina foi satisfeita, e o amor infinito pode derramar-se, com todas as virtudes mitigantes e refrigerantes, no coração quebrantado do pecador; enquanto que, ao mesmo tempo, o caudal purificador e expiador, que brotou do lado ferido do Cristo crucificado, satisfaz perfeitamente todos os desejos ardentes da consciência culpada e convencida de pecado. O Senhor Jesus tomou o nosso lugar na cruz: foi o nosso substituto. Ele morreu, "o justo pelos injustos" (IPe 3:18); foi feito "pecado por nós" (2Co5:21); morreu em lugar do pecador; foi sepultado e ressuscitou, havendo cumprido tudo. Por isso nada há absolutamente contra o crente: ele está unido a Cristo e encontra-se na mesma condição de justiça "porque, qual eleé, somos nós também neste mundo" (1 Jo4:17).
Eis aqui o que dá paz inabalável à consciência. Seja não estamos numa condição de culpa, mas de justificação; se Deus nos vê em Cristo e como a Cristo, então a nossa parte é uma paz perfeita. "Sendo, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm5:l).
O sangue do Cordeiro cancelou toda a culpa do crente, riscou o seu grande débito e deu-lhe uma folha perfeitamente em branco, na presença daquela santidade que não pode ver o mal (He 1:13).
Porém, o crente não só achou paz com Deus, como foi feito filho de Deus; e como tal pode gozar a doçura da comunhão com o Pai e o Filho, no poder do Espírito Santo.

O Crente é Filho de Deus
A cruz deve ser encarada debaixo de dois modos diferentes: em primeiro lugar, satisfaz os direitos de Deus; e em segundo lugar é a expressão do amor de Deus. Se considerarmos os nossos pecados emligação com os direitos de Deus como Juiz, acharemos na cruz a plena liquidação desses direitos. Deus, como Juiz, ficou satisfeito e glorificado na cruz. Porém há mais do que isto. Deus tem afetos bem como direitos; e na cruz do Senhor Jesus Cristo todos esses afetos são, de um modo tocante e agradável, anunciados aos ouvidos do pecador; enquanto que ao mesmo tempo, ele é feito participante de uma nova natureza, a qual é capaz de gozar esses afetos e de ter comunhão com o coração donde eles emanam. "Porque também
Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus" (1 Pe 3:18). Desta forma não somente somos introduzidos numa nova condição, como trazidos a uma Pessoa, o Próprio Deu" e somos dotados de uma natureza que pode achar as suas delícias n'Ele. "E não somente isto, mas também nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora alcançamos a reconciliação" (Rm 5:11).

A Festa para o SENHOR
Que formosura e que força encontramos nestas palavras de liberdade: "Deixa ir o meu povo, para que me celebre uma festa no deserto!" "O Espírito do Senhor é sobre mim, pois que me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me a curar os quebrantados do coração, a apregoar liberdade aos cativos, a dar vista aos cegos; a pôr em liberdade os oprimidos" (Lc 4:18,19). As boas novas do evan¬gelho anunciam liberdade de todo o jugo de servidão. Paz e liberdade são os dons que o evangelho outorga a todos aqueles que nele crêem tal qual Deus o tem declarado.
E note-se, "para que me celebrem uma festa". Se deviam deixar de servir a Faraó, era para entrarem ao serviço de Deus. Era uma grande mudança. Em vez de trabalho penoso sob a direção dos oficiais de Faraó, eles iam fazer festa na companhia do Senhor; e, embora tivessem de deixar o Egito e entrar no deserto, contudo a presença divina acompanhá-los-ia; e se o deserto era escabroso e fatigante, era o caminho que conduzia a Canaã. O propósito de Deus era que Israel celebrasse uma festa ao Senhor no deserto, e para isto era preciso que Faraó deixasse ir o povo de Deus.

Faraó e os Grandes deste Mundo
Porém, Faraó não estava de modo nenhum disposto a obedecer a esta ordem divina. "Quem é o SENHOR", disse ele, "cuja voz eu ouvirei, para deixar ir Israel £ Não conheço o SENHOR, nem tampouco deixarei ir Israel" (capítulo 5:2). Porestas palavras, Faraó revelaa sua verdadeira condição moral e esta era de ignorância e consequentemente de desobediência. As duas coisas andam juntas. Se Deus não é conhecido, não pode se obedecido; porque a obediência é sempre baseada sobre o conhecimento. Quando a alma é abençoada com o conhecimento de Deus, descobre que este conhecimento é vida (Jo 17:3), e vida é poder; e quando se tem poder pode-se agir. É óbvio que não se pode agir sem vida; e portanto é uma grande falta de inteligência pretender-se que alguém faça certas coisas com o fim de obter aquilo mediante o qual se pode fazer alguma coisa.
Além disso, Faraó desconhecia-se tanto a si como desconhecia o Senhor. Ele ignorava que era um pobre verme da terra, e que havia sido levantado com o objetivo claro de tornar conhecida a glória d'Aquele a quem disse não conhecer (Êx 9.16; Rm 9.17). "E eles disseram: O Deus dos hebreus nos encontrou; portanto deixa-nos agora ir caminho de três dias ao deserto, para que ofereçamos sacrifícios ao SENHOR e ele não venha sobre nós com pestilência ou com espada. Então, disse-lhes o rei do Egito: Moisés e Arão, por que fazeis cessar o povo das suas obras? Ide a vossas cargas... Agrave-se o serviço sobre estes homens, para que se ocupem nele, e não confiem em palavras de mentira" (versículos 3 a 9).
Que desenrolar encontramos aqui dos secretos recursos do coração humano! Que falta de competência para entrar nas coisas de Deus! Todos os títulos divinos e as revelações divinas eram, segundo o parecer de Faraó, "palavras de mentira". Que sabia ele ou que lhe importava o "caminho de três dias" no deserto ou a festa ao Senhora Como poderia compreender a necessidade de uma tal viagem ou a natureza ou o fim de uma tal festão Era impossível. Faraó podia compreender o que significava agravar a servidão e fazer tijolos; estas coisas tinham para ele um certo sentido de realidade; porém quanto a Deus, ao Seu serviço ou ao Seu culto, só podia vê-lo à luz de uma fútil quimera, inventada por aqueles que buscavam uma desculpa para evitar as duras realidades da vida.
Assim tem acontecido, com frequência, com os sábios e grandes deste mundo. Eles têm sido os primeiros a classificar de vaidade e loucura os testemunhos divinos. Escutai, por exemplo, a opinião que o "nobre Festo" formou sobre a grande questão debatida entre Paulo e os Judeus: "Tinham, porém, contra ele algumas questões acerca da sua superstição e de um tal Jesus, defunto, que Paulo afirmava viver" (At 25:19). Enfim! Como conhecia tão pouco o que dizia! Quão pouco compreendia da importância de saber se Jesus estava morto ou vivo! Não pensou na relação que esta importante questão tinha sobre si e os seus amigos, Agripa e Berenice; porém esta ignorância não alterou em nada o assunto; ele e eles sabem agora alguma coisa mais sobre ele, apesar de nos dias passageiros da sua glória terrestre o terem considerado apenas como uma questão supersticiosa, imprópria da atenção de homens sensatos, e somente própria para ocupar a mente desequilibrada de visionários e entu¬siastas. Sim, a questão importante que decide o destino de todo o filho de Adão, a questão sobre a qual é baseada a condição presente e eterna da Igreja e do mundo, e que es tá ligada a todos os desígnios divinos, era, segundo o juízo de Festo, uma vã superstição.
O mesmo aconteceu no caso de Faraó. Ele nada sabia do Senhor "Deus dos hebreus", o grande "EU SOU", e por isso considerava tudo que Moisés e Arão lhe haviam dito acerca de sacrificar a Deus como "palavras de mentira". As coisas de Deus devem parecer sempre para o espírito profano do homem como vãs, inúteis e desprovidas de sentido. O nome de Deus pode ser usado como parte da fraseologia petulante de uma religião fria e formal; porém Ele Próprio não é conhecido. O Seu nome precioso, o qual encerra para o coração do crente tudo aquilo que ele pode, possivelmente, desejar ou necessitar, não tem para o incrédulo nenhuma significação, nem poder, nem virtude. Portanto, tudo que se relaciona com Deus, as Suas palavras, os Seus desígnios, os Seus pensamentos, os Seus caminhos, tudo, em suma, que trata d'Ele, é considerado como "palavras de mentira".
Mas o tempo aproxima-se rapidamente em que não será assim. O tribunal de Cristo, os terrores do mundo vindouro, e as vagas do lago de fogo, não serão "palavras de mentira". Seguramente que não; e todos aqueles que, pela graça crêem que estas coisas são realidades, devem esf orçar-se por as impor à consciência daqueles que, como Faraó, consideram a fabricação de tijolos como a única em que vale a pena pensar — a única coisa que pode ser chamada verdadeira e sólida.
Ah! Quão frequentemente até os próprios cristãos vivem na região das coisas visíveis, na região do mundo e da carne, de tal maneira que perdem o sentido profundo, imutável e poderoso da realidade das coisas divinas e celestiais! Temos necessidade de viver mais continuamente na região da fé, a região do céu, e na região da "nova criação". Então veremos as coisas como Deus as vê, pensare¬mos a respeito delas como Ele pensa, e toda a nossa vida será mais elevada, mais desinteressada, inteiramente separada do mundo e das coisas terrenas.

Moisés Desanimado
Contudo, a prova mais dolorosa para Moisés não foi motivada pelo juízo que Faraó fez da sua missão. O servo fiel e consagrado de Cristo deve esperar sempre ser considerado pelos homens deste mundo como um simples entusiasta visionário. O ponto de vista donde o contemplam é tal que não nos permite esperar deles outra coisa. Quanto mais fiel for o servo ao seu Mestre divino, quanto mais seguir as Suas pisadas, quanto mais conforme for à Sua imagem, tanto mais, possivelmente, será considerado, pelos filhos deste mundo, como um que "está fora de si". Portanto, este juízo nem deve surpreendê-lo nem desanimá-lo. Porém é uma coisa infinitamente mais penosa para ele quando o seu serviço e o seu testemunho são mal interpretados, desprezados ou rejeitados por aqueles que são os próprios objetos deste serviço e testemunho. Quando isto acontece ele tem muita necessidade de estar comDeus, no segredo dos Seus pensamentos, no poder da comunhão, para ter o seu espírito fortalecido na realidade imutável da sua carreira e serviço. Em circunstâncias tão difíceis, se não se está plenamente persuadido da missão divina, e consciente da presença divina, a queda será quase certa.
Se Moisés não tivesse sido amparado assim, o seu coração teria fraquejado inteiramente quando o agravamento da opressão do poder de Faraó arrancou aos oficiais dos filhos de Israel palavras de desalento e desânimo como estas: "O SENHOR atente sobre vós e julgue isso, porquanto fizestes o nosso cheiro repelente diante de Faraó e diante de seus servos, dando-lhes a espada nas mãos para nos matar" (versículo 21). Isto era muito triste; e Moisés assim o sentiu, pois que "tornou ao SENHOR e disse: Senhor! Por que fizeste mal a este povo£ Por que me enviaste? Por que desde que entrei a Faraó para falar em teu nome, ele maltratou a este povo; e, de nenhuma maneira livraste o teu povo" (versículos 22 a 23). No próprio momento em que a libertação parecia estar perto, as coisas tomaram um aspecto muito desanimador; assim como acontece com a natureza, em que a hora mais escura da noite é com frequência aquela que precede imediatamente o amanhecer. Assim será certa¬mente nos últimos dias da história de Israel: a hora da mais profunda obscuridade e da mais espantosa angústia, precederá a aparição repentina do "Sol da Justiça" (Mt 4:1:2), emergindo detrás das nuvens, e trazendo salvação debaixo das suas asas para curar eter¬namente a filha do Seu povo (Jr6:14; 8:11).

A Resposta do SENHOR
Pode muito bem perguntar-se até que ponto o "porquê " de Moisés foi ditado por uma verdadeira fé ou uma vontade mortificada. Contu¬do, o Senhor não repreende Moisés por esta objeção motivada pela grandeza da aflição do momento. "Agora verás o que hei de fazer a Faraó; porque, por mão poderosa, os deixará ir, sim, por mão poderosa os lançará de sua terra" (capítulo 6:1), foi a Sua bondosa resposta.
Esta resposta está cheia de graça peculiar. Em vez de censurar a insolência daquele que se atreve a duvidar dos caminhos inexcrutáveis do grande EU SOU, o misericordioso Senhor procura aliviar o espírito cansado do Seu servo mostrando-lhe o que em breve ia fazer. Esta maneira de agir é digna de Deus, de quem desce toda a boa dádiva e todo o dom perfeito (Tg 1:5, 17), "Pois ele conhece a nossa estrutura;lembra-se de que somos pó" (SI 103:14).
Nem tampouco é só em Seus atos, mas, sim, em Si Mesmo, em Seu próprio nome e caráter, que Ele quer fazer conhecer ao coração o seu alívio: é nisso que está a bem-aventurança plena, divina, e eterna. Quando o coração pode encontrar em Deus o seu alívio, quando pode refugiar-se no lugar seguro que lhe oferece o Seu nome, quando pode achar no Seu caráter a resposta a todas as suas necessi¬dades, então está verdadeiramente muito acima da região da criatura —pode abandonar as promessas tentadoras do mundo é considerar as pretensões altivas do homem pelo seu j usto valor. O coração dotado com o conhecimento prático de Deus não só pode olhar para o mundo e dizer "tudo é vaidade", mas pode também poros seus olhos emDeus e dizer; "todas as minhas fontes estão em ti" (Sl 87:7).

O Nome do SENHOR
"Falou mais Deus a Moisés e disse: Eu sou o SENHOR. E eu apareci a Abraão, a Isaque, e a Jacó, como o Deus Todo-poderoso; mas pelo meu nome, o SENHOR, não lhes fui perfeitamente conhecido. E também estabeleci o meu concerto com eles, para dar-lhes a terra de Canaã, a terra de suas peregrinações, na qual foram peregrinos. E também tenho ouvido o gemido dos filhos de Israel, aos quais os egípcios escravizam, e me lembrei do meu concerto" (versículos 2 a 5). "O SENHOR" é o título que Deus toma como Libertador do Seu povo, em virtude da Sua aliança de pura e soberana graça. Ele revela-se a Si como a grande Origem natural do amor redentor, estabelecendo os Seus conselhos, cum¬prindo as Suas promessas, e libertando o Seu povo eleito de todo o inimigo e de todo o mal. Era privilégio de Israel permanecer para sempre sob a salvaguarda desse título significativo, o qual nos revela Deus atuando para Sua própria glória, e levantando o Seu povo oprimido a fim de mostrar nele essa glória.
"Portanto, dize aos filhos de Israel: Eu sou o SENHOR, e vos tirarei de debaixo das cargas dos egípcios, vos livrarei da sua servidão e vos resgatarei com braço estendido e com juízos gran¬des. E eu vos tomarei por meu povo, e serei vosso Deus; e sabereis que eu sou o SENHOR, VOSSO Deus, que vos tiro de debaixo das cargas dos egípcios; e eu vos levarei à terra, acerca da qual levantei minha mão, que a daria a Abraão, e a Isaque, e a Jacó, e vo-la darei por herança, eu o SENHOR" (versículos 6 a 8). Tudo isto proclama a graça mais pura, mais livre, mais rica. O Senhor apresenta-Se ao coração do Seu povo como Aquele que ia operar por eles, neles, e com eles para manifestação da Sua glória. Por muito desamparados e arru¬inados que estivessem, Ele havia descido para fazer ver a Sua glória e manifestar a Sua graça e mostrar um exemplo do Seu poder na sua plena salvação. A sua glória e a salvação do Seu povo estavam inseparavelmente unidas. Mais tarde todas estas coisas haviam de lhes ser recordadas, como lemos no Livro de Deuteronômio, capítulo 7:7-8, "O SENHOR não tomou prazer em vós, nem vos escolheu, porque a vossa multidão era mais do que a de todos os outros povos, pois vós éreis menos em número do que todos os povos: mas porque o SENHOR VOS amava; e, para guardar o j uramen-to que jurara a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão forte e vos resgatou da casa da servidão, da mão de Faraó, rei do Egito".
Nada há mais próprio para estabelecer e firmar o coração tremente e duvidoso do que o conhecimento de que Deus nos tomou tais quais somos, que conhece perfeitamente o que somos; e que, além disso, nunca poderá descobrir em nós alguma coisa que possa alterar o caráter e a medida do Seu amor: "...como havia amado os Seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim" (Jo 13:1). Aquele que Ele ama, ama-o até ao fim. Esta verdade é motivo de gozo inexplicável. Deus sabia tudo a nosso respeito—conhecia o pior que havia em nós, quando manifestou o Seu amor para conosco no dom de Seu Filho. Sabia o que necessitávamos, e fez ampla provisão para tudo isso. Sabia qual era o débito, e pagou-o. Sabia o que havia por fazer, e fez tudo. As Suas próprias exigências tinham de ser cumpridas, e cumpriu-as. É tudo obra Sua. Por isso, vêmo-Lo dizer a Israel, Eu "...vos tirarei...", "vos livrarei", "vos tomarei por meu povo", "vos levarei à terra..", "Eu sou o Senhor". Isto era o que Ele queria fazer com base naquilo que Ele era. Enquanto esta grande verdade não for inteiramente compreendi¬da e não for recebida pela alma no poder do Espírito Santo, não pode haver uma paz sólida. Não se pode ter o coração feliz nem a consciência tranquila antes de se saber e crer que todos os direitos divinos já foram divinamente satisfeitos.

Os Nomes dos que Pertencem ao SENHOR
Os restantes versículos deste capítulo tratam do relato dos "chefes das casas dos pais" em Israel; é um registro muito interes¬sante, visto que nos mostra como o Senhor desce para numerar aqueles que Lhe pertencem, embora estejam ainda debaixo do poder do inimigo. Israel era o povo de Deus, e aqui Ele conta aqueles sobre os quais tinha o direito de soberania. Que graça admirável! Encon¬trar um objeto de interesse naqueles que se encontravam no meio de toda a degradação da servidão do Egito! Era graça digna de Deus. Aquele que criou os mundos e era rodeado por hostes de anjos, sempre prontos a executar "a sua vontade" (SI 103:21), desceu ao mundo com o propósito de adotar alguns escravos com cujo nome quis ligar o Seu para sempre. Desceu até junto dos fornos de tijolos do Egito e ali viu um povo que gemia debaixo do chicote do opressor; e, então, proferiu estas palavras memoráveis: "Deixa ir o meu povo"; e, havendo assim falado, procedeu à sua contagem, como se quisesse dizer: "Estes são Meus; vou ver quantos tenho, para que nenhum seja deixado para trás". "Levanta o pobre do pó... para o fazer assentar entre os príncipes, para o fazer herdar o trono de glória" (1 Sm 2:8).


— CAPÍTULOS 7 a 11 —
"DEIXA IR O MEU POVO

Estes cinco capítulos formam uma parte distinta, cujo conteúdo pode ser dividido em três pontos, a saber: os Dez Juízos do SENHOR, a resistência de "Janes e Jambres" e as quatro objeções de Faraó.

Os Dez Juízos
Toda a terra do Egito tremeu debaixo dos golpes sucessivos da vara de Deus. Todos, desde o monarca sentado no seu trono à criada moendo no moinho, tiveram de sentir o peso terrível dessa vara. "Enviou Moisés, seu servo, e Arão, a quem escolhera. Fizeram entre eles os seus sinais e prodígios, na terra de Cam. Mandou às trevas que a escurecessem; e elas não foram rebeldes à sua palavra. Converteu as suas águas em sangue, e assim fez morrer os peixes. A sua terra produziu rãs em abundância, até nas câmaras dos seus reis. Falou ele, e vieram enxames de moscas e piolhos em todo o seu território. Converteu as suas chuvas em saraiva e fogo abrasador, na sua terra. Feriu as suas vinhas e os seus f igueirais e quebrou as árvores dos seus termos. Falou ele, e vieram gafanhotos e pulgão em quantidade inumerável, e comeram toda a erva da sua terra e devoraram o fruto dos seus campos. Feriu também a todos os primogénitos da sua terra, as primícias de todas as suas forças" (SI 105:26 -36).
Aqui, o Salmista dá-nos uma ideia resumida desses terríveis castigos que por dureza do seu coração Faraó trouxe sobre a sua terra e o seu povo. Este soberbo monarca havia empreendido a tarefa de resistir à vontade soberana e ao caminho do Deus Altíssimo; e, como consequência justa desta atitude, foi entregue à cegueira judicial e dureza de coração. "Porém o SENHOR endureceu o coração de Faraó, e não os ouviu, como o SENHOR, tinha dito a Moisés. Então, disse o SENHOR a Moisés: Levanta-te, pela manhã cedo, e põe-te diante de Faraó, e dize-lhe: Assim diz o SENHOR, oDeus dos hebreus: Deixa ir o meu povo, para que me sirva. Porque esta vez enviarei todas as minhas pragas sobre o teu coração, e sobre os teus servos, e sobre o teu povo, para que saibas que não há outro como eu, em toda a terra. Porque agora tenho estendido a mão para te ferir a ti e ao teu povo com pestilência e para que sejas destruído da terra; mas deveras para isto te mantive, para mostrar o meu poder em ti e para que o meu nome seja anunciado em toda a terra" (capítulo 9:12-16).

O Aspecto Profético da Rebelião contra o SENHOR
Considerando Faraó e os seus atos, a alma é transportada às cenas emocionantes do Apocalipse, as quais nos mostram como o último opressor orgulhoso do povo de Deus faz descer sobre si e o seu reino as sete taças da ira do Deus Todo-Poderoso. É propósito de Deus que Israel tenha a proeminência na terra; e, portanto, todo aquele que tiver a pretensão de se opor a esta proeminência terá de ser posto de parte. Agraça divina deve encontrar o seu objetivo; e todo aquele que intentar opor-se como um obstáculo a essa graça terá de ser afastado do caminho; quer este seja o Egito, Babilónia, ou "a besta que foi e já não é" (Ap 17:8), pouco importa. O poder divino abrirá o caminho para que a graça divina possa derramar-se, e maldição eterna cairá sobre aqueles que se opuserem a ela. Os obstinados saborearão durante toda a eternidade o fruto amargo da sua rebelião contra "o SENHOR Deus dos hebreus". Ele disse ao Seu povo: "Toda a ferramenta preparada contra ti não prosperará" (Is54:17),eaSua fidelidade imutável cumprirá certamente aquilo que a Sua graça infinita prometeu.
Assim, no caso de Faraó, quando ele persistiu em reter, com mão de ferro, o Israel de Deus, as taças da ira divina foram derramadas sobre ele; e a terra do Egito foi coberta, em toda a sua extensão, de trevas, enfermidades e desolação. Assim será, em breve, quando o grande último opressor emergir do abismo, armado com poder satânico para esmagar debaixo dos seus pés soberbos (SI 36:11) aqueles que o Senhor escolheu como objetos do Seu amor. O Seu trono será destruído, o seu reino devastado por meio das sete últimas pragas, e, finalmente, ele próprio será lançado, não no Mar Vermelho, mas "no lago de fogo e enxofre" (Ap 18:8; 20:10).
Nem um til nem um jota de tudo que Deus prometeu a Abraão, a Isaque e Jacó, deixará de ser cumprido. Deus cumprirá tudo. Apesar de tudo que tem sido dito e feito em sentido contrário, Deus recorda-Se das suas promessas e cumpri-las-á. "Porque todas quantas pro¬messas há de Deus são nele sim, e por ele o Amen" em Jesus Cristo (2 Co 1:20). Muitas dinastias se têm levantado e atuado no palco deste mundo; muitos tronos se têm erigido sobre as ruínas da antiga glória de Jerusalém; muitos impérios têm florescido por algum tempo, para logo caírem; potentados ambiciosos têm combatido pela posse da "terra prometida"; todas estas coisas têm tido lugar; porém o Senhor tem dito acerca da Palestina: "...a terra não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha" (Lv 25:23). Portanto, ninguém possuirá para sempre esse país senão o Próprio Senhor, e Ele o possuirá por meio da semente de Abraão. Uma simples passagem das Escrituras é suficiente para fixar as nossas ideias sobre este assunto ou qualquer outro. A terra de Canaã é para a posteridade de Abraão, e a posteridade de Abraão é para a terra de Canaã, e nenhum poder humano ou infernal pode j amais inverter esta ordem divina. O Deus eterno empenhou a Sua palavra, e o sangue do concerto eterno foi derramado para a retificar. Quem, pois, poderá anulá-la1?- "O céu e a terra passarão" mas essa palavra não há-de passar (Mt 24:35). "Não há outro, ó Jesurum, semelhante a Deus, que cavalga sobre os céus para a tua ajuda e, com a sua alteza, sobre as mais altas nuvens! O Deus eterno te seja por habitação, e por baixo de ti estejam os braços eternos; e ele lance o inimigo de diante de ti e diga: Destrói-o. Israel, pois, habitará só e seguro, na terra da fonte dejacó, na terra de cereal e de mosto; e os seus céus gotejarão orvalho. Bem-aventurado és tu, ó Israel! Quem é como tu, um povo salvo pelo SENHOR, O escudo do teu socorro, e a espada da tua alteza i Pelo que os teus inimigos te serão sujeitos, e tu pisarás sobre as tuas alturas" (Dt 33:26-29).

Janes e Jambres
Vamos considerar agora, em segundo lugar, a oposição de "Janes e Jambres", magos do Egito. Nunca teríamos conhecido os nomes desses dois inimigos da verdade se o Espírito Santo os não houvesse mencionado em ligação com os "tempos perigosos" dos quais o apóstolo Paulo avisa seu filho Timóteo. É da máxima importância que o leitor crente compreenda claramente o verdadeiro caráter da resistência que esses dois encantadores opuseram a Moisés, e para que ele faça uma ideia completa do assunto, citaremos toda a passagemda epístola de Paulo aTimóteo, passagemaliás profunda¬mente importante e solene.

Nos Últimos Dias
"Sabe, porém, isto: que nos últimos dias sobrevirão tempos trabalhosos; porque haverá homens amantes de si mesmos, avaren¬tos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, semafeto natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obs¬tinados, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela. Destes afasta-te. Porque deste número são os que se introduzem pelas casas e levam cativas mulheres néscias carregadas de pecados, levadas de várias concupiscências, que aprendem sempre,e nunca podem chegar ao conhecimento da verdade. E, como Janes e Jambres resistiram a Moisés, assim também estes resistem à verdade, sendo homens corruptos de entendimento e réprobos quanto à fé. Não irão, porém, avante; porque a todos será manifesto o seu desvario, como também o foi o daqueles" (2Tm 3:1-9).
Ora, a natureza desta resistência à verdade é particularmente solene. A oposição que Janes e Jambres fizeram a Moisés consistiu simplesmente em imitar, até onde lhes foi possível, tudo aquilo que ele fazia. Não vemos que eles atribuíssem a um poder enganador ou mau os sinais que ele fazia, mas antes que procuraram neutralizar os seus efeitos sobre a consciência fazendo eles as mesmas coisas. O que Moisés fazia, também eles o podiam fazer, de modo que, afinal não havia grande diferença. Um era tão bom como os outros. Um milagre. Se Moisés fazia milagres para tirar o povo do Egito, eles podiam fazer milagres para os obrigarem a ficar no país. Onde estava, pois, a diferença?
De tudo isto aprendemos a verdade solene que a resistência mais diabólica ao testemunho de Deus, no mundo, vem daqueles que, embora imitem os efeitos da verdade, têm apenas a "aparência de piedade" e "negam a eficácia dela" (2 Tm 3:5). As pessoas desta condição podem fazer as mesmas coisas, adoptar os mesmos costu¬mes e o mesmo ritual, empregar a mesma linguagem e professar as mesmas opiniões dos outros. Se o cristão verdadeiro, constrangido pelo amor de Cristo, dá de comer aos que têm fome, dá vestuário aos nus, visita os enfermos, espalha as Escrituras, distribui tratados, contribui para a divulgação do evangelho, faz oração, canta hinos espirituais, prega o evangelho, o formalista pode fazer todas estas coisas; e isto, note-se, é o caráter especial da resistência oposta à verdade "nos últimos tempos" — é o espírito de Janes e Jambres.
Quão necessário é compreendermos esta verdade! Quão impor¬tante é recordar que, assim "como Janes e Jambres resistiram a Moisés", assim também esses "amantes de si mesmos", do mundo e dos prazeres "resistem à verdade"! Não querem viver sem "aparên¬cia de piedade", mas, enquanto adoptam a "forma", porque é hábito, detestam "a eficácia" dela, porque essa significa a renúncia própria. "A eficácia da piedade" implica o reconhecimento dos direitos de Deus, o estabelecimento do Seu reino no coração, e, por consequ¬ência a Sua manifestação na vida e no caráter; porém o formalista nada sabe disto. "Aeficácia" da piedade nunca poderá estar de acordo com nenhum destes caracteres horrendos descritos na passagem acima reproduzida; porém "a aparência", encobrindo-os, permite-Ihes viverem sem terem de se submeter, e isto agrada ao formalista. Ele não gosta de dominar as suas tentações, de interromper os seus prazeres, de refrear as suas paixões, de pôr em regra os seus afetos, de que o seu coração seja purificado. Somente precisa de bastante religião para poder tirar o melhor partido da vida presente e do mundo futuro. Desconhece o que significa abandonar o mundo que passa, por ter achado "o mundo vindouro".
Considerando as diversas formas de oposição de Satanás à verdade de Deus, vemos que o seu método tem sido sempre, em primeiro lugar, opor a violência; e, depois, se este método falha, corrompê-la por meio de imitação. Por isso, procurou em primeiro lugar matar Moisés (capítulo 2:15), e tendo falhado em realizar o seu propósito, procurou imitar as suas obras.
O mesmo aconteceu com a verdade confiada à Igreja de Deus. Os primeiros esforços de Satanás manif estaram-se em ligação com a ira dos principais sacerdotes e anciãos do povo por meio do tribunal, o cárcere e a espada. Porém, na passagem que reproduzi¬mos da 2a epístola a Timóteo não se faz menção de tais processos. A violência aberta foi substituída por um meio mais astuto e perigoso de uma profissão vazia, ineficaz e a imitação. O inimigo, em vez de se apresentar coma espada da perseguição na mão, passeia com o manto da profissão sobre os ombros, professando e imitando aquilo que em outro tempo combateu e perseguiu; e, por este meio consegue vantagens assombrosas no tempo presente. As formas horríveis que o pecado moral tem revestido, e que de século para século têm manchado as páginas da história da humanidade, longe de se encontrarem apenas naqueles lugares onde naturalmente poderiam buscar-se, nos antros e cavernas das trevas humanas, acham-se cuidadosamente ocultas debaixo das pregas do manto de uma profissão fria, impotente e sem influência, e esta é uma das obras-primas de Satanás.
É natural que o homem, como ser caído e corrompido, seja egoís ta, cobiçoso, vaidoso, altivo; mas que seja tudo isto sob a capa formosa da "aparência de piedade" denota a energia especial de Satanás na sua resistência à verdade "nos últimos dias".
É natural que o homem manifeste abertamente esses vícios repugnantes — a concupiscência e paixões—, que são o resultado forçoso do seu afastamento da origem de santidade infinita e pureza, porque o homem será sempre o que ele é até o fim da sua história. Por outra parte, quando se vê o nome santo do Senhor Jesus
Cristo associado com a perversidade e a maldade implacável do homem; quando se vêem os princípios santos ligados com práticas ímpias; quando se vêem todos os característicos da corrupção dos gentios, mencionados no primeiro capítulo da epístola aos Roma¬nos, ligados com a "aparência de piedade", então, de verdade, pode dizer-se, eis aqui o caráter horrível dos "últimos dias", a resistência de"janesejambres".

A Aparência de Piedade
Contudo, os magos do Egito só puderam imitar os servos do Deus vivo em três coisas, a saber: tornaram as suas varas em serpentes (capítulo 7:12);transformaramaágua em sangue (capí¬tulo 7:22), e fizeram subir as rãs sobre a terra (capítulo 8:7); porém, quanto ao quarto sinal, que implicava a exibição da vida, em ligação com a manifestação da humilhação da natureza, viram-se inteira¬mente confundidos e tiveram de reconhecer "isto é o dedo de Deus" (capítulos 8:16 a 19). Assim sucede também com os que resistem nos últimos dias. Tudo quanto fazem é segundo o poder direto de Satanás e dentro dos limites do seu poder. Além disso, o seu fim específico é resistirem à verdade.
As três coisas que Janes e Jambres puderam executar foram caracterizadas por poder satânico, morte e impureza; quer dizer, as serpentes, o sangue e as rãs. Foi assim que "resistiram a Moisés" e, "assim também estes resistem à verdade", e impedem a sua ação moral sobre a consciência. Nada há que tanto contribua para enfraquecer o poder da verdade como ver pessoas que não se encontram sob a sua influência fazerem as mesmas coisas que aqueles que estão debaixo dela fazem. Assim opera Satanás no momento atual. Ele procura fazer com que todos os homens sejam considerados como cristãos; quer fazer-nos crer que estamos rode¬ados de "um mundo cristão", porém esse pretenso mundo cristão não passa de uma cristandade professa, a qual, longe de dar testemu¬nho da verdade é aqui destinada, segundo os propôs itos do inimigo da verdade, para se opor à influência purificadora da verdade.
Em resumo, o servo de Cristo, testemunha da verdade, está rodeado, de todos os lados, pelo espírito de "Janes e Jambres"; e é conveniente que recorde este fato, que conheça inteiramente o mal com que tem que lutar e não esqueça que se trata da imitação que o diabo faz da realidade de Deus, produzida, não pela vara de um mago declaradamente mau, mas, sim mediante os atos de falsos religiosos, que têm "aparência de piedade", mas negam a eficácia dela"; pessoas que fazem coisas aparentemente boas e justas, mas que não têm a vida de Cristo em suas almas, nem o amor de Deus em seus corações, nem tampouco o poder da Palavra de Deus em suas consciências. "Não irão porém avante", acrescenta o apóstolo, "porque a todos será manifesto o seu desvario, como também o foi o daqueles". Com efeito a insensatez de Janes e Jambres foi manifesta a todos, quando não somente se viram impotentes para continuar a imitar os atos de Moisés e Arão, como foram envolvidos nos juízos de Deus. Isto é um ponto muito importante. A insensatez de todos aqueles que não possuem mais do que a aparência será manifestada. Não somente serão incapazes de imitar os efeitos plenos e próprios da vida e poder divinos, como eles mesmos virão a ser os objetos dos juízos que resultaram da rejeição da verdade que eles próprios rejeitaram.
Alguém dirá que tudo is to não encerra instrução para uma época, como a nossa, de aparência sem eficácia'?- Certamente que tem; são exemplos que deveriam exercer influência sobre toda a consciência em poder vivo e falar a todos os corações com assentos solenes e penetrantes: deveriam levar-nos a examinarmo-nos seriamente para sabermos se estamos dando testemunho da verdade e se andamos segundo a eficácia da piedade ou se somos um obstáculo dela neutra¬lizando os seus efeitos por só termos a sua aparência. Os efeitos da eficácia da piedade serão manifestados se nós permanecermos nas coisas que temos aprendido (2 Tm 3.14). Só aqueles que são ensinados porDeus poderão permanecer nessas coisas—aqueles que, pelo poder do Espírito de Deus, têm bebido da água da vida na fonte pura da inspiração divina.
Graças a Deus, em todas as frações da Igreja professa há muitas destas pessoas. Aqui e ali, há muitos cujas consciências foram lavadas no sangue expiador do "Cordeiro de Deus", e cujos corações batem com verdadeiro afeto pela Pessoa do Senhor Jesus, e cujos espíritos são animados com "a bendita esperança" de O verem assim como Ele é e de serem feitos eternamente semelhantes à Sua imagem. E animador podermos pensar em tais pessoas. É uma misericórdia inefável podermos ter comunhão com aqueles que podem dar a razão da sua esperança e da posição que ocupam como filhos de Deus. Que o Senhor aumente o seu número dia a dia: e que a eficácia da piedade se espalhe mais e mais nestes últimos dias, para que se levante um testemunho brilhante e bem mantido ao nome d'Aquele que é digno de ser exaltado!

As Quatro Objeções de Faraó
Resta-nos considerar ainda o terceiro ponto desta parte do livro, a saber, as quatro objeções ardilosas de Faraó à libertação completa e inteira separação do povo de Deus do Egito.

A Primeira Objeção
A primeira destas objeções encontra-se no capítulo 8:25. "En¬tão, chamou Faraó a Moisés e a Arão e disse: Ide e sacrificai ao vosso Deus nesta terra". E desnecessário acentuar aqui que, quer sejam os magos com a resistência que opõem ou Faraó com as suas objeções, é realmente Satanás que está atrás de toda esta cena: e o seu objetivo, nesta proposta de Faraó, consistia em impedir o testemunho do nome do Senhor—um testemunho ligado com a separação com¬pleta entre o Seu povo e o Egito. É evidente que um tal testemunho não podia ser dado se eles tivessem continuado no Egito, ainda mesmo que tivessem oferecido sacrifícios ao Senhor. Os israelitas ter-se-iam então colocado no mesmo terreno que os egípcios, e teriam posto o Senhor ao mesmo nível dos deuses do Egito. Então os egípcios poderiam ter dito aos israelitas: "Não vemos nenhuma diferença entre nós; vós tendes o vosso culto, e nós temos o nosso; é tudo a mesma coisa".
Os homens consideram perfeitamente natural que cada qual tenha uma religião, seja qual for. Contanto que sejamos sinceros e não haja interferência na crença do próximo, pouco importa a forma da nossa religião. Tais são os pensamentos dos homens a respeito daquilo que eles chamam religião; porém é bem claro que a glória do nome de Jesus não é tida em conta em tudo isto. O inimigo opor-se-á sempre à ideia de separação, e o coração do homem nunca poderá compreendê-la. O coração humano pode aspirar à piedade, porque a consciência testifica que não está tudo em regra; mas ao mesmo tempo anela seguir o mundo: gosta de sacrificar a Deus na terra; assim quando se aceita uma religião mundana e se recusa sair ou fazer separação dela (2 Co 6), o fim de Satanás é conseguido. O seu plano invariável, desde o princípio, consiste em impedir o testemunho dado ao nome de Deus na terra.Tal era o fim escuro da proposta, "Ide e sacrificai ao vosso Deus nesta terra". Que fim o do testemunho, se esta proposta tivesse sido aceite! O povo de Deus no Egito e o Próprio Deus associado com os ídolos do Egito! Que terrível blasfêmia!

A Religião
Prezado leitor, nós deveríamos ponderar estas coisas seriamen¬te. Este esforço para induzir o povo de Israel a sacrificar a Deus no Egito revela um princípio muito mais importante do que podería¬mos, à primeira vista, supor. O inimigo regozijar-se-ia se conseguis¬se obter, de qualquer modo, e de uma vez para sempre, em quaisquer circunstâncias, até mesmo a aparência de sanção divina para a religião do mundo. Ele não põe dificuldades a uma religião desta espécie. O seu intento é alcançado tão eficientemente por meio daquilo que é chamado "o mundo religioso" como de qualquer outro modo; e, por isso, quando consegue que um verdadeiro cristão acredite na religião do mundo, obtém um grande triunfo.
É um fato bem conhecido que nada há que provoque tanta indignação como este princípio divino de separação deste presente século mau. Podemos ter as mesmas opiniões, pregar as mesmas doutrinas e fazer o mesmo trabalho: porém, se procurarmos, ainda que seja na mais pequena medida, agir segundo a ordem divina, que é: "Destes afasta-te" (2Tm 3:5), "saído meio deles" (2 Co 6:17), podemos es tar certos de encontrar a mais violenta oposição. Como se explica isto? Principalmente devido ao fato que os cristãos, estando separados da vã religião, rendem um testemunho a Cristo que nunca poderiam dar enquanto estivessem ligados com ela.
Existe um grande diferença entre Cristo e a religião do mundo. Um pobre hindu, envolvido em trevas, pode falar da sua religião, mas nada sabe de Cristo. O apóstolo, não diz, "se há algum conforto na religião" (Fp 2:1); embora os devotos de uma religião qualquer achem incontestavelmente nela aquilo que lhes parece ser conso¬lação. Paulo, pelo contrário, achou a sua consolação em Cristo, depois de haver experimentado plenamente a inutilidade da reli¬gião, ainda que na sua forma mais bela e imponente (comparem-se Gll:13-14;Fp3:3-ll).
É verdade que o Espírito Santo fala-nos da "religião pura e imaculada" (Tg 1:27); porém o homem descrente não pode, de modo nenhum, participar dela; porque como poderá ter parte naquilo que é " puro e imaculado" ? Esta religião é do céu, a fonte de tudo que é puro e excelente; está exclusivamente diante de nosso "Deus e Pai"; serve para exercício das funções da nova natureza, com a qual são dotados todos aqueles que crêem no nome do Filho de Deus (Jol: 12 e 13; Tg 1:18; 1 Pe 1:23; ljo 5:1). Finalmente, define-se pelos dois principais aspectos da benevolência e santidade pessoal "visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações" (Tg 1:27).
Se examinarmos a lista dos verdadeiros frutos do Cristianismo, veremos que estão todos classificados sob estes dois pontos princi¬pais; e é profundamente interessante notar que, quer nos voltemos para o capítulo 8 do Êxodo ou o primeiro de Tiago, a separação do mundo é apresentada como uma qualidade indispensável no verda¬deiro serviço a Deus. Nada que seja manchado com o contato "deste século mau" pode ser aceitável diante de Deus, nem receber da Sua mão o selo" puro e imaculado". "Pelo que saí do meio deles, e apartai-vos, diz o Senhor; e não toqueis nada imundo, e eu vos receberei; e eu serei para vós Pai, e vós serreis para mim filhos e filhas, diz o SenhorTodo-Poderoso" (2Co6:17-18).
Não havia no Egito nenhum lugar de reunião para o Senhor e o Seu povo redimido; sim, para eles, a redenção e a separação eram uma e a mesma coisa. Deus havia dito: "desci para livrá-los", (Êx 3:8) e nada senão isto podia satisfazê-Lo ou glorificá-Lo. Uma salvação que deixasse o povo no Egito não podia ser salvação de Deus. Além disso, devemos recordar que o desígnio do Senhor, com a salvação de Israel, assim como na destruição de Faraó, era para que o Seu nome fosse anunciado em toda a terra (capítulo 9:16); e que declaração poderia haver desse nome ou caráter, se o Seu povo tivesse de Lhe prestar culto no Egito? Ou não teria havido nenhum testemunho ou seria um testemunho falso. Portanto, era necessá¬rio, para que o caráterde Deus fosse plena e fielmente declarado, que o Seu povo fosse inteiramente libertado e completamente separado do Egito; e é, essencialmente, necessário, agora, para que um testemunho claro e sem equívoco seja dado ao Filho de Deus, que todos que são realmente Seus sejam separados deste presente século mau. Tal é a vontade de Deus; e para este fim Cristo entregou-Se a Si mesmo. "Graça e paz, da parte de Deus Pai e da de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual se deu a si mesmo por nossos pecados, para nos livrar do presente século mau, segundo a vontade de Deus nosso Pai, aoqualseja dada glória para todo o sempre Amen!" (Gl 1:3-5).
Os Gálatas começavam a dar crédito a uma religião carnal e mundana — uma religião de ordenações —, uma religião de "dias e meses, de tempos e de anos"; e o apóstolo começa a sua epístola dizendo-lhes que o Senhor Jesus Cristo Se deu a Si mesmo com o propósito de libertar o Seu povo todo desse sistema. O povo de Deus deve ser separado, não com base na sua santidade mas porque é o Seu povo, e para que possa responder inteligentemente ao fim que Deus propusera pondo-o em relação Consigo e associando-o com o Seu nome. Um povo que continuasse a viver no meio das abominações e contaminações do Egito não podia ser um testemunho do Deus santo; nem tampouco, agora, todo aquele que se associa com as contaminações de uma religião mundana e corrompida não pode ser uma testemunha fiel e poderosa de um Cristo crucificado e ressuscitado.

O Caminho de Três Dias
A resposta que Moisés deu à primeira ob jeção de Faraó é realmente notável: "E Moisés disse: Não convém que façamos assim, porque sacrificaríamos ao SENHOR, nosso Deus, a abominação dos egípcios; eis que, se sacrificássemos a abominação dos egípcios perante os seus, olhos, não nos apedrejariam eles?" (capítulo 8:26 - 27). O caminho de "três dias" é verdadeira separação do Egito. Nada menos que isto podia satisfazer a fé. O Israel de Deus tem que ser separado da terra e da morte e das trevas pelo poder da ressurreição. As águas do Mar Vermelho têm de correr entre os remidos do Senhor e o Egito, antes que eles possam oferecer sacrifícios ao Senhor. Se tivessem ficado no Egito, teriam que sacrificar ao Senhor os mesmos objetos abominá¬veis do culto dos egípcios (¹). Isto não pode ser. No Egito não podia haver tabernáculo, nem templo, nem altar. Em toda a extensão do país não havia lugar para nenhuma destascoisas.Defato, como veremos adiante, Israel não entoou um cântico sequer de louvor até que toda a congregação foi reunida no pleno poder da redenção levada a cabo na costa cananeia do Mar Vermelho.
O mesmo é exatamente agora. É preciso que o crente saiba onde foi colocado para sempre pela morte e ressurreição do Senhor Jesus Cristo, antes de poder ser um adorador inteligente, um servo aprovado, ou uma testemunha eficaz.
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(¹) A palavra "abominação" diz respeito àquilo que os egípcios adoravam.

Não se trata aqui da questão se somos filhos de Deus, e, portanto, se somos salvos. Muitos filhos de Deus estão muito longe de conhecer os resultados plenos, quanto a si próprios, da morte e ressurreição de Cristo. Não compreendem esta verdade preciosa: que a morte de Cristo tirou os seus pecados para sempre, e que eles são os felizes participantes da Sua vida de ressurreição, com a qual o pecado nada mais tem que fazer. Cristo foi feito maldição por nós, não por ter nascido sob a maldição de uma lei quebrantada, mas sendo pendurado no madeiro (comparem-se atentamente Dt 21:23; Gl 3:13). Nós estávamos sob a maldição, porque não tínhamos guardado a lei; porém Cristo, o Homem perfeito, havendo engrandecido a lei e tornando-a honrosa, devido ao fato de a haver cumprido perfeitamente, foi feito maldição por nós sendo pendu¬rado no madeiro. Assim, na Sua vida Ele engrandeceu a lei de Deus; e na Sua morte levou a nossa maldição. Portanto, agora não há para o crente maldição nem ira nem condenação: e embora tenha de comparecer no tribunal de Cristo, este tribunal ser-lhe-á tão favo¬rável então como agora o é o trono da graça. O tribunal manifestará a sua verdadeira condição, isto é, que nada existe contra ele: o que ele é, foi Deus quem o realizou. Ele é obra de Deus. Deus tomou-o no estado de morte e condenação e fê-lo exatamente como queria que ele fosse. O Próprio Juiz apagou os seus pecados e é a sua justiça, de forma que o tribunal não deixará de lhe ser favorável; mais ainda, será a declaração pública, autorizada e plena, feita ao céu, à terra e ao inferno, de que aquele que é lavado de seus pecados no sangue do Cordeiro é tão limpo quanto Deus pode torná-lo (veja-se Jo 5:24; Rm 8:1; 2 Co 5:5,10,11; Ef 2:10). Tudo que era preciso fazer, o Próprio Deus o fez, e certamente Ele não condenará a Sua própria obra. A justiça que era pedida, Deus a proveu; e, portanto, não achará nenhum defeito nesse suprimento. Aluz do tribunal de Cristo será bastante radiante para dissipar todas as neblinas e nuvens que pudessem obscurecer as glórias imaculadas e as virtudes eternas que pertencem à cruz e para mostrar que o crente está "todo limpo" (Jo 13:10; 15:3; Ef 5:27).

A Paz: Fora do Mundo
É por causa de não haverem apropriado estas verdades funda¬mentais, com simplicidade de fé, que muitos filhos de Deus lamen¬tam não possuir uma paz segura e passam por contínuos altos e baixos na sua vida espiritual. Cada dúvida no coração de um crente é uma desonra para a palavra de Deus e o sacrifício de Cristo. É porque não permanece, desde já, naquela luz que brilhará no tribunal de Cristo, que anda sempre aflito com dúvidas e temores. Contudo, estas dúvidas e incertezas, que muitos têm de deplorar, são apenas consequências insignificantes comparativamente, tan¬to mais que apenas afetam a sua experiência. Os efeitos que produzem sobre o seu culto, o seu serviço e o seu testemunho são muito mais graves, visto que a glória do Senhor é afetada. Mas, ah! nesta pouco se pensa, geralmente falando, simplesmente porque o obje-tivo principal, o fim e o alvo, com a maioria dos cristãos,é a salvação pessoal. Todos somos inclinados a considerar como essencial tudo que se relaciona conosco; enquanto que aquilo que diz respeito à glória de Cristo em nós e por nosso intermédio é considerado como não essencial.
Contudo, é bom compreendermos claramente que a mesma verdade que dá paz segura à alma, põe-na também em estado de poder oferecer um culto inteligente, um serviço aceitável, e um testemunho eficaz.
No capítulo quinze da primeira epístola aos Coríntios, o após¬tolo apresenta a morte e a ressurreição de Cristo como o grande fundamento de todas as coisas. "Também vos notifico, irmãos, o evangelho que já vos tenho anunciado, o qual também recebestes e no qual também permaneceis; pelo qual também sois salvos, se o retiverdes tal como vo-lo tenho anunciado, se não é que crestes em vão. Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escritu¬ras" (versículos 1 a 4).
Eis o evangelho, numa declaração rápida e compreensível. O fundamento da salvação é um Cristo morto e ressuscitado. "O qual por nossos pecados foi entregue e ressuscitou para nossa justifica¬ção" (Rm4:25). Ver Jesus, com os olhos da fé, pregado na cruz e assentado no trono, é uma visão que deve dar paz sólida à consciên¬cia e perfeita liberdade ao coração. Nós podemos olhar para o sepulcro e vê-lo vazio; podemos olhar par cima e ver o trono ocupado, e, assim, continuar o nosso caminho cheios de gozo. O Senhor Jesus liquidou todas as coisas na cruz a favor do Seu povo; e a prova desta liquidação é que está à destra de Deus. Um Cristo ressuscitado é a prova eterna de uma redenção efetuada; e se a redenção é um fato consumado, então a paz do crente é uma realidade estabelecida. Nós não fizemos a paz, nem nunca a poderíamos ter feito. De fato, todos os nossos esforços nesse sentido só serviriam para manifestar com maior evidência que éramos transgressores da faz. Porém, Cristo, havendo feito a paz pelo sangue da Sua cruz, tomou o Seu lugar nas alturas, triunfando sobre todos os Seus inimigos. Por Ele Deus anuncia a paz. A palavra do evangelho transmite esta paz: e a alma que crê o evangelho tem a paz estabelecida diante de Deus, porque Cristo é a sua paz (veja-se Atl0:36;Ro5:l,Ef2:14;Col:20).DestamaneiraDeussatisfeznão só as Suas exigências, como abriu um caminho divinamente justo mediante o qual o Seu amor infinito pode descer até ao mais culpado da geração culpada de Adão.
Quanto ao resultado prático, a cruz de Cristo não só tirou os pecados do crente como quebrou para sempre os laços que o prendiam ao mundo, e, com base neste fato, ele tem o privilégio de considerar o mundo como uma coisa crucificada, e de ser conside¬rado pelo mundo como um que foi crucificado. Tal é a posição do crente e do mundo — o mundo está crucificado para o crente e o crente para o mundo. Esta é a verdadeira e elevada posição do crente. O juízo que este mundo fez de Cristo foi expresso pela posição em que o mundo deliberadamente o colocou. O mundo foi convidado a fazer a sua escolha entre Cristo e um assassino. Pôs o assassino em liberdade, e pregou Cristo na cruzentre dois malfeitores. Portanto, se o crente segue as pisadas de Cristo e se compenetra com o Seu espírito, e o manifesta, ocupará o mesmíssimo lugar que Cristo tem na estima do mundo; e desta forma não somente conhecerá que, quanto à sua posição diante de Deus, está crucificado com Cristo, mas será levado também a realizar este fato na sua vida e na sua experiência diária.
Contudo, posto que a cruz tem assim quebrado eficazmente a ligação entre o crente e o mundo, a ressurreição introduziu-o debaixo do poder de novos laços e novas relações. Se vemos na cruz o juízo do mundo, quanto a Cristo, na ressurreição vemos o juízo de Deus. O mundo crucif icou-O; porém, "Deus exaltou-o sobera¬namente" (Fp 2:9). O homem deu-Die olugar mais baixo, mas Deus deu-Lhe o lugar mais elevado; e embora o crente seja chamado a gozar plena comunhão com Deus, em seus pensamentos a respeito de Cristo, ele pode, por sua parte, considerar o mundo como uma coisa crucificada. Assim, pois, se o crente está sobre uma cruz e o mundo noutra, a distância moral entre os dois é na verdade consi¬derável. E se a distância é considerável em princípio, também deveria sê-lo na prática. O mundo e o cristão não deveriam ter nada absolutamente em comum; e nada terão em comum, exceto quan¬do o cristão nega o seu Senhor e Mestre. O crente mostra-se infiel a Cristo na mesma proporção em que tem comunhão com o mundo.

O que é o Mundo
Tudo isto é bastante claro; porém, prezado leitor, aonde nos conduz quanto a este mundo"?- Seguramente, fora dele, e isto de um modo completo. Estamos mortos para o mundo e vivos para Cristo. Somos participantes ao mesmo tempo da Sua rejeição pelo mundo e da Sua aceitação no céu; e o gozo desta faz-nos considerar como nada a provação daquela. Ser lançado fora do mundo, sem saber que tenho um lugar e uma parte no céu, seria insuportável para mim; porém, quando as glórias do céu enchem a visão da alma, é neces¬sário muito pouco da terra.
Mas, pode perguntar-se, "Que é o mundo?" Seria difícil encon¬trar um termo tão mal definido como "o mundo" ou "a mundanidade"; pois em geral nós somos propensos a fazer a mundanidade um ou dois pontos acima do lugar onde nos achamos situados espiritualmente. A Palavra de Deus, porém, define com perfeita precisão o que significa o termo "o mundo", quando o designa como aquilo que "não é do Pai" (ljo 2:15 e 16). Por isso, quanto mais profunda for a minha comunhão com o Pai, mais penetrante será a minha compreensão daquilo que é mundano. É esta a forma divina de ensino. Quando mais vos deleitardes no amor do Pai, tanto mais desprezareis o mundo. Mas quem é aquele que revela o Pai
A Segunda Objeção
A segunda objeção do Faraó participava muitíssimo do caráter e tendência da primeira. "Então, disse Faraó: Deixar-vos-ei ir, para que sacrifiqueis ao SENHOR vosso Deus no deserto; somente que, indo, não vades longe" (capítulo 8:28). Não podendo retê-los no Egito, procurava ao menos retê-los perto das fronteiras, para poder agir contra eles por meio das diversas influências do país. Desta forma o povo podia ser reconduzido e o testemunho mais facilmen¬te aniquilado que se eles nunca tivessem saído do Egito. Aqueles que tornam para o mundo, depois de aparentemente o terem deixado, causam muito mais dano à causa de Cristo do que se nunca se houvessem afastado dele; porque virtualmente confessam que, tendo provado as coisas divinas, descobriram que as coisas terrenas são melhores e satisfazem mais.
E isto ainda não é tudo. O efeito moral da verdade sobre as consciências dos incrédulos e tristemente embaraçado pelo exem¬plo dos professos que regressam às coisas que aparentemente havi¬am deixado. Não é que tais casos concedam autorização a ninguém para rejeitar a verdade de Deus, tanto mais que cada um é responsável por si mesmo e terá de prestar contas dos seus atos a Deus. Contudo, o efeito produzido é, como em tudo mais, mau. "Por¬quanto se, depois de terem escapado das corrupções do mundo, pelo conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, forem outra vez envolvidos nelas e vencidos, tornou-se-lhes o último estado pior do que o primeiro. Porque melhor lhes fora não conhecerem o cami¬nho da justiça do que, conhecendo-o, desviarem-se do santo man¬damento que lhes fora dado" (2 Pe 2:20-21).
Por esse motivo, se as pessoas não estão dispostas a ir longe, é melhor não partirem. O inimigo sabia isto bem; daí a sua segunda objeção. Uma posição de proximidade satisfaz admiravelmente os seus propósitos. Aqueles que ocupam esta posição não são nem uma coisa nem outra; com efeito, qualquer que seja a sua influência, conduz, infalivelmente, para o lado mau.
É muito importante ver claramente que o fim de Satanás em todas estas objeções era pôr obstáculos ao testemunho que só podia ser rendido ao nome do Deus de Israel por meio de uma peregrinação de três dias através do deserto. Isto era, em boa verdade, ir muito longe —ir muito mais longe do que Faraó podia imaginar, ou até onde lhe era possível seguir Israel. Que grande bênçãoseriasetodososque fazem profissão de sair do Egito se separassem dele pelo espírito do seu entendimento e pela elevação do seu caráter; se conhecessem a cruz e a sepultura de Cristo como os limites estabelecidos entre eles e o mundo! Ninguém pode colocar-se nesse terreno na energia da sua natureza. O Salmista pôde dizer:
"E não entres em juízo com o teu servo, porque à tua vista não se achará justo nenhum vivente" (Sl 143:2). O mesmo acontece a respeito da separação verdadeira e efetiva do mundo. "Nenhum vivente" pode realizá-la. E somente como "morto com Cristo", e ressuscitado também nele, pela fé, no poder de Deus(Cl 2:12),que o homem pode ser justificado diante de Deus e separado do mundo. Eis o que podemos chamar "ir muito longe". Permita Deus que todos os que fazem profissão de cristãos e se chamam por este nome possam assim afastar-se! Então a sua lâmpada dará uma luzconstan-te, a sua trombeta dará um sonido inteligível e a sua conduta será elevada; a sua experiência será rica e profunda; a sua paz correrá como um rio; os seus afetos serão celestiais e as suas vestes imaculadas. E, acima de tudo, o nome do SENHOR Jesus será glori¬ficado neles pelo poder do Espírito Santo, segundo a vontade de Deus Pai.

A Terceira Objeção
A terceira objeção de Faraó requer atenção especial de nossa parte. "Então, Moisés e Arão foram levados outra vez a Faraó, e ele disse-lhes: Ide, servi ao SENHOR, vosso Deus. Quais são os que hão-de ir? E Moisés disse: Havemos de ir com os nossos meninos e com os nossos velhos; com os nossos filhos, e com as nossas filhas, e com as nossas ovelhas, e com os nossos bois havemos de ir; porque festa ao SENHOR temos. Então ele lhes disse: Seja o SENHOR assim convosco, como eu vos deixarei ir a vós e a vossos filhos; olhai que há mal diante da vossa face. Não será assim; andai agora vós, varões, e servi ao SENHOR; pois isso é o que pedistes. E os lançaram da face de Faraó" (capítulo 10:8 a 11).
De novo vemos como o inimigo procura dar um golpe de morte no testemunho dado ao Deus de Israel. Os pais no deserto e os filhos no Egitol Que terrível anomalia! Isto teria sido apenas libertação parcial, ao mesmo tempo inútil para Israel e desonrosa para o Deus de Israel. Isto não era possível. Se os filhos fossem deixados no Egito, não se podia dizer que os pais os tivessem deixado. Tudo quanto podia dizer-se, em tal caso, era que em parte eles serviam ao Senhor e em parte a Faraó. Porém, o Senhor não podia ter parte com Faraó. Era necessário que possuísse tudo ou nada. Eis aqui um princípio importante para os pais cristãos. Possamos nós tê-lo no íntimo dos nossos corações! É nosso privi¬légio contar com Deus quanto aos nossos filhos, e criá-los "na doutrina e admoestação do Senhor" (Ef 6:4). Nenhuma outra parte deve satisfazer-nos quanto aos nossos "pequeninos" senão aquela mesma que nós próprios desfrutamos.

A Quarta Objeção
A quarta e última objeção de Faraó relacionava-se com os rebanhos e as manadas. "Então, Faraó chamou a Moisés e disse: Ide, servi ao SENHOR: somente fiquem vossas ovelhas e vossas vacas; vão também convosco as vossas crianças (capítulo 10:24). Com que perseverança disputou Satanás cada palmo do caminho de Israel para fora do Egito! Em primeiro lugar procurou mantê-los no país; então diligenciou tê-los perto do país; depois esf orçou-se por reter parte do povo; e por fim, depois de haver falhado nestas três tentativas, esforçou-se por fazê-los partir sem meios alguns para servir ao Senhor. Já que não podia reter os servidores procurava ficar com os meios que eles tinham para servir, pensando obter o mesmo resultado por um meio diferente. Já que não podia induzi-los a oferecerem sacrifícios no país, queria enviá-los fora do país sem vítimas para os sacrifícios.

A Resposta de Moisés
A resposta de Moisés a esta última objeção de Faraó dá-nos um relato dos direitos soberanos do Senhor sobre o Seu povo e tudo que lhes pertence. "Moisés, porém, disse: Tu também darás em nossos mãos sacrifícios e holocaustos, que ofereçamos ao SENHOR nosso Deus. E também o nosso gado há de ir conosco, nem uma unha ficará; porque daquele havemos de tomar para servirão SENHORnosso Deus; porque não sabemos com que havemos de servir ao Senhor, até que cheguemos lá" (versículos 25-26). É somente quando o povo de Deus toma o seu lugar, com fé simples e infantil, sobre o terreno elevado em que a morte e ressurreição os colocou, que podem ter um conhecimento adequado dos seus direitos sobre eles: "...não sabe¬mos com que havemos de servir ao SENHOR, até que cheguemos lá". Quer dizer, não sabiam qual era a sua responsabilidade, nem quais as exigências de Deus até que tivessem andado "três dias de cami¬nho" . Estas coisas nãopodiam ser conhecidas no meio da atmosfera corrompida do Egito. É indispensável que a redenção seja conhecida como um fato consumado antes que se possa ter uma percepção justa ou completa da responsabilidade. Tudo isto é perfeito e belo.
"Se alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina, conhecerá se ela é de Deus" (Jo 7:17). É necessário que, por meio do poder da morte e ressurreição, estejamos fora do Egito. É quando ocupamos o nosso lugar, pela fé, nesses átrios gloriosos em que o sangue precioso de Cristo nos introduz; quando podemos olhar em redor de nós e contemplar os resultados maravilhosos do amor que nos resgatou; quando contemplamos atentamente Aquele que nos trouxe para este lugar e nos deu todas estas riquezas, que somos constrangidos a exclamar, como um dos nossos poetas exclamou:

"Fora-me dado todo o domínio da natureza,
Seria uma oferta pequena demais; Amor tão sublime, tão divino,
Que pede o meu coração, a minha vida, todo o meu ser."

"Nem uma unha ficará". Que nobres palavras! O Egito não é o lugar próprio para guardar coisa alguma que pertença aos remidos do SENHOR. Deus é digno de tudo: "alma, corpo e espírito" — tudo que somos e tudo quanto temos pertencem-Lhe:"...não somos de nós mesmos", porque "fomos comprados por bom preço" (I Co 6:19, 29) e é nosso grande privilégio consagrarmo-nos com tudo quanto temos Àquele a Quem pertencemos e a cuj o serviço fomos chamados. Nada se vê aqui do espírito legalista. As palavras "até que cheguemos lá" são a salvaguarda divina contra este mal horrível. Nós fizemos a caminhada de "três dias" antes que pudesse ser ouvida ou compreendida uma só palavra quanto ao sacrifício. Estamos de posse plena e indiscutível da vida de ressurreição e da justiça eterna. Deixámos a terra da morte e das trevas; fomos trazidos a Deus Mesmo, de forma que podemos possuí-Lo no poder dessa vida com que fomos dotados e nessa esfera de justiça na qual fomos colocados: servir é, pois, todo o nosso gozo. Não existe em nosso coração um só af eto do qual Ele não seja digno; nãoháemtodo o Seu rebanho uma vítima que seja preciosa demais para ser imolada no Seu altar. Quanto mais perto andarmos d'Ele, tanto melhor compreenderemos que a nossa comida e a nossa bebida é fazer a Sua santa vontade. O crente considera como seu maior privilégio o de servir ao Senhor, e deleita-se em todo o exercício e em toda a manifestação da natureza divina. Não caminha carregando com um peso insuportável às costas ou um jugo incómodo ao pescoço. O jugo foi "despedaçado por causa da unção" (Is 10:27); o fardo foi tirado para sempre pelo sangue da cruz, e ele avança "resgatado" "regenerador" e "desembaraçado" em conformidade com estas palavras consoladoras: "DEIXA IR O MEU POVO".

A Ultima Praga
"E o SENHOR disse a Moisés: Ainda uma praga trarei sobre Faraó e sobre o Egito; depois, vos deixará ir daqui; e quando vos deixar ir totalmente, a toda a pressa vos lançará daqui"(capítulo 11:1). Ainda mais um golpe duro deve cair sobre este monarca de coração endurecido e sobre o seu povo, antes de ser obrigado a deixar ir o povo favorecido pela graça soberana de Deus.

O Coração Endurecido de Faraó
Quão inútil é que o homem se endureça e se exalte contra Deus; porque certamente Ele pode reduzir a pó o coração mais endurecido e abater o espírito mais altivo. Deus "pode humilhar aos que andam na soberba" (Dn 4:37). O homem pode presumir ser alguma coisa: pode levantar ao alto a sua cabeça em pompa e vã glória como se fosse senhor de si próprio. Homem vão! Quão pouco conhece o seu verdadeiro estado e o seu caráter! Não é mais que um instrumento de Satanás, usado por ele nos seus esforços perversos para impedir os propósitos de Deus. A inteligência mais brilhante, o génio mais elevado, a energia mais indomável, não são mais que outros tantos instrumentos nas mãos de Satanás para executar os seus planos tenebrosos, a menos que estejam postos sob o controle imediato do Espírito de Deus. Ninguém é senhor de si próprio: ou há-de ser governado por Cristo ou por Satanás. O rei do Egito podia conside-rar-se um ente livre; e contudo não era mais que um instrumento nas mãos de outrem. Satanás estava atrás do trono; e, como resultado de Faraó se ter disposto a resistir aos propósitos de Deus, foi entregue judicialmente à influência endurecedora e cega do senhor da sua escolha.
Isto explica uma expressão que lemos frequentemente nos pri¬meiros capítulos deste livro: "Porém, o SENHOR endureceu o coração de Faraó." Não seria proveitoso para ninguém procurar esquivar-se ao sentido claro desta soleníssima declaração. Se o homem rejeita a luz do testemunho divino, é entregue à cegueira judicial e ao endurecimento de coração. Deus abandona-o a si próprio; e então Satanás, apoderando-se dele, precipita-o na perdição. Houve bastante luz para mostrar a Faraó a sua loucura extravagante em procurar reter aqueles que Deus lhe havia ordenado que deixasse ir. Porém a verdadeira disposição do seu coração era de opor-se a Deus, e, portanto, Deus abandonou-o a si mesmo, e fez dele um monumento para manifestação da sua glória "em toda a terra". Isto não encerra nenhuma dificuldade, salvo para aqueles que desejam arguir com Deus — quese"embravecemcontraoTodo-Poderoso" (Jó 15:25), para ruína das suas almas imortais.
Deus dá às vezes aos homens aquilo que está de acordo com a verdadeira inclinação dos seus corações:".. .por isso, Deus lhes enviará a operação do erro, para que creiam na mentira, para que sejam julgados todos os que não creram a verdade; antes tiveram prazer na iniquidade" (2 Ts 2:11-12). Se os homens rejeitam a verdade quando lhes é apresentada, terão, certamente, a mentira; se não querem Cristo, terão Satanás; se menosprezam o céu, terão o inferno (¹). O Espírito incrédulo terá alguma coisa que responder a istcr Antes de o fazer deve certificar-se de que aqueles que são assim tratados judicialmente obram inteiramente debaixoda sua responsabilidade.
Por exemplo, no caso de Faraó, ele agiu, até certo ponto, segundo a luz que possuía. Acontece o mesmo em todos os demais casos. O dever de prova recai, incontestavelmente, sobre aqueles que estão dispostos a argumentar com Deus acerca dos Seus j uízos contra os que desprezam a verdade. O mais simples filho de Deus justificará a Deus em face das mais inescrutáveis dispensações; e, ainda que não possa responder satisfatoriamente a todas as perguntas difíceis da incredulidade, acha descanso perfeito nestas palavras: "Não faria justiça o Juiz de toda a terral" (Gn 18:25). Existe muito mais sabedoria nesta forma de resolver uma dificuldade aparente do que nos argumentos mais complicados; porque, certamente, um cora¬ção que está disposto a "replicar" a Deus (Rm 9:20) não será convencido pelos argumentos do homem.
Contudo, é uma das prerrogativas de Deus responder a todos os argumentos orgulhosos do homem e abater as ideias altivas do espírito humano. O Senhor pode imprimir a sentença de morte sobre toda a natureza, até nas suas formas mais belas. "Aos homens está ordenado morrerem uma vez" (Hb 9:27). Ninguém pode escapar a esta sentença.
O homem pode procurar encobrir a sua humilhação por vários meios e ocultar a sua retirada através do vale da sombra da morte da maneira mais heróica; dando os títulos mais honrosos que possa imaginar-se aos seus últimos dias; dourando com falsos esplendores o seu leito de morte; decorando o préstito fúnebre e a sepultura com aparência de pompa, de aparato e de glória; levantando sobre os restos corrompidos um monumento esplêndido, sobre o qual são escritos os anais da vergonha humana; tudo isto o homem pode fazer; mas a morte é morte, afinal, e ele não pode retardá-la nem um só momento, nem tampouco transformá-la noutra coisa além do que ela realmente é, a saber: "o salário do pecado" (Rm 6:23).


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(¹) Exige uma grande diferença entre o método divino de tratar com os gentios e os rejeitadores do evangelho. Quanto aos primeiros, lemos: "E, como eles se não importaram de ter conhecimento de Deus, assim Deus os entregou a um sentimento perverso" (Rm 1:28): mas acerca dos últimos, está escrito, "...porque não receberam o amor daverdadepara se salvarem... Deus lhes enviará a operação do erro, para que creiam a mentira, para que sejam julgados todos..." (2 Ts 2:10-12). Os gentios rejeitaram o testemunho da criação, e são, portanto, entregues a si próprios. Os rejeitadores do evangelho recusam o brilho pleno da luz que refulge da cruz, e, portanto, Deus enviar-lhes-á em breve a "operação do erro". Tudo isto é profundamente solene nestes dias em que há tanta luz e tanta profissão religiosa.



Juízo dos Primogénitos do Egito
Estes pensamentos são-nos sugeridos pelos primeiros versículos do capítulo 11: "Ainda uma praga trarei!" Palavras solenes! Estas põem o selo da sentença de morte pronunciada contra os primogénitos do Egito: "as primícias de todas as suas forças"(Sl 105:36). "Disse mais Moisés: Assim o SENHOR tem dito: Ameia-noite eu sairei pelo meio do Egito; e todo primogénito na terra do Egito morrerá, desde o primogénito de Faraó, que se assenta com ele sobre o seu trono, até ao primogénito da serva que está detrás da mó, e todo o primogénito dos animais. E haverá grande clamor em toda a terra do Egito, qual nunca houve semelhante e nunca haverá" (versículos 4 a 6). Esta devia ser a última praga—morte em todas as casas. "Mas contra todos os filhos de Israel nem ainda um cão moverá a sua língua, desde os homens até aos animais, para que saibais que o SENHOR fez diferença entre os egípcios e os israelitas" (versículo 7). Só o Senhor pode fazer diferença entre certo, sim!
Não nos compete a nós dizer a alguém: "Retira-te e não te chegues a mim, que sou mais santo do que tu" (Is 65:5): esta é a linguagem própria de um fariseu. Porém, quando Deus faz diferen¬ça, somos forçados a indagar em que consiste essa diferença, e, no caso presente, vemos que se tratava de uma simples questão de vida ou morte. Eis aqui a grande diferença que Deus faz. Ele traça uma linha de demarcação: de um dos lados desta linha está "a vida", do outro "a morte". Muitos dos primogénitos do Egito podiam ser tão formosos e ter os mesmos atrativos como os de Israel, e talvez mais: porém Israel tinha vida e luz, com base nos desígnios do amor de um Deus redentor, e estabelecidos firmemente, como veremos, pelo sangue do Cordeiro.
Esta era a posição ditosa de Israel; enquanto que, por outro lado, em toda a extensão do país do Egito, desde o monarca assentado no trono à serva ocupada em moer, nada mais se via senão morte; e só se ouvia o brado de angústia arrancado pelo golpe terrível da vara de Deus. Deus pode abater o espírito altivo do homem. Ele pode fazer com que a cólera do homem redunde em Seu louvor, e restringir o restante dessa cólera (SI 76:10). "Então, todos estes teus servos descerão a mim e se inclinarão diante de mim, dizendo: Sai tu e todo o povo que te segue as pisadas; e depois eu sairei" (capítulo 11:8). Deus cumprirá os Seus propósitos. É mister que os Seus desígnios de misericórdia sejam cumpridos a todo o custo; e a confusão de rosto será a parte de todos aqueles que se Lhe opõem. "Louvai ao SENHOR, porque ele é bom; porque a sua benignidade é para sempre... Que feriu o Egito nos seus primogénitos; porque a sua benignidade é para sempre. Com mão forte, e com braço estendido; porque a sua benignidade é para sempre" (Sl 136:1,10,12).

— CAPÍTULO 12 —

A PÁSCOA

O Princípio dos Meses
"E falou o SENHORa Moisés e a Arão na terra do Egito, dizendo: Este mesmo mês vos será o princípio dos meses; este vos será o primeiro dos meses do ano" (capítulo 12:1-2). Eis aqui uma altera¬ção muito importante na ordem de contar o tempo. O ano comum ou civil seguia o seu curso ordinário, quando o Senhor o interrom¬peu por causa do Seu povo, e assim, em princípio, ensinou-lhes que deviam começar uma nova era em Sua companhia. A história anterior de Israel não devia ser doravante tomada em conta. A redenção tinha de constituir o primeiro passo na vida real.
Isto ensina-nos uma verdade bem simples. A vida do homem não é realmente de interesse até que ele comece a andar com Deus no conhecimento de uma salvação perfeita e de uma paz estável, pelo sangue precioso do Cordeiro de Deus. Antes disto, segundo o j uízo de Deus e a expressão das Escrituras, ele está "morto em ofensas e pecados" e "alienado da vida de Deus" (Ef 2:1; 4:18). Toda a sua história não é mais que um espaço vazio, ainda que, na opinião do homem, haja sido uma cena de ruidosa atividade. Tudo aquilo que desperta a atenção do homem deste mundo, as honras, as riquezas, os prazeres, os atrativos da vida, assim chamados, todas estas coisas, quando examinadas à luz do juízo de Deus e pesadas na balança do santuário, não são mais que um vazio horrível, um espaço inútil, indigno de ocupar um lugar nos registos do Espírito Santo. "Aquelequenãocrê no Filho nãoverá a vida" Qo 3:36). Os homens falam de gozar a vida quando se lançam ao mundo, quando viajam de um lado para o outro, para ver tudo que é digno de se ver; porém esquecem que o único meio verdadeiro, real e divino de "ver a vida" é "crer no filho de Deus".
Como os homens pensam tão pouco nisto! Julgam que a verda¬deira vida acaba quando um homem se torna cristão, real e verdadeiro e não apenas de nome e profissão exterior; ao passo que a palavra de Deus nos ensina que é então que podemos ver a vida e experimentar verdadeira felicidade. "Quem tem o Filho tem a vida" (1JO5:12).E "Bem-aventurado aquele cuja transgressão é perdoada e cu jo pecado é coberto" (Sl 32:1). Somente em Cristo podemos ter vida e felicidade. Fora d'Ele tudo é morte e miséria, segundo o juízo do céu, sejam quais forem as aparências. É quando o véu espesso da incredulidade é tirado do coração, e nos é dado ver, com os olhos da fé, o Cordeiro de Deus carregando o nosso fardo pesado de culpa sobre a cruz, que entramos na senda da vida e participamos do cálice da felicidade divina—vida que principia na cruz e corre para uma eternidade de glória —, uma felicidade que, cada dia se torna mais profunda e mais pura, mais relacionada com Deus e repousando melhor em Cristo, até chegar¬mos à sua própria esfera, na presença de Deus e do Cordeiro. Buscar a vida e a felicidade por outros meios é um trabalho muito mais penoso do que fazer tijolos sem palha.
Por certo, o inimigo das almas dá brilho a esta cena passageira, para fazer crer aos homens que ela é toda de ouro.
Ele sabe como levantar mais de uma representação de fantoches com o fim de provocar o riso falso de uma multidão descuidada, que não sabe que é Satanás quem move os cordelinhos e que é seu objetivo conservar as almas afastadas de Cristo para as arrastar para a perdição. Não existe nada verdadeiro, nada sólido, nada que satisfaça a alma, senão em Cristo. Sem Ele "tudo é vaidade e aflição de espírito" (Ec 2:17). Só n'Ele se encontram os gozos verdadeiros e ternos; e por isso é só quando começamos a viver n'Ele, d'Ele, com Ele e para Ele que começamos verdadeiramente a viver: "Este mesmo mês vos será o princípio dos meses; este vos será o primeiro dos meses do ano". O tempo passado nos fornos de tijolo e junto das panelas de carne é como se não tivesse existido. Deve, doravante, ser uma coisa sem importância, salvo que a sua recordação deve, de vez em quando, servir para despertar o seu sentido daquilo que a graça divina havia realizado em seu favor.

O Cordeiro Guardado
"Falai a toda a congregação de Israel, dizendo: Aos dez deste mês, tome cada um para si um cordeiro, segundo as casas dos pais, um cordeiro para cada casa... O cordeiro, ou cabrito, será, sem mácula, um macho de um ano, o qual tomareis das ovelhas ou das cabras, e o guardareis até ao décimo quarto dia deste mês, e todo o ajuntamento da congregação de Israel o sacrificará à tarde" (versículos 3 a 6). Eis aqui a redenção do povo de Israel baseada sobre o sangue do cordeiro segundo o desígnio eterno de Deus. Isto dá à redenção toda a sua estabilidade divina.
A redenção não foi o resultado de um segundo pensamento de Deus. Antes que o mundo existisse, ou Satanás, ou o pecado; antes que a voz de Deus houvesse interrompido o silêncio de eternidade e chamado os mundos à existência, Ele tinha os seus grandes desígnios de amor, e estes desígnios não podiam achar jamais um fundamento suficientemente sólido na criação. Todos os privilégi¬os, todas as bênçãos e as glórias da criação repousavam sobre a obediência de uma criatura, e, no próprio momento em que esta caiu, tudo foi perdido. Porém, a tentativa de Satanás de corromper a criação apenas serviu para abrir o caminho à manifestação dos propósitos profundos de Deus quanto à redenção.
Esta maravilhosa verdade é-nos apresentada em figura debaixo do fato que o cordeiro devia ser guardado desde o dia dez "até ao décimo quarto dia". Este cordeiro era indiscutivelmente uma figu¬ra de Cristo, como nos ensina, sem dúvida, a passagem da ICoríntios 5:7: "Porque Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós". Na primeira epístola de Pedro faz-se alusão à guarda do cordeiro durante estes quatro dias:
"Sabendo que não foi com cosias corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver, que por tradição recebestes do vossos pais, mas com o precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro imaculado e incontaminado, o qual na verdade, em outro tempo, foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos; por amor de vós" (versículos 18-20).
Todos os desígnios de Deus, desde toda a eternidade, tinham relação com Cristo; e nenhum esforço de inimigo podia interferir com esses desígnios: antes pelo contrário, esses esforços apenas contribuíram para a manifestação e a estabilidade inabalável da sabedoria insondável de Deus. Se "o Cordeiro imaculado e incontaminado" foi "conhecido antes da fundação do mundo", certamente que a redenção devia estar no pensamento de Deus antes da fundação do mundo. O bendito Senhor não teve que improvisar um plano para remediar o terrível mal que o inimigo havia introduzido na criação. Não, Ele apenas teve que tirar do tesouro inexplorado dos Seus maravilhosos desígnios a verdade quanto ao Cordeiro imaculado, conhecido desde a eternidade, e que devia ser "manifestado nestes últimos tempos por amor de nós".
Quando a criação saiu das mãos do Criador, mostrando em cada fase e em cada parte a obra admirável da Sua mão—provas infalíveis do seu eterno poder, e da sua divindade veja (Rm 1:20) —, não houve necessidade do sangue do Cordeiro. Porém, quando "por um homem entrou o pecado no mundo", foi revelado o pensamento mais alto, mais rico, mais profundo, mais pleno da redenção pelo sangue do Cordeiro. Esta verdade gloriosa apareceu primeiramente através da nuvem espessa que rodeava os nossos primeiros pais, quando saíram do j ardim doÉden;asualuz começou a brilhar nas figuras e sombras da dispensação moisaica; e, por fim, resplandeceu sobre o mundo com todo o seu esplendor, quando "o Oriente do alto nos visitou" na Pessoa do Deus manifestado em carne (1 Tm 3:16); e os seus ricos e gloriosos resultados serão realizados quando aquela grande mul¬tidão vestida de branco, e tendo palmas em suas mãos, se reunir em torno do trono de Deus e do Cordeiro, e toda a criação descansar sob o cetro de paz do Filho de Davi.
Assim, o cordeiro tomado no dia dez e guardado até ao dia catorze mostra-nos Cristo conhecido de Deus, desde a eternidade, porém manifestado na plenitude dos tempos por amor de nós. O desígnio eterno de Deus em Cristo vem a ser o fundamento da paz do crente. Nada menos do que isto seria suficiente. Somos reconduzidos muito para lá da criação, para lá dos limites do tempo, além da entrada do pecado e de tudo que pudesse possivelmente af etar o fundamento da nossa paz. Aexpressão "conhecido antes da fundação do mundo" faz-nos retroceder às profundidades insondá¬veis da eternidade, e mostra-nos Deus fazendo os Seus próprios planos de amor redentor e baseando-os sobre o sangue expiador do Seu precioso Cordeiro imaculado.
Cristo foi sempre o pensamento primário de Deus, e por isso, logo que começa a falar ou atuar, Ele aproveita a ocasião para manifestar Aquele que ocupava o lugar mais elevado em Seus conselhos e afetos; e, seguindo a corrente de inspiração divina, descobrimos que cada cerimónia, cada rito, cada ordenação, e cada sacrifício indicava "o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (Jo 1:29); porém em nenhum de uma forma tão evidente como a Páscoa. O cordeiro da páscoa, com tudo que com ele se ligava, apresenta-nos uma das figuras mais interessantes e instrutivas das Escrituras.

O Cordeiro Imolado
Na interpretação deste capítulo 12 de Êxodo temos que tratar com unta assembleia e um sacrifício é: "todo o ajuntamento da congregação de Israel o sacrificará à tarde" (versículo 6). Não se trata tanto de um número de famílias e alguns cordeiros (o que por certo é muito verdade) como de uma assembleia e um cordeiro. Cada família era a expressão local de toda a assembleia reunida em torno do cordeiro. O antítipo deste ato têmo-lo em toda a Igreja de Deus reunida pelo Espírito Santo em nome do Senhor Jesus, da qual cada assembleia em particular, onde quer que se reúna, deve ser a expressão local.

O Sangue sobre as Ombreiras e na Verga das Casas
"E tomarão do sangue e pô-lo-ão em ambas as ombreiras e na verga da porta, nas casas em que o comerem. E naquela noite comerão a carne assada no fogo, com pães asmos; com ervas amargosas a comerão.
Não comereis dele nada cru, nem cozido em água, senão assado ao fogo; a cabeça com os pés e com a fressura" (versículos 7 -9).
O cordeiro da páscoa é-nos apresentado sob dois aspectos, a saber: como fundamento da paz e como centro de unidade. O sangue na verga das portas assegurava a paz de Israel: "...vendo eu sangue, passarei por cima de vós" (versículo 13). Nada mais era necessário, senão a aspersão do sangue, para se desfrutar paz em relação com o anj o destruidor. A morte devia fazer a sua obra em todas as casas do Egito. "Aos homens está ordenado morrerem uma vez" (Hb 9:27). Porém, Deus, em Sua grande misericórdia, encontrou um substitu¬to imaculado para Israel, sobre o qual foi executada a sentença de morte. Assim, as exigências de Deus e a necessidade de Israel foram cumpridas por uma e mesma coisa, a saber: o sangue do cordeiro. O sangue fora das portas era prova de que tudo estava perfeita e divinamente arrumado; e, portanto, dentro reinava perfeita paz. Uma sombra de dúvida no coração dum israelita teria sido uma desonra para o fundamento divino da paz—o sangue da expiação.
É verdade que cada um daqueles que se achavam dentro de casa, em cuja porta o sangue havia sido posto, deveria sentir, necessari¬amente, que se tivesse de receber a justa retribuição dos seus pecados, a espada do anjo destruidor cairia irremediavelmente sobre si; porém o cordeiro havia sofrido em seu lugar. Este era o funda¬mento sólido da sua paz. O juízo que lhe competia caíra sobre uma vítima designada por Deus e, crendo isto, podia comer em paz dentro de casa. Uma dúvida sequer teria feito do Senhor mentiroso; pois Ele havia dito: "vendo eu sangue,passarei por cima de vós". Isto era suficiente. Não era uma questão de mérito pessoal. O ego nada tinha a ver com o assunto. Todos os que se achavam protegidos pelo sangue estavam salvos. Não estavam apenas num estado de salvos, mas salvos. Não esperavam nem oravam para ser salvos, sabiam que isso era um fato assegurado, em virtude da autoridade daquela palavra que permanecerá de geração em geração. Demais, não se achavam em parte salvos e em parte expostos ao juízo: estavam completamente salvos. O sangue do cordeiro e a palavra do senhor constituíam o fundamento da paz de Israel naquela noite terrível em que os primogénitos do Egito foram abatidos. Se um simples cabelo da cabeça de um israelita pudesse ser tocado, isso teria anulado a palavra do Senhor e declarado nulo o sangue do cordeiro. É da máxima importância ter-se um conhecimento claro daqui¬lo que constitui o fundamento da paz do crente na presença de Deus. São associadas tantas coisas à obra consumada de Cristo, que as almas se vêem envolvidas na confusão e incerteza quanto à sua aceitação. Não discernem o caráter absoluto da redenção pelo sangue de Cristo na sua aplicação a si mesmas. Parece que ignoram que o perdão dos seus pecados descansa sobre o simples fato de se ter efetuado perfeita expiação: um fato comprovado, à vista de todos os entes inteligentes criados, pela ressurreição de entre os mortos do Substituto do pecador. Sabem que não existe outro meio de salvação senão pelo sangue da cruz, porém demónios sabem isto também, e de nada lhes aproveita. O que necessitamos saber é que estamos salvos. O israelita sabia não somente que havia segurança no sangue, mas que estava em segurança. E em segurança porquê £ Era devido a alguma coisa que havia feito, ou sentido, ou pensado1?-De modo nenhum; mas, sim porque Deus havia dito: "vendo eu sangue passarei por cima de vós". O israelita descansava sobre o testemunho de Deus; acreditava naquilo que Deus havia dito, porque Deus o havia dito: "esse confirmou que Deus é verdadeiro."

"Vendo Eu Sangue..."
Note-se que o israelita não descansa sobre os seus próprios pensa¬mentos, nos seus sentimentos ou na sua experiência, a respeito do sangue. Isto teria sido descansar sobre um fundamento fraco e move¬diço. Os seus pensamentos e os seus sentimentos podiam serprofundos ou superficiais: mas, quer fossem profundos, quer superficiais, nada tinham que ver com o fundamento da sua paz. Deus não havia dito: "vendo vós o sangue, e avaliando-o como ele deve ser avaliado, eu passarei por cima de vós" .Isto teria bastado para lançar um israelita em profundo desespero quanto a si próprio, visto que é impossível para o espírito humano apreciar o valor do precioso sangue do Cordeiro de Deus. O que dava paz era a certeza de que os olhos do Senhor estavam postos sobre o sangue, e que Ele apreciava o seu valor. Isto tranquilizava o coração. O sangue estava de fora da porta, e o israelita encontrava-se dentro de casa, de modo que não podia ver aquele sangue; mas Deus o via, e isso era perfeitamente suficiente.
A aplicação deste fato à questão da paz do pecador é bem clara. O Senhor Jesus Cristo, havendo derramado o Seu precioso sangue, em expiação perfeita pelo pecado, levou esse sangue à presença de Deus, e fez ali aspersão dele; e o testemunho de Deus assegura o crente de que as coisas estão liquidadas a seu favor—liquidadas, não pelo apreço que ele dá ao sangue, mas, sim, pelo próprio sangue, que tem um tão grande valor para Deus, que, por causa desse sangue, sem mais um jota ou um til, Ele pode perdoar com justiça todo o pecado e aceitar o pecador como um ser perfeitamente justo em Cristo. Como poderia alguém desfrutar paz segura se a sua paz dependesse da sua apreciação do sangue?- Seria impossível! A me¬lhor apreciação que o espírito humano possa tomar do sangue estará sempre infinitamente abaixo do seu valor divino; e, portanto, se a nossa paz dependesse da apreciação que lhe devíamos dar, nós jamais poderíamos gozar de uma paz segura, e seria o mesmo que se a buscássemos pelas obras da lei (Rm 9:32; Gl 2:16; 3:10). O fundamento de paz ou há de ser somente o sangue, ou então nunca teremos paz. Juntar-lhe o valor que nós lhe damos, é derrubar todo o edifício do cristianismo, precisamente como se conduzíssemos o pecador ao pé do monte Sinai e o puséssemos debaixo do concerto da lei. Ou o sacrifício de Cristo é suficiente ou não é. Se é suficiente, por que essas dúvidas e temores1?- As palavras dos nossos lábios confessam que a obra está cumprida, mas as dúvidas e temores do coração declaram que não. Todo aquele que duvida do seu perdão perfeito e eterno, nega, tanto quanto lhe diz respeito, o cumprimen¬to do sacrifício de Cristo.
Há muitas pessoas que fogem da ideia de pôr em dúvida delibe¬rada e abertamente a eficácia do sangue de Cristo, mas que, todavia, não têm uma paz segura. Estas pessoas dizem estar completamente convencidas da suficiência do sangue de Cristo, desde que possam estar certas de ter parte nele — desde que possam ter a verdadeira fé. Há muitas almas preciosas nesta infeliz condição. Ocupam-se mais da sua fé e dos seus interesses do que com o sangue de Cristo e a palavra de Deus. Por outras palavras, olham para o seu íntimo, em vez de olharem para Cristo. Isto não é o procedimento da fé, e, por conseguinte, carecem de paz. O israelita protegido pela umbreira da porta manchada de sangue podia dar a estas almas uma lição muito apropriada — não fora salvo pelo interesse que tinha no sangue nem pelos seus pensamentos acerca dele, mas simplesmente pelo próprio sangue. Sem dúvida, ele tinha uma parte bem-aventu-rada no sangue; assim como os seus pensamentos também estavam postos nele; porém, Deus não havia dito: "Vendo eu o vosso apreço pelo sangue passarei por cima de vós". Ah! não; o SANGUE, com o seu mérito exclusivo e eficácia divina estava posto perante Israel; e se eles tivessem tentado pôr só que fosse um bocado de pão asmo ao lado do sangue, como base de segurança, teriam feito do Senhor mentiroso e negado a suficiência do Seu remédio.

O Sangue de Cristo: o Fundamento da Paz do Crente
A nossa inclinação natural é buscarmos em nós ou nas coisas alguma coisa que possa constituir, junto com o sangue de Cristo, o fundamento da nossa paz. Existe uma falta lamentável de com¬preensão e clareza sobre este ponto vital, como se verifica pelas dúvidas e receios com que muitos do povo de Deus são afligidos. Somos inclinados a pensar nos frutos do Espírito em nós, em vez de pensarmos na obra de Cristo por nós, como fundamento da nossa paz.
Vamos ver agora o lugar que ocupa a obra do Espírito Santo na cristandade; porém, esta obra nunca é apresentada nas Escrituras como sendo a base em que assenta a nossa paz. O Espírito Santo não fez a paz, mas Cristo. Não é dito que o Espírito seja a nossa paz, mas sim Cristo. Deus não mandou anunciar a paz pelo Espírito Santo, mas por Jesus Cristo (comparem-se At 10:36; Ef 2:14,17; Cl 1:20). Jamais poderemos compreender com demasiada nitidez esta dife¬rença importante. E só pelo sangue de Cristo que obtemos a paz, justificação perfeita e justiça divina; ele purifica a nossa consciência, introduz-nos no lugar santíssimo, faz com que Deus seja justificado recebendo o pecador contrito, e dá-nos o direito a todos os gozos, todas as honras e todas as glórias do céu (veja-se Rm 3:24 -26; Ef 2:13-18; Cl l:20a22;Hb 9:14; 10:19; IPe 1:19; 2:24;1 Jo l:7; Ap7:14-17).
Ao procurar pôr "o precioso sangue de Cristo" no seu lugar divinamente marcado, espero sinceramente que ninguém supo¬nha que pretendo escrever uma só palavra que possa menosprezar a importância da obra do Espírito Santo. Deus me livre disso! O Espírito Santo revela-nos Cristo, faz-nos conhecê-Lo, permite-nos alegrarmo-nos e alimentarmo-nos d'Ele; é o Espírito Quem toma das decisões de Cristo e no-las mostra. O Espírito é o poder de comunhão, o selo, a testemunha, a garantia, e a unção. Em resumo; todas as benditas operações do Espírito são absolutamente essenci¬ais. Sem Ele não podemos ver, saber, nem ouvir, nem sentir, nem experimentar, nem gozar, nem manifestar nada de Cristo. Tudo isto é bem claro. A doutrina das operações do Espírito é claramente exposta nas Escrituras, e é recebida e compreendida por todo o crente fiel e bem esclarecido.
Todavia, não obstante tudo isto, a obra do Espírito não é o fundamento da paz; porque, se o fosse, não poderíamos desfrutar de uma paz segura até à vinda de Cristo, visto que a obra do Espírito, na Igreja, não terminará, propriamente falando, até então. O Espí¬rito prossegue a Sua obra no crente:".. .O mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis" (Rm 8:26), e esforça-Se por nos fazer chegar àquela estatura para a qual havemos sido chama¬dos, a saber: uma perfeita semelhança, em todas as coisas, à imagem do "Filho"; Ele é o único autor de todo o desejo bom, de toda a aspiração santa, todo afeto puro, de toda a experiência divina, e de toda a convicção sã; porém, é evidente que a sua obra em nós não estará completa antes de termos deixado a cena presente deste mundo para tomarmos o nosso lugar com Cristo na glória. Assim como o servo de Abraão não terminou a sua missão a respeito de Rebeca antes de a ter apresentado a Isaque.
Não sucede assim com a obra de Cristo por nós. Essa obra está absoluta e eternamente completa. O Senhor pôde dizer: "Eu glori-fiquei-te na terra, tendo consumado a obra que me deste a fazer" (Jo 17:4). E logo depois: "Está consumado" (Jo 19:30). Contudo o Espírito Santo não pode dizer que tem acabado a Sua obra. Como verdadeiro vigário de Cristo na terra, continua trabalhando no meio das diversas influências adversas que rodeiam a esfera da Sua atividade e no coração dos filhos de Deus para os fazer chegar de uma maneira prática e experimental à altura do modelo divinamente eleito. Porém, nunca ensina a alma a depender da Sua obra para ter paz na presença de Deus. A Sua missão é falar de Jesus: não fala de Si Mesmo. "Ele", diz Cristo,".. .há-de receber do que é meu e vo-lo há de dar" (Jo 16:14). Se, portanto, é somente pelo ensino do Espírito que alguém pode compreender o verdadeiro fundamento da paz, e se o Espírito nunca fala de Si Mesmo, é evidente que só pode apresentar a obra de Cristo como o fundamento sobre o qual a alma deve descansar para sempre; ainda assim, é em virtude dessa obra que o Espírito faz a Sua morada e cumpre as Suas maravilhosas operações no coração do crente. Ele nos revela Cristo e nos faz capazes de compreendê-lo e gozar dEle.
Por isso, o cordeiro da páscoa, como fundamento da paz de Israel, é um tipo admirável e magnífico de Cristo, como fundamento da paz do crente. Nada havia a acrescentar ao sangue posto sobre a ombreira da porta; tão-pouco nada mais há a acrescentar ao sangue posto sobre o propiciatório. Os "pães asmos" e as "ervas amargosas" eram coisas necessárias, mas não como formando, no todo ou em parte, o fundamento da paz. Deviam ser usadas no interior da casa e constituíam os sinais característicos da comunhão; porém, O FUNDAMENTO DETUDO ERA O SANGUE DO CORDEIRO. Foi ele que salvou os israelitas da morte e os introduziu numa nova cena de vida, de luz e de paz, formando o laço de união entre Deus e o Seu povo redimido. Como povo ligado com Deus sobre o fundamento da redenção cumprida, era seu alto privilégio serem colocados debaixo de certas responsabilidades; mas essas responsa¬bilidades não formavam o laço de união, mas eram a consequência natural dele.

A Morte de Cristo na Cruz
Desejo recordar também ao leitor que a vida de obediência de Cristo não é apresentada nas Escrituras como meio de alcançar o nosso perdão. Foi a Sua morte na cruz que abriu as comportas eternas do amor, que, de outra maneira, ficariam fechadas para sempre. Se o Senhor Jesus continuasse até este próprio momento percorrendo as cidades de Israel e "fazendo bem" (At 10:38) o véu do templo continuaria inteiro, para impedir a entrada do adorador na presença de Deus. Foi a Sua morte que rasgou essa misteriosa cortina "de alto abaixo" (Mc 15:38). Foi pelas suas "pisaduras", e não pela Sua vida de obediência, que nós "fomos sarados" (Is 53:5; 1 Pe 2:24); e foi na cruz que Ele suportou essas "pisaduras", e não em nenhuma outra parte. As Suas próprias palavras, pronunciadas durante o curso da Sua vida bendita, são mais que suficientes para tomar este ponto claro. "Importa, porém, que eu seja batizado com um certo batismo, e como me angustio até que venha a cumprir-se!" (Lc 12:50).
Aque se refere esta declaração senão à Sua morte na cruz como cumprimento desse batismo que abriu uma saída justa através da qual o Seu amor pudesse correr livremente até aos culpados filhos de Adão?- De outra vez, o Senhor diz: "Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer fica só" (Jo 12:24). Ele era esse precioso "grão de trigo"; e teria ficado para sempre "só", se, apesar de haver incarnado, não tivesse, por meio da Sua morte sobre o madeiro, tirado tudo aquilo que pudesse impedir a união do Seu povo Consigo na ressurreição. "Mas se morrer, dá muito fruto."
O leitor nunca poderá considerar com demasiada atenção este assunto tão solene e tão importante. Existem nele dois pontos relativos a esta questão, que convém recordar sempre, a saber: que não podia haver união possível com Cristo senão na ressurreição; e que Cristo sofreu somente na cruz pelos pecados. Não devemos imaginar, de modo nenhum, que Cristo nos uniu a Si por meio da incarnação. Isto não era possível. Como poderia a nossa carne pecaminosa unir-se assim com Ele4 O corpo do pecado tinha de ser desfeito pela morte.
O pecado tinha de ser tirado, exigia-o a glória de Deus; todo o poder do inimigo devia ser abolido. Como poderia conseguir-se isto£ Somente pela submissão do precioso, imaculado Cordeiro de Deus na morte da cruz. "Porque convinha que aquele, para quem são todas as coisas e mediante quem tudo existe, trazendo muitos filhos à glória, consagrasse feias aflições, o príncipe da salvação deles" (Hb 2:10). "...Eis que eu expulso demónios, e efetuocuras, hoje e amanhã, e no terceiro dia sou consumado" (Lc 13:32). As expressões "consagrasse", e "consumado" nas passagens acima mencionadas não se relacionam com Cristo de uma maneira abs-trata, porquanto, como Filho de Deus, Ele era perfeito desde toda a eternidade, e no tocante à Sua humanidade foi de igual modo absoltamente perfeito. Contudo, como príncipe da nossa salvação — como Aquele que havia de trazer muitos filhos à glória, dando assim muito fruto —, e para associar Consigo um povo redimido, Ele teve de chegar ao "terceiro dia" a fim de ser "consumado" ou "consagrado"; desceu sozinho ao "lago horrível, um charco de lodo"; porém, pôs imediatamente os Seus "pés sobre a rocha" da ressurrei¬ção, e associou "muitos filhos" Consigo (SI 40:1-3); combateu sozinho na batalha; porém, como vencedor poderoso, espalha à Sua roda, em rica profusão, os despojos da vitória, para que nós pudés¬semos ajuntá-los e desfrutar deles eternamente.
Além disso, não devemos considerar a cruz de Cristo como um simples incidente numa vida de expiação pelo pecado. A cruz foi o grande e único ato de expiação pelo pecado: "Levando ele mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro" (IPe 2:24). Não os levou em parte alguma mais.
Não foi na manjedoura que os tomou sobre Si, nem no jardim do Getsemani, nem no deserto, mas SOMENTE "SOBRE O MA¬DEIRO". O Senhor nada teve a ver com o pecado, salvo na cruz; e foi ali que Ele inclinou a Sua bendita cabeça e deu a Sua preciosa vida sob o peso acumulado dos pecados do Seu povo. Nem tampouco jamais sofreu às mãos de Deus, salvo na cruz; e ali o Senhor escondeu o Seu rosto d'Ele porque O fez "pecado por nós" (2 Co 5-.21).
Esta série de pensamentos, e as várias passagens a que se faz referência, podem, talvez, ajudar o leitor a compreender mais claramente o poder divino das palavras: "vendo eu sangue passarei por cima de vós". Era absolutamente necessário que o cordeiro fosse sem mácula, pois de contrário como poderia satisfazer o olhar santo do Senhor1?- Porém, se o sangue não tivesse sido derramado o Senhor não poderia ter passado por cima do Seu povo, porque" sem derra¬mamento de sangue não há remissão" (Hb 9:22). Teremos outra vez ocasião de meditar sobre este assunto, se o Senhor permitir, de uma maneira mais clara e apropriada nas figuras de Levítico. É um assunto que requer a atenção profunda de todos aqueles que amam o Senhor Jesus Cristo em sinceridade.

A Páscoa: o Centro de Comunhão
Consideremos agora o segundo aspecto da páscoa, como centro ao redor do qual a assembleia estava reunida em tranquila, santa e feliz comunhão. Israel salvo pelo sangue, era uma coisa; e Israel alimentando-se do cordeiro, era outra muito diferente. Estavam salvos somente pelo sangue; porém o objeto em volta do qual estavam reunidos era, evidentemente, o cordeiro assado. Esta distinção não é, de modo nenhum, absurda. O sangue do Cordeiro constitui o fundamento tanto da nossa ligação com Deus como da nossa conexão uns com os outros. É como aqueles que são lavados pelo sangue que somos levados a Deus e ficamos em comunhão uns com os outros. Aparte a expiação perfeita de Cristo não podia haver evidentemente comunhão nem com Deus nem com a assembleia.
Contudo não devemos esquecer o fato que é para um Cristo vivo nos céus que os crentes são reunidos pelo Espírito Santo. Estamos unidos a um Chefe vivo — fomos levados a uma "pedra viva" (1 Pe 2:4). O Senhor é o nosso centro. Havendo achado paz pelo Seu sangue, nós reconhecemos que Ele é o nosso grande centro de reunião e o laço que nos une. "Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles" (Mt 18:20). O Espírito Santo é o único que promove a reunião; Cristo é o único objetivo em volta do qual nos reunimos; e a nossa assembleia, assim convocada, deve ser caracterizada pela santidade, de maneira que o Senhor nosso Deus possa habitar entre nós. O Espírito Santo só nos pode reunir para Cristo; não nos pode reunir em torno de um sistema, um nome, uma doutrina ou uma ordenação. Ele reúne para uma Pessoa, e essa Pessoa é Cristo glorificado no céu. É isto que deve dar um caráter peculiar à assembleia de Deus. Os homens podem associar-se sobre qualquer base, em volta dequalquercentroou com qualquer fim que mais lhes agrade; porém, quando o Espírito Santo promove a associação, fá-lo sobre o fundamento da redenção ef etu-ada e em redor da Pessoa de Cristo, com o fim de edificar um templo santo para Deus (1 Co 3:16-17; 6:19; Ef 2:21-22; 1 Pe 2.4-5).

Como a Páscoa Deveria Ser Comida
Veremos agora em pormenor os princípios que nos são apresen¬tados na festa da páscoa. A assembleia de Israel, sob o sangue, tinha de ser organizada pelo Senhor de uma maneira digna de Si Próprio. Quanto à sua segurança contra o juízo, como vimos já, nada era necessário senão o sangue; mas quanto à comunhão que resultava desta segurança eram necessárias outras coisas, que não podiam ser descuradas com impunidade.
E, portanto, lemos, em primeiro lugar: "E naquela noite comerão a carne assada no fogo, com pães asmos; com ervas amargosas a comerão. Não comereis dele nada cru, nem cozido em água, senão assado ao fogo" (versículos 8 a 9). O cordeiro em torno do qual a congregação estava reunida, e com o qual fazia festa, era um cordeiro assado — um cordeiro que tinha sido submetido à ação do fogo. Vemos neste pormenor "Cristo a nossa páscoa" expondo-Se a Si Mesmo à ação do fogo da santidade e da justiça de Deus, que acharam n'Ele um objeto perfeito. Ele pôde dizer: "Provaste o meu coração; visitaste-me de noite; examinaste-me e nada achaste; o que pensei, a minha boca não transgredirá" (SI 17:3).Tudon'Eleera perfeito. O fogo provou-O e não havia impureza. "A cabeça com os pés e com a fressura". Quer dizer, o centro da Sua inteligência; a Sua vida exterior com tudo quanto lhe pertencia — tudo foi submetido à ação do fogo, e tudo foi achado perfeito.
A maneira como o cordeiro devia ser assado é profundamente significativa, como o são em pormenor as ordenações de Deus. Nada deve ser passado por alto, porque está cheio de significação — "não comereis dele nada cru, nem cozido em água". Se o cordeiro tivesse sido comido assim não teria sido a expressão da grande verdade que prefigurava segundo o propósito divino, isto é: que o nosso Cordeiro da páscoa deveria sofrer, na cruz, o fogo da justa ira de Deus; uma verdade, aliás, preciosa para a alma. Não estamos somente sob a proteção eterna do sangue do Cordeiro, como as nossas almas se alimentam pela fé da pessoa do Cordeiro. Muitos de nós enganamq-nos a este respeito. Estamos prontos a contentarmo-nos porestarmos salvos por meio da obra que Cristo cumpriu a nosso favor sem mantermos uma santa comunhão com Ele Próprio. O Seu coração amoroso nunca poderá contentar-se com isto. Ele trouxe-nos para perto de Si para que pudéssemos apreciá-Lo, alimentarmo-nos d'Ele e regozijarmo-nos n'Ele. Cristo apresenta-Se perante nós como Aquele que sofreu o fogo intenso da ira de Deus, a fim de ser, neste caráter maravilhoso de Cordeiro, alimento para as nossas almas redimidas.


Os Pães Asmos
Mas como devia ser comido este cordeiro1?- "...com pães asmos; com ervas amargosas a comerão". O fermento é empregado, inva¬riavelmente, através das Escrituras, como símbolo do mal. Nunca é usado nem no Velho nem no NovoTestamento como simbolizan¬do alguma coisa pura, santa ou boa. Assim, neste capítulo, a celebra¬ção da festa com "pães asmos" é figura da separação prática do mal como resultado próprio de havermos sido lavados dos nossos peca¬dos no sangue do Cordeiro e a própia consequência da comunhão com os Seus sofrimentos. Nada senão pão perfeitamente livre de fermento podia ser compatível com o cordeiro assado. Uma simples partícula daquilo que era figura destacada do mal teria destruído o caráter moral de toda a ordenação. Como poderíamos nós associar qualquer espécie de mal como a nossa comunhão com Cristo nos Seus sofrimentos?- Seria impossível. Todos aqueles que, pelo poder do Espírito Santo, têm compreendido a significação da cruz, não terão dificuldade, pelo mesmo poder, de afastar entre eles o fermen¬to. "Porque Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós. Peio que façamos festa, não com o fermento velho, nem com o fermento da maldade e da malícia, mas com os asmos da sinceridade e da verdade" (1 Co 5:7-8). A festa de que se fala nesta passagem é a mesma que, na vida e conduta da Igreja, corresponde à festa dos pães asmos. Esta durava "sete dias"; e a Igreja, coletivamente, e o crente individual¬mente, são chamados para andar em santidade prática, durante os sete dias, ou seja todo o tempo da sua carreira aqui na terra; e isto, note-se, como resultado imediato de haverem sido lavados no sangue, e tendo comunhão com os sofrimentos de Cristo.
O israelita não deitava fora o fermento a fim de ser salvo, mas, sim, porque estava salvo; e se deixasse de o deitar fora, não compro¬metia com isso a sua segurança por meio do sangue, mas simples¬mente a comunhão com a assembleia. "Por sete dias não se ache nenhum fermento nas vossas casas; porque qualquer que comer pão levedado, aquela alma será cortada da congregação de Israel, assim o estrangeiro como o natural da terra" (versículo 19). O corte de uma alma da congregação corresponde precisamente à suspen¬são de um cristão da comunhão, quando acede àquilo que é contrá¬rio à santidade da presença de Deus. Deus não pode tolerar o mal. Um simples pensamento impuro interrompe a comunhão da alma; e enquanto a mancha produzida por este pensamento não for tirada pela confissão, baseada na intercessão de Cristo, não é possível restabelecer a comunhão (vide 1 Jo 1:5 -10). O cristão sincero regozija-se nisto; e dá louvores em memória da santidade de Deus (SI 97:12). Ainda que pudesse, não diminuiria, nem por um mo¬mento, o estalão: é seu gozo inexcedível andar na companhia d Aquele que não andará nem por um momento com uma simples partícula de "fermento".
Graças a Deus, nós sabemos que nada poderá j amais partir em dois o laço que une o verdadeiro crente com Ele. Somos salvos pelo Senhor, não com uma salvação temporária ou condicional, mas "com uma eterna salvação" (Is 45:17). Porém, salvação e comunhão não são a mesma coisa. Muitas pessoas estão salvas, e não o sabem; e muitas, também, estãosalvas sem teremogozo da salvação. Éimpossível que eu sinta o gozo de estar sob a verga da porta manchada de sangue, se houver fermento em minha casa. É um axioma na vida divina. Oxalá fosse escrito em nossos corações! A santidade prática, embora não seja a base da nossa salvação, está intimamente ligada com o gozo da salvação. O israelita não era salvo pelos pães asmos, mas, sim, pelo sangue; e todavia o fermento tê-lo-ia cortado da comunhão. E assim quanto ao cristão, ele não é salvo por sua santidade prática, mas pelo sangue; porém se se entrega ao mal, em pensamento, por palavras, ou ações, não terão verdadeiro gozo da salvação, nem verdadeira comu¬nhão com a pessoa do Cordeiro.
É nisto, sem dúvida, que está o segredo de uma boa parte da esterilidade espiritual e falta de paz constante que se observa entre os filhos de Deus. Não praticam a santidade: não guardam a festa dos "pães asmos" (Êx 23:15). O sangue acha-se sobre as ombreiras da porta, porém o fermento dentro de suas casas impede-os de gozarem a segurança que o sangue concede. A permissão do mal destrói a nossa comunhão, embora não quebre o laço que nos une eternamente a Deus. Aqueles que pertencem à Assembleia de Deus devem ser santos. Não somente foram libertados da culpa e das consequências do pecado, como também da sua prática, do seu poder e do amor do pecado. O próprio fato de haverem sido liberta¬dos pelo sangue do cordeiro da páscoa impunha aos israelitas a obrigação de deitarem fora de suas casas o fermento. Não podiam dizer, segundo a linguagem terrível do antinomianismo1, "agora que estamos livres, podemos conduzir-nos como nos aprouver". De modo nenhum! Se haviam sido salvos feia graça, era para andarem em santidade. A alma que se aproveita da liberdade da graça divina e da redenção que há em Cristo Jesus para "continuar no pecado" prova claramente que não compreende nem a graça nem a redenção.
A graça não somente salva a alma com uma eterna salvação, como lhe dá uma natureza que se deleita em tudo que pertence a Deus, porque é divina. Nós somos feitos participantes da natu¬reza divina, a qual não pode pecar, porque é nascida de Deus. Andar na energia desta graça é, na realidade, "guardar" a festa dos pães asmos. Não existe "fermento velho" nem "fermento da malícia" (1 Co 5:8) na nova natureza, porque é nascida de Deus e Deus é santo e "Deus é amor". Por isso é evidente que não é com o fim de melhorar a nossa velha natureza, que é irreparável, nem tampouco de obter¬mos a nova natureza, que tiramos de nós o mal, mas, sim, porque temos o mal em nós. Nós temos a vida e, no poder desta vida, tiramos o mal. É somente quando estamos libertados da culpa do pecado que compreendemos ou exibimos o verdadeiro poder da santidade. Tentar consegui-lo por qualquer outro meio é esforço inútil. A festa dos pães asmos só pode ser guardada sob o abrigo perfeito do sangue.
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1) antinomia: contradição entre duas leis ou princípios; oposição recíproca Nota do editor.


As Ervas Amargas
Vemos nas "ervas amargosas", que deviam acompanhar os pães asmos, a significação e mesma utilidade moral. Não podemos desfrutar da participação dos sofrimentos de Cristo sem recordar¬mos o que tornou necessários esses sofrimentos, e esta recordação deve, necessariamente, produzir um espírito de mortificação e submissão, ilustrado, de um modo apropriado, nas ervas amargosas da festa da páscoa. Se o cordeiro assado representa Cristo sofrendo a ira de Deus em Sua Própria Pessoa na cruz, as ervas amargosas mostram que o crente reconhece a verdade que Ele sofreu por nós. "O castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados" (Is 53:5).
Por causa da leviandade dos nossos corações é bom compreen¬dermos a profunda significação das ervas amargosas. Quem poderá ler os Salmos 6,22,38,69,88, e 109, sem compreender, em alguma medida, o significado dos pães asmos com ervas amargosas1?- Uma vida praticamente santa, unida a uma profunda submissão de alma, deve ser o fruto da comunhão verdadeira com os sofrimentos de Cristo, porque é de todo impossível que o mal moral e a leviandade de espírito possam subsistir na presença desses sofrimentos.
Mas, pode perguntar-se não sente a alma um gozo profundo no conhecimento que Cristo levou os nossos pecados, e que esgotou, inteiramente, por nós, o cálice da ira justa de Deus? Por certo que é assim. E este o fundamento inabalável de todo o nosso gozo. Mas, poderemos nósesquecerquefoi" por nossos pecados" que Ele sofreu £ Poderemos perder de vista a verdade, poderosa para subjugar a alma, que o bendito Cordeiro de Deus inclinou a Sua cabeça sob o peso das nossas transgressões? Certamente que não. Devemos comer o nosso cordeiro com ervas amargosas; as quais, não se esqueça, não representam as lágrimas de um sentimentalismo desprezível e superficial, mas sim as experiências profundas e verdadeiras de uma alma que compreende com inteligência espiritual o significado e efeito prático da cruz.
Contemplando a cruz, descobrimos nela aquilo que elimina a nossa culpa e dá doce paz e gozo. Porém, vemos que ela põe de lado, inteiramente, também, a natureza humana—representa a crucifi¬cação da "carne" e a morte do "homem velho" (veja-se Romanos, 6:6; Gl. 2-.20; 6:14; Cl. 2:11). Estas verdades, nos seus resultados práticos, implicam muitas coisas "amargosas" para a nossa natureza: exigem a renúncia própria, a mortificação dos nossos membros que estão sobre a terra (Cl 3:5), e a consideração do "homem velho" como morto para o pecado (Rm 6). Todas estas coisas podem parecer terríveis de encarar; porém, uma vez que se há entrado na casa cujas portas estão manchadas com o sangue vêem-se de uma maneira muito diferente. As mesmas ervas que, para o gosto de um egípcio, eram, sem dúvida, tão amargosas, formavam uma parte integral da festa de redenção de Israel. Aqueles que são remidos pelo sangue do Cordeiro, e conhecem o gozo da comunhão com Ele, consideram como uma "festa" tirar o mal e ter a velha natureza no lugar da morte.

A Comunhão e a Paz
"E nada dele deixareis até pela manhã; mas o que dele ficar até pela manhã, queimareis no fogo" (versículo 10). Este mandamento ensina-nos que a comunhão da congregação de Israel não devia ser, de modo nenhum, separada do sacrifício sobre o qual se baseava essa comunhão. O coração deve guardar sempre a lembrança viva de que toda a verdadeira comunhão está inseparavelmente ligada com a redenção efe tuada. Crer que se pode ter comunhão com Deus sobre qualquer outro fundamento é imaginar que Deus pode ter comu¬nhão com o pecado que há em nós; e pensar em comunhão com o homem, com base em qualquer outro fundamento, é apenas formar uma união impura, da qual nada pode resultar senão confusão e iniquidade. Em suma: é necessário que tudo esteja fundamentado sobre o sangue e inseparavelmente ligado com ele. Este é o signifi¬cado simples da ordenação que mandava comer o cordeiro da páscoa na mesma noite em que o sangue havia sido derramado. A comu¬nhão não pode ser separada do seu fundamento.
Portanto, que belo quadro nos oferece a congregação de Israel protegida pelo sangue e comendo em paz o cordeiro assado com pães asmos e ervas amargosas! Nenhum temor de juízo, nenhum temor da ira do SENHOR, nenhum temor da tempestade terrível da justa vingança, que, à meia-noite, ia varrer, veementemente, toda a terra do Egito! Tudo estava em paz profunda atrás das portas manchadas de sangue. Nada tinham a temer de fora; e nada dentro podia perturbá-los, salvo o fermento, que teria dado umgolpe mortal em toda a sua paz e bem-aventurança. Que exemplo para a Igreja! Que exemplo para o cristão! Que Deus nos ajude a contemplarmo-lo com um olhar iluminado e um espírito dócil!

O Vestido de Israel
Contudo, não esgotámos ainda o ensino desta tão instrutiva ordenação. Considerámos a posição de Israel e a comida de Israel, vamos agora falar do estado de Israel.
"Assim, pois, o comereis: Os vossos lombos cingidos, os vossos sapatos nos pés, e o vosso cajado na mão; e o comereis apressadamen¬te; esta é a Páscoa do Senhor" (versículo 11). Deviam comer a páscoa como um povo que estava preparado para deixar atrás de si o país da morte e das trevas, da ira e do juízo, e marchar em demanda da terra da promissão—a herança que lhes estava reservada. O sangue que os havia preservado da sorte dos primogénitos do Egito era também o fundamento da sua libertação da escravidão do Egito; e agora só lhes restava porem-se em marcha e andar com Deus para a terra que manava leite e mel. É verdade que não haviam ainda atravessado o Mar vermelho; tampouco haviam andado o "caminho de três dias". Contudo, eram já, em princípio, um povo redimido, um povo separado, um povo de peregrinos, um povo esperançoso, um povo que dependia de Deus; e era preciso que os seus trajos estivessem de harmonia com a sua presente condição e o destino futuro. Os lombos cingidos indicavam uma separação rigorosa de tudo aquilo que os rodeava e mostravam que eles eram um povo preparado para servir. Os pés calçados mostravam que estavam prontos a abando¬nar o seu estado presente; enquanto que o cajado era o emblema significativo de um povo de peregrinos numa atitude de apoio em qualquer coisa que estava fora de si mesmos. Que característicos preciosos! Prouvera a Deus que fossem vistos em cada membro da família dos Seus remidos.
Prezado leitor, meditemos "estas coisas (lTm 4:15). Pela graça de Deus, experimentámos a eficácia purificadora do sangue de Jesus; neste estado é nosso privilégio alimentarmo-nos da sua adorável Pessoa e deleitarmo-nos nas Suas "riquezas incompreensíveis" (Ef 3:8), tendo parte nos Seus sofrimentos e sendo feitos "conforme à sua morte" (Fp 3:10). Mostremo-nos, pois, com pães asmos e ervas amargosas, os lombos cingidos, os sapatos nos pés, e o cajado na mão. Numa palavra: que sejamos notados como um povo santo, um povo crucificado, vigilante e diligente—um povo que mancha, claramente, ao encontro deDeus no caminho para aglória—, "destinado para oreino". Que Deus nos conceda penetrar na profundidade e no poder de todas estas coisas; de forma que não sejam apenas teorias, ou princípios de conhecimento bíblico e simples interpretação; mas, sim, realidades vivas, divinas, conhecidas por experiência e manifestadas na vida, para glória de Deus.

Quem Podia Comer a Páscoa?
Terminaremos os nossos comentários sobre esta parte do capí¬tulo passando por alto os versículos 43 a 49. Estes versículos ensinam-nos que, embora fosse privilégio de todo o verdadeiro israelita comer a páscoa, nenhum estrangeiro incircunciso podia participar dela. "Nenhum filho de estrangeiro comerá dela... toda a congregação de Israel o fará". A circuncisão era necessária antes que a páscoa pudesse ser comida. Poroutras palavras: é precisoque a sentença de morte seja lavrada sobre a natureza antes de nos podermos nutrir de Cristo inteligentemente, quer seja como o fundamento de paz ou o centro de união. A circuncisão tem o seu antítipo na cruz.
Só os varões eram circuncidados. A mulher era representada no varão. Assim, na cruz, Cristo representou a Sua Igreja, e, por isso, a Igreja está crucificada com Cristo; contudo, vive pela vida de Cristo, conhecida e manifestada na terra pelo poder do Espírito Santo. "Porém, se algum estrangeiro se hospedar contigo e quiser celebrar a Páscoa ao SENHOR, seja-lhe circuncidado todo o macho, e então, chegará a celebrá-la, e será como o natural da terra; mas nenhum incircunciso comerá dela" (versículo 48). "Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus" (Rm 8:8).
A ordenação da circuncisão formava a grande linha de demarca¬ção entre o Israel de Deus e todas as nações que havia à face da terra; e a cruz do Senhor Jesus Cristo forma a linha da demarcação entre a Igreja e o mundo. Fosse qual fosse a posição que umhomem ocupava ou as vantagens que tivesse não podia ter parte em Israel até que se submetesse à operação do corte da sua carne. Um mendigo circunci¬dado estava mais perto de Deus que um rei incircunciso. Assim também agora não pode haver participação nos gozos dos remidos de Deus, senão pela cruz de nosso Senhor Jesus Cristo; e essa cruz abate todas as pretensões, derriba todas as distinções e une todos os remidos numa congregação santa de adoradores lavados pelo sangue. A cruz forma uma barreira tão elevada e uma defesa de tal modo impenetrá¬vel que nem um sequer átomo da terra ou da velha natureza pode atravessá-la para se misturar com "a nova criação". "E tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo" (2 Co 5:18).
Porém, na instituição da páscoa não só foi sustentado o princípio de separação entre Israel e os estranhos, como a unidade de Israel foi também claramente posta em vigor. "Numa casa se comerá; não levarás daquela carne fora da casa, nem dela quebrareis osso (versículo 46). Existe nesta passagem uma figura tão formosa quanto o podia ser de "um corpo e um Espírito" (Ef 4:4). A Igreja de Deus é uma só. Deus contempla-a como tal, sustém-na como tal, e manifestá-la-á como tal à vista de anjos, homens e demónios, apesar de tudo quanto se tem feito para pôr obstáculos a essa unidade santa. Bendito seja Deus, a unidade da Sua Igreja está tão bem guardada como o é a sua justificação, aceitação e segurança eterna. "Ele guarda todos os seus ossos; nem sequer um deles se quebra" (Sl 34:20). "Nenhum dos seus ossos será quebrado"(Jo 19:36). Apesar da rudeza e zelo da soldadesca romana, e não obstante todas a influên¬cias hostis que têm estado em operação, através dos séculos, o corpo de Cristo é um só e a sua unidade nunca poderá ser quebrada. "HÁ UM SÓ CORPO E UM SÓ ESPÍRITO" (Ef 4:4); e isto, além disso, aqui, no mundo. Feliz daqueles que têm recebido fé para reconhecer esta preciosa verdade e fidelidade para a porem em prática, nestes últimos dias, não obstante as dificuldades quase insuperáveis que acompanham a sua profissão e prática! Creio que Deus reconhecerá e honrará os tais.
Que o Senhor nos guarde do espírito da incredulidade que nos induziria a julgar por vista, em vez de julgarmos à luz da Sua Palavra imutável!

— CAPÍTULO 13 —

O RESGATE DOS PRIMOGÊNITOS

Santifica-me todo Primogênito
Os primeiros versículos deste capítulo ensinam-nos claramente que o af eto pessoal e a santidade são frutos do amor divino produ¬zidos naqueles que são os seus felizes objetos. A consagração dos primogénitos e a festa dos pães asmos são apresentados aqui na sua relação imediata com alibertação de Israel do país do Egito. "San¬tifica-me todo primogénito, o que abrir toda madre entre os filhos de Israel, de homens e de animais; porque meu é. E Moisés disse ao povo-. Lembrai-vos deste mesmo dia, em que saístes do Egito, da casa da servidão; pois, com mão forte o SENHOR ; vos tirou daqui; portanto, não comereis pão levedado" (versículos 2-3). E logo em seguida: "Sete dias comerás pães asmos; e ao sétimo dia haverá festa ao SENHOR. Sete dias se comerão pães asmos, e olevedado não se verá contigo, nem ainda fermento será visto em todos os teus termos" (versículos 6-7).

Farás saber a teu Filho
Depois é apresentada a razão por que estas duas cerimónias deviam ser praticadas. "E, naquele mesmo dia, farás saber a teu filho, dizendo: Isto é pelo que o SENHOR me tem feito, quando eu saí do Egito... Se acontecer que teu filho no tempo futuro te pergunte, dizendo: Que é isto? Dir-lhe-ás: O SENHOR nos tirou com mão forte do Egito, da casa da servidão. Porque sucedeu que, endurecendo-se Faraó, para não nos deixar ir, o SENHOR matou todos os primogénitos na terra do Egito, desde o primigênito do homem até ao primogénito dos animais; por isso, eu sacrifico ao SENHOR OS machos de tudo o que abre a madre; porém, a todo primogénito de meus filhos eu resgato".
Quanto mais compreendemos, pelo poder do Espírito Santo, a redenção que há em Cristo Jesus, tanto mais decidida será a nossa separação, e real será a nossa consagração. O esforço para alcançar uma ou outra destas coisas antes que a redenção seja conhecida é o trabalho mais útil que pode imaginar-se. Todo o nosso trabalho deve ser feito "pelo que o SENHORtem feito", e não para obtermos d'Ele alguma coisa. Os esforços para se conseguir a vida e a paz provam que ainda somos estranhos ao poder do sangue; ao passo que os frutos de uma redenção experimentada são para louvor d'Aquele que nos redimiu. "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isso não vemde vós; édomdeDeus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie.Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas" (Ef 2:8-10). Deus preparou-nos um caminho de boas obras para que andássemos nelas; e por meio da Sua graça prepara-nos para andarmos nesse caminho. É somente como salvos que podemos andar num tal caminho. Fosse de outra maneira, poderíamo-nos gloriar; mas visto que nós próprios so¬mos tanto obra de Deus como o caminho no qual andamos, não há lugar algum para jactância.

O Verdadeiro Cristianismo
O verdadeiro Cristianismo não é senão a manifestação da vida de Cristo implantada em nós pela operação do Espírito Santo, segundo os desígnios eternos de Deus de graça soberana; e todas as nossas obras antes desta implantação de nova vida não são mais que "obras mortas" (Hb 6:1), das quais a nossa consciência deve ser purificada do mesmo modo que das "más obras" (Hb 9:14).
A expressão "obras mortas" inclui todas as obras que os homens fazem com o fim de obter a vida. Se alguém busca a vida, é evidente que ainda não a tem. É possível que seja muito sincero em a buscar, mas a sua própria sinceridade forma evidente o fato que, por enquan¬to, ainda não a alcançou. Assim, pois, todo o esforço feito com o fim de obter a vida é obra morta, tanto mais que é feito sem a vida de Cristo, a única vida verdadeira, e a única fonte de onde podem emanar as boas obras. Enote-se que não é uma questão de "obras más"; ninguém pensaria em obter a vida por tais meios. Não! Pelo contrário, ver-se-á como as pessoas recorrem constantemente às "obras mortas" a fim de aliviarem a Sua consciência sob a sensação das "obras más", ao passo que a revelação divina nos ensina que a consciência necessita de ser purificada tanto de umas como das outras.
Além disso, quanto à justiça, lemos que "todas as nossas justiças são como o trapo da imundícia" (Is 64:6). Não é dito aqui apenas que "todas as nossas iniquidades são como trapo da imundícia". Quem ousaria dizer o contrário? Porém o fato é que os melhores frutos que podemos produzir, sob a forma de piedade e da justiça, são represen¬tados nas páginas da verdade eterna como "obras mortas" e "trapo da imundícia". Os mesmos esforços que fazemos para conseguir a vida provam que estamos mortos; e os nossos esforços para alcançarmos a justiça provam apenas que estamos vestidos com trapos de imun¬dícia. É só como possuidores da vida eterna e da justiça divina de podemos andar no caminho das boas obras que Deus nos preparou. As obras mortas e os trapos imundos não podem ser permitidos nesse caminho. Ninguém senão "os resgatados do Senhor" (Is 51:11) pode passar por ele. Era na qualidade do povo remido que Israel guardava a festa dos pães asmos e santificava os primogénitos ao Senhor., Já consideramos a primeira destas ordenações; quanto a esta última é rica em instruções.

Resgatados pelo Sangue de Cristo
O anjo destruidor passou pela terra do Egito para destruir todos os primogénitos; porém os primogénitos de Israel escaparam por meio da morte de um substituto enviado por Deus. Por consequên¬cia, estes aparecem perante nós, neste capítulo, como um povo vivo, consagrado a Deus. Salvos por meio do sangue do cordeiro, eles têm o privilégio de consagrar as suas vidas Aquele que as redimiu. Assim, era só como redimidos que possuíam vida. Foi somente a graça de Deus que fez com que houvesse diferença a favor deles, e dera-lhes o lugar de homens vivos na Sua presença. No seu caso, certamente, nãohavia lugar para jactância; porque, quanto aos seus méritos ou dignidade pessoal, aprendemos neste capítulo que foram postos ao mesmo nível das coisas impuras e inúteis. "Porém tudo que abrir a madre da jumenta resgatarás com cordeiro; e, se o não resgatares cortar-lhe-ás a cabeça; mas todo o primogénito do homem entre teus filhos resgatarás" (versículo 13). Havia duas classes de animais, a saber: os limpos e os imundos; e o homem é contado aqui com os últimos. O cordeiro tinha de responder pelos imundos; e se o jumento não fosse resgatado, a sua cabeça tinha de ser cortada; de forma que o homem não redimido era posto ao mesmo nível do animal imundo, e isto, também, numa condição que não podia ser mais insignificante e obscura. Que quadro humilhante do homem na sua condição natural!
Oh! se os nossos pobres e orgulhosos corações pudessem compreender melhor esta verdade! Então regozijar-nos-íamos sinceramente com o privilégio glorioso de sermos lavados da nossa culpa no sangue do Cordeiro de Deus e de termos deixado para sempre a nossa vileza pessoal na sepultura, onde foi posto o nosso Substituto.
Cristo era o Cordeiro limpo, sem mácula. Nós éramos imun¬dos. Mas, adorado seja para todo o sempre o Seu nome incompa¬rável, Ele tomou o nosso lugar; e foi feito pecado na cruz e tratado como tal. Aquilo que nós devíamos sofrer por todos os séculos incontáveis da eternidade, sofreu-o Ele por nós na cruz. Ali, e então, Ele sofreu tudo que nós merecíamos, para que nós pudésse¬mos gozar para sempre aquilo que Lhe é devido. Ele recebeu o que nós merecíamos, para que nós pudéssemos receber os Seus méri¬tos. Aquele que era puro tomou, por um pouco de tempo, o lugar dos imundos, a fim de que os imundos pudessem tomar para todo o sempre o lugar dos puros. Assim, embora quanto à natureza sejamos representados pela figura repugnante de um jumento com a cabeça partida, pela graça somos representados por um Cristo ressuscitado e glorificado no céu. Que contraste maravi¬lhoso! Deita por terra a glória do homem e glorifica as riquezas do amor de redenção. Reduz ao silêncio a jactância vazia do homem e põe na sua boca um cântico de louvor a Deus e ao Cordeiro, que ressoará nas cortes do céu através dos séculos eternos (¹).
É forçoso recordar aqui as palavras do apóstolo Paulo aos Romanos: "Ora, se já morremos com Cristo, cremos que também com ele viveremos; sabendo que, havendo Cristo ressuscitado dos mortos, já não morre; a morte não mais terá domínio sobre ele. Pois, quanto a ter morrido, de uma vez morreu para o pecado, mas, quanto a viver, vive para Deus. Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus, nosso Senhor. Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em suas concupiscências. Nem tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de iniquidade; mas apresentai-vos a Deus; como vivos dentre mor¬tos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça. Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo dagraça" (Rm6:8 -14). Não só estamos resgatados do poder da morte e da sepultura, mas unidos Aquele que nos resgatou pelo preço enormíssimo da Sua própria vida, para que pudéssemos, na energia do Espírito Santo, consagrar a nossa nova vida, com todas as suas faculdades, ao Seu serviço, de forma a que o Seu nome precioso seja glorificado em nós, segundo a vontade de Deus, nossoPai.
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(¹) É interessante notarmos que por natureza temos o grau de um animal imundo; pela graça estamos ligados com Cristo, o Cordeiro imaculado. Não pode haver mais baixo que o lugar que nos pertence por natureza e nada mais elevado que o lugar que nos pertence por graça. Pensai, por exemplo, num jumento com a cabeça decepada- eis o que vale um homem sem Deus. Pensai no "precioso sangue de Cristo": eis o que vale um homem redimido. "Para vós, os que credes, é precioso" (IPe 2:7). Quer dizer, todos quantos são lavados no sangue participam da preciosidade de Cristo. Assim como Ele é "a pedra viva", eles são "pedras vivas"; do mesmo modo que Ele é "a pedra preciosa", eles são "pedras preciosas". Os remidos recebem vida e dignidade d'Elee n'Ele. São como Ele é. Cada pedra do edifício é preciosa, porque é comprada nada menos nada mais que com "o sangue do Cordeiro". Deus permita que o Seu povo conheça melhor o seu lugar e os seus privilégios em Cristo!

O Caminho do Deserto Próximo ao Mar Vermelho
Os últimos versículos deste capítulo dão-nos um exemplo formoso e tocante do cuidado terno do Senhor pelas necessidades do Seu povo. "Pois Ele conhece a nossa estrutura, lembra-se de que somos pó" (Sl 103:14).
Quando redimiu Israel e os pôs em relação com Ele, o Senhor, na Sua graça insondável e infinita, tomou a Seu cargo todas as suas necessidades e fraquezas. Pouco importava o que eles eram ou o que necessitavam, visto que Aquele que se chama "EU SOU" estava com eles em toda a riqueza inexaurível desse nome: estava com eles para os conduzir do Egito à terra de Canaã, e aqui vêmo-Lo escolher o melhor caminho para eles. "E aconteceu que, quando Faraó deixou ir o povo, Deus não os levou pelo caminho da terra dos filisteus, que estava mais perto; porque Deus disse: Para que, porventura, o povo não se arrependa, vendo a guerra, e tornem ao Egito. Mas Deus fez rodear o povo pelo caminho do deserto perto do Mar Vermelho" (versículos 17-18).
O Senhor, em Sua graça e condescendência, ordenou as coisas de tal maneira para o Seu povo que eles não encontraram, ao princípio, provas demasiadamente difíceis que podiam ter o efeito de desanimar os corações e fazê-los retroceder. "O caminho do deserto" era uma rota muito mais demorada; mas Deus tinha várias lições importantes para ensinar ao Seu povo, as quais só podiam ser aprendidas no deserto. Mais tarde, este fato é recordado nas seguin¬tes palavras: "E te lembrarás de todo o caminho, pelo qual o SENHOR, teu Deus, te guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar, para te tentar, para saber o que estava no teu coração, se guardarias os seus mandamentos ou não. E te humilhou, e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu não conheceste, nem teus pais o conheceram; para te dar a entender que o homem não viverá só de pão, mas que tudo o que sai da boca do SENHOR viverá o homem. Nunca se envelheceu a tua veste sobre ti, nem se inchou o teu pé nestes quarenta anos" (Dt 8:2-4). Tão preciosas lições nunca poderiam ser aprendidas no "caminho da terra dos filisteus". Nesse caminho, eles podiam ter aprendido o que era a guerra, logo no princípio da sua carreira; porém no "caminho do deserto" aprende¬ram o que era a carne, com toda a sua perversidade, sua incredulidade e rebelião. Mas Aquele que se chama EU SOU estava com eles em toda a Sua paciência, sabedoria perfeita, e poder infinito. Ninguém senão Ele podia ter suprido as necessidades da situação. Ninguém senão Ele podia suportar a vista das profundezas do coração huma¬no. Abrir o meu coração em qualquer parte, salvo na presença da graça infinita, equivaleria lançar-me em desespero. O coração humano é apenas um inferno em miniatura. Que graça inflável, pois, ser libertado da sua terrível profundidade!

O Senhor ia Adiante Deles
"Assim, partiram de Sucote, e acamparam em Etã, à entrada do deserto. E o SENHOR ia adiante deles, de dia numa coluna de nuvem, para os guiar pelo caminho, e de noite numa coluna de fogo, para os alumiar, para que caminhassem de dia e de noite. Nunca tirou de diante da face do povo a coluna de nuvem, de dia, nem a coluna de fogo, de noite" (versículos 20 a 22). O Senhor não só escolheu o caminho para o Seu povo, como desceu para os acompanhar e tornar-Se conhecido deles segundo as suas necessidades. Não so¬mente os conduziu a salvo fora do Egito, como desceu, com efeito, no Seu carro de viagens, para ser seu companheiro através das vicissitudes da sua jornada através do deserto. Isto era graça divina. Os israelitas não foram apenas libertados da fornalha do Egito e então deixados para que fizessem o melhor que pudessem a sua jornada para Canaã; esse não era o método de Deus para com eles. Ele sabia que eles tinham diante de si uma jornada perigosa e árdua, com serpentes e escorpiões, ciladas e dificuldades, no deserto árido e estéril; e, bendito seja o Seu nome para sempre, não quis que eles fossem sozinhos. Quis ser seu companheiro e participar de todos os seus perigos e dores; sim, "Ele foi adiante deles"; foi "guia, defesa, e glória, para os libertar de todo o temor". Mas, ah! como eles afligiram Aquele bendito Senhor com a sua dureza de coração! Tivessem ele caminhado humildemente, confiantes e alegres, com Ele, e a sua marcha teria sido vitoriosa desde o princípio ao fim. Com o Senhor adiante deles, nenhum poder podia ter interrompido a sua marcha triunfante desde o Egito a Canaã. O Senhor tê-los-ia levado e colocado de posse da Sua herança, segundo as Suas promessas, e pelo poder da Sua destra; nem um só cananeu teria sido deixado para ser um espinho para Israel. E assim acontecerá quando o Senhor estender a Sua mão, pela segunda vez, para libertar o Seu povo do poder de todos os seus opressores. Que o Senhor apresse esse tempo!

— CAPÍTULO 14 —

O MAR VERMELHO

Uma Situação sem Saída
"Os que descem ao mar em navios, mercando nas grandes águas, esses vêem as obras do SENHOR e as suas maravilhas no profundo" (SI 107:23-24).
Quão verdadeiras são estas palavras! E contudo como os nossos corações covardes têm horror a essas "grandes águas"! Preferimos os fundos baixos, e, por consequência, deixamos de ver "as obras" e "as maravilhas" do nosso Deus; pois estas só podem ser vistas e conhecidas "no profundo".
É nos dias de provação e dificuldades que a alma experimenta alguma coisa da bem-aventurança profunda e incontável de poder confiar em Deus. Se tudo fosse sempre fácil nunca se poderia fazer esta experiência. Não é quando o barco desliza suavemente à superfície do lago tranquilo que a realidade da presença do Mestre é sentida; mas sim, quando ruge o temporal e as ondas varrem a embarcação. O Senhor não nos oferece a perspectiva de isenção de provações e tribulações; pelo contrário, diz-nos que teremos tanto umas como as outras; porém, promete estar conosco sempre; e isto é muito melhor que vermo-nos livres de todo o perigo. A compaixão do Seu coração conosco é muito mais agradável do que o poder da Sua mão por nós. A presença do Senhor com os Seus servos fiéis, enquanto passavam pelo forno de fogo ardente, foi muito melhor do que a manifestação do Seu poder para os preservar dele (Dn 3). Desejamos com frequência ser autorizados a avançar na nossa carreira sem provações, mas isto acarretaria grave prejuízo. A presença do Senhor nunca é tão agradável como nos momentos de maior dificuldade.
Assim aconteceu no caso de Israel, como vemos neste capítulo. Encontram-se numa dificuldade esmagadora—foram chamados a mercadejar "mas grandes águas"; vêem esvair-se-lhes "toda a sua sabedoria" (Sl 107:27). Faraó, arrependido de os haver deixado sair do seu país, decide fazer um esforço desesperado para os trazer de novo. "E aprontou o seu carro e tomou consigo o seu povo; e tomou seiscentos carros escolhidos, e todos os carros do Egito, e os capitães sobre eles todos... E, chegando Faraó, os filhos de Israel levantaram seus olhos, e eis que os egípcios vinham atrás deles, e temeram muito; então, os filhos de Israel chamaram ao SENHOR" (versículos 6-10). Aqui estava uma cena no meio da qual o esforço humano era inútil. Tentar livrarem-se por qualquer coisa que pudessem fazer, era a mesma coisa que se tentassem fazer retroceder as ondas alterosas do oceano com uma palha. O mar estava diante deles, o exército de Faraó por detrás, e de ambos os lados estavam as montanhas; e tudo isto, note-se, havia sido permitido e ordenado por Deus. O Senhor havia escolhido o terreno para acamparem "diante de Pi-Hairote, entre Migdol e o mar, diante de Baal -Zefom". Depois, permitiu que faraó os alcançasse. E por quê1?- Precisamente para Se manifestar na salvação do Seu povo e na completa destruição dos seus inimigos. "Aquele que dividiu o Mar Vermelho em duas partes; porque a sua benignidade é para sempre. E fez passar Israel pelo meio dele; porque a sua benignidade é para sempre. Mas derribou a Faraó com o seu exército no Mar Vermelho, porque a sua benignidade é para sempre" (SI 136:13-15).

O Propósito de Deus
Não existe sequer uma posição em toda a peregrinação dos remidos de Deus cujos limites não hajam sido cuidadosamente traçados pela mão da sabedoria infalível e o amor infinito. O alcance e a influência peculiar de cada posição são calculados com cuidado. Os Pi-Hairotes e os Migdoles estão dispostos de maneira a estarem em relação com a condição moral daqueles que Deus está conduzin¬do através dos caminhos sinuosos e dos labirintos do deserto, e também para que manifestem o Seu próprio caráter. A incredulidade sugere com frequência esta pergunta: "Porque é isto assim £ Deus sabe; e, sem dúvida, revelará a razão, sempre que essa revelação promova a Sua glória e o bem do Seu povo. Quantas vezes somos tentados a perguntar porque e com que fim nos achamos nesta ou naquela circunstância! Quantas vezes ficamos perplexos quanto à razão de nos vermos expostos a esta ou àquela prova! Quão melhor seria curvarmos as nossas cabeças em humilde submissão, dizendo, "está bem", e"tudoacabará bem"! Quanto à Deus Quem determina a nossa posição, podemos estar certos que é uma posição sensata e salutar; e até mesmo quando nós, louca e obstinadamente, escolhe¬mos uma posição, o Senhor, em Sua misericórdia, domina a nossa loucura e faz com que as influências das circunstâncias da nossa própria escolha operem para nosso bem espiritual.
É quando os filhos de Deus se encontram nos maiores apertos e dificuldades que têm o privilégio de ver as mais preciosas manifes¬tações do caráter e da atividade de Deus; e é por esta razão que Ele os coloca fraquetemente numa situação de prova, a fim de poder mostrar-Se de um modo mais notável. O Senhor podia ter condu¬zido Israel através do Mar Vermelho para muito além do alcance das hostes de Faraó, muito antes que este houvesse saído do Egito, porém isto não teria glorificado inteiramente o Seu nome, nem teria confundido de uma maneira tão completa o inimigo, sobre o qual queria ser "glorificado" (versículo 17). Também nós perdemos muitas vezes de vista esta preciosa verdade, e o resultado é que os nossos corações fraquejam na horta da provação. Se tão somente pudéssemos encarar as crises graves como uma oportunidade de Deus pode mostrar, em nosso favor, a suficiência da graça divina, as nossas almas conservariam o seu equilíbrio, e Deus seria glorifi¬cado, até mesmo no profundo das águas.

A Incredulidade dos Israelitas e a Nossa
Talvez nos sintamos admirados com a linguagem de Israel na ocasião que estamos a considerar. Podemos ter dificuldade em a compreender; porém quanto mais conhecemos os nossos cora¬ções incrédulos, tanto mais compreendemos como somos maravilhosamente semelhantes a eles. Parece que haviam esquecido a recente manifestação do poder de Deus em seu favor. Haviam presenciado o julgamento dos deuses do Egito e visto o poder desse país abatido com o golpe da mão onipotente do Senhor. Haviam visto a mesma mão despedaçar as cadeias da escravidão do Egito e apagar os fornos de tijolo. Haviam visto todas estas coisas, e logo que aparece uma nuvem escura no horizonte a sua confiança é perdida e os seus corações fraquejam: e então pronunciam a sua incredulidade nestas palavras: "Não havia sepulcros no Egito, para nos tirares de lá... melhor nos fora servir aos egípcios do que morrermos neste deserto" (versículos 11 -12). É assim que a cega incredulidade erra sempre e esquadrinha em vão os caminhos de Deus. A incredulidade é a mesma em todos os tempos; é a mesma que levou David a dizer, um dia mau: "Ora, ainda algum dia perecerei pela mão de Saul; não há coisa melhor para mim do que escapar apressadamente para a terra dos filisteus" (1 Sm 27:1). E qual foi o resultado1?- Saul caiu na montanha de Gilboa; e o trono de David foi estabelecido para sempre. A incredulidade levou Elias, o tisbita, num momento de profundo abatimento, a fugir para salvar a sua vida das ameaças coléricas de Jezabel. E qual foi o resultado"? Jezabel morreu estatelada no solo, e Elias foi levado para o céu num carro de fogo.
O mesmo aconteceu com Israel no seu primeiro momento de provação. Pensaram verdadeiramente que o Senhor havia tanto trabalho para os libertar do Egito apenas para os deixar morrer no deserto.
Imaginavam que, se haviam sido preservados pelo sangue do cordeiro da páscoa, era apenas para que pudessem ser sepultados no deserto. Assim raciocina sempre a incredulidade; induz-nos a interpretar Deus em presença da dificuldade, em vez de inter¬pretar a dificuldade na presença de Deus. A fé coloca-se através da dificuldade e encontra Deus ali, em toda a Sua fidelidade, amor e poder. O crente tem o privilégio de estar sempre na presença de Deus: foi introduzido ali pelo sangue do Senhor Jesus Cristo, e nada que possa tirá-lo dali deve ser permitido.
Nunca poderá perder aquele próprio lugar, porquanto o seu chefe e representante, Cristo, o ocupa em seu nome. Porém, embora não possa perder esse lugar, pode perder, com muita facilidade, o gozo do lugar, a experiência e o poder de o possuir. Sempre que as dificuldades se interpõem entre o seu coração e o Senhor, não está, evidentemente, gozando a presença do Senhor, mas sofrendo em presença das suas dificuldades. O mesmo sucede quando uma nuvem se interpõe entre nós e o sol, privan-do-nos, por um pouco de tempo, da alegria dos seus raios de luz. A nuvem não impede que o sol brilhe, apenas impede gozarmos dele. Acontece precisamente assim sempre que permitimos que as provações e dores, as dificuldades e perplexidades, ocultem das nossas almas os raios resplandecentes do semblante do nosso Pai celestial, os quais brilham com fulgor invariável na face de Jesus Cristo.
Não existe dificuldade grande demais para o nosso Deus; pelo contrário, quanto maior é a dificuldade, tanto mais lugar há para Ele agir no Seu caráter de Deus de toda a graça e poder. Sem dúvida, a posição de Israel tal como se acha descrita nos primeiros versículos deste capítulo, era de grande provação—esmagadora para a carne e o sangue. Porém, a verdade é que o Criador dos céus e da terra estava ali, e eles apenas tinham que recorrer a Ele.
Contudo, prezado leitor, quão depressa falhamos quando chega a provação! Estes sentimentos soam agradavelmente aos ouvidos, e têm uma aparência agradável sobre o papel; e, graças a Deus, são divinamenteverdadeiros; porém, a questão mais importante é praticá-los quando chega a oportunidade. E quando são postos em prática que se pode experimentar o seu poder e a sua bem-aventurança. "Se alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina, conhecerá se ela é de Deus" (Jo7:17).

A Salvação do SENHOR
"Moisés, porém, disse ao povo: Não temais; estai quietos, e vede o livramento do SENHOR, que hoje vos fará: porque aos egípcios, que hoje vistes, nunca mais vereis para sempre. O SENHOR pelejará por vós e vós calareis" (versículos 13 -14). Eis aqui a atitude que a fé toma em face da provação: "estai quietos". Para a carne e o sangue isto é impossível. Todos os que conhecem, em alguma medida, a impaci¬ência do coração humano, ante a perspectiva de provações e aflições, poderão fazer uma ideia do que significa estar quieto. A nossa natureza quer fazer alguma coisa. E por isso correrá de um lado para o outro: quer ter parte na obra; e embora possa pretender justificar osseusatos desprezíveis, f azendo-os acompanhar do título pompo¬so e vulgar de emprego legítimo de meios, na realidade eles são apenas os frutos claros e positivos da incredulidade que sempre põe Deus de parte, e nada vê senão as nuvens escuras da sua própria criação. A incredulidade cria e aumenta as dificuldades, e, então, leva-nos a procurarmos vencê-las por meio das nossas atividades inúteis e precipitadas, as quais, na realidade, apenas lançam poeira em redor de nós, e assim nos impede de vermos a salvação de Deus. Pelo contrário, a fé eleva a alma acima das dificuldades até Deus, e habilita-nos a estarmos "quietos". Nada ganhamos com os nossos esforços impacientes e inquietos. "Não podemos fazer um cabelo branco ou preto, tão-pouco podemos juntar um côvado à nossa estatura" (Mt 5:36,6:27). Que poderia Israel fazer junto do Mar Vermelhou Podia secá-lo? Podia aplanar as montanhas?- Podia aniquilar as hostes do Egito1?- Impossível. Encontravam-se encerra¬dos dentro de um muro impenetrável de dificuldades, à vista do qual a natureza não podia fazer mais que tremer e sentir a sua completa impotência. Porém, para Deus era precisamente o momento de atuar. Quando a incredulidade é afastada da cena, Deus pode intervir; e, para podermos ver os Seus atos, nós temos de estar "quietos". Cada movimento da natureza é, com efeito, um impedimento para a nossa percepção e gozo da intervenção divina a nosso favor.


Permanecer Quietos e Ver a Salvação do SENHOR
Isto é verdadeiro a nosso respeito em cada fase da nossa história. E verdadeiro quando, como pecadores, sob o sentimento desconcertante que o pecado produz na consciência, somos tentados a recorrer aos nossos próprios feitos, com o fim de conseguirmos alívio. E então que, verdadeiramente, devemos estar "quietos" de forma a podermos ver "a salvação de Deus". Pois que poderíamos nós fazer no caso da expiação pelo pecado? Poderíamos nós ter estado com o Filho de Deus na cruz1?- Pode¬ríamos nós ter descido com Ele ao lago horrível e charco de lodoi (SI 40:2). Teríamos nós podido abrir caminho até essa rocha eterna sobre a qual, na ressurreição, Ele firmou os Seus pés? Todo o espírito reto reconhecerá imediatamente que um tal pensa¬mento seria uma atrevida blasfémia. Deus está só na redenção; e quanto a nós, só temos que "estar quietos e ver a salvação de Deus". O próprio fato de ser a salvação de Deus prova que o homem nada tem a fazer nela.
O preceito é verdadeiro a nosso respeito, uma vez que temos entrado na carreira cristã. Em cada nova dificuldade, quer seja pequena ou grande, a nossa sabedoria consiste que estamos quietos —renunciar às nossas próprias obras e achar o nosso doce repouso na salvação de Deus. Tampouco podemos estabelecer categorias entre as dificuldades. Não podemos dizer que há dificuldades tão insignificantes que podem ser evitadas por nós; ao passo que noutras nada senão a mão de Deus nos pode valer. Não, todas estão de igual modo fora do nosso alcance.
Somos tão incapazes de mudar a cor de um cabelo como de remover uma montanha, de formar uma folha de erva como de criar um mundo. Todas estas coisas são igualmente impossíveis para nós, e todas são igualmente possíveis para Deus. Portanto, devemo-nos abandonar, com fé sincera, Aquele "que se curva para ver o que está nos céus" (SI 113:6). Às vezes sentimo-nos transportados de uma maneira triunfante através das maiores provações, enquanto que noutras ocasiões desanimamos, trememos, e sucumbimos sob as circunstâncias normais da vida. E por quê? Porque no primeiro caso somos constrangidos a alijar o nosso fardo sobre o Senhor; enquan¬to que no último caso intentamos, loucamente, levá-lo nós própri¬os. O cristão é, em si próprio, se ele apenas o compreender, como um receptor esgotado, no qual uma moeda e uma pena têm o mesmo ímpeto.

O SENHOR é Quem Peleja
"O SENHOR pelejará por vós, e vos calareis".
Que bendita segurança! Quão própria para tranquilizar o espírito em face das dificuldades mais aterradoras e dos maiores perigos! O Senhor não só se coloca entre nós e os nossos pecados, como também entre nós e as nossas circunstâncias. No primeiro caso dá-nos paz de consciência; enquanto que no segundo dá paz aos nossos corações. Estas duas coisas são perfeitamente distintas, como muito bem sabe todo o cristão experimentado. Muitos têm paz de consciência, sem terem paz de coração. Acharam, pela graça e mediante a fé, Cristo, na eficácia divina do Seu sangue, entre eles e todos os seus pecados; mas não podem, do mesmo modo simples, vê-Lo na Sua sabedoria, amor e poder, entre eles e as suas circuns¬tâncias. Disto resulta uma diferença essencial na condição prática das suas almas, bem como no caráter do seu testemunho. Nada pode contribuir tanto para glorificar o nome de Deus como aquele repouso tranquilo de espírito que dimana do fato de O termos entre nós e tudo que pode ser causa de ansiedade para os nossos corações. "Tu conservarás em paz aquele cuja mente está firme em ti; porque ele confia em ti" (Is 26:3).
Mas, pode perguntar-se, não devemos fazer nada? A resposta pode ser dada com outra pergunta, a saber: que podemos nós fazer1?-Todos os que realmente se conhecem têm de responder: Nada. Se, portanto, nada podemos fazer, não será melhor que permaneça¬mos "quietos?" Se o Senhor está atuando por nós não será melhor ficarmos detrás d'Ele? Correremos adiante d'Ele? Devemos im¬portunar com a nossa atividade a Sua esfera de ação e intrometermo-nos no Seu caminhou É inútil que dois trabalhem quando um só é competente para fazer tudo. Ninguém pensaria em trazer uma vela acesa par acrescentar brilho ao sol do meio-dia: e todavia o homem que tal fizesse podia ser tido na conta de sábio em comparação com aquele que pretende ajudar Deus com a sua atividade precipitada.

A Ordem de Deus para Marchar
Contudo, quando Deus, na Sua muita misericórdia, abre o caminho, a fé pode andar nele; então deixa o caminho do homem, para nadar no caminho de Deus.
"Então, disse o SENHOR a Moisés-. Por que clamas a mim4 Dize aos filhos de Israelque marchem" (versículo 15). É quando aprendemos a estar "quietos" que podemos, efetivamente, ir para diante. Tentar ir para diante sem termos aprendido a estar "quietos" é ter a certeza de cairmos no ridículo da nossa loucura e fraqueza. E, portanto, verdadeira sabedoria, emtodasas ocasiões de dificuldade e perplexi¬dade, permanecermos tranquilos—esperando unicamente em Deus, que certamente nos abrirá um caminho; e então poderemos "mar¬char" em paz e tranquilidade. Não existe a incerteza quando é Deus quem nos abre o caminho; pelo contrário, todo o caminho de nossa própria invenção será um caminho de dúvida e hesitação. O homem natural pode avançar, com certa aparência de firmeza e decisão, no seu próprio caminho; porém, um dos elementos da nova natureza é a desconfiança em si própria, em contraste com a confiança emDeus como seu próprio elemento. É quando os nossos olhos têm visto a salvação de Deus que podemos seguir este caminho; contudo não poderemos vê-lo claramente antes de sermos convencidos da inuti¬lidade dos nossos próprios e fracos esforços.
A expressão "verei a salvação de Deus" encerra beleza e força peculiar. O próprio fato de sermos chamados para ver a salvação de Deus é prova de que a salvação está completa. Ensina-nos que a salvação é uma obra realizada e revelada por Deus, para ser vista e gozada por nós. Não é uma obra em parte de Deus e em parte do homem. Se fosse assim, não poderia ser chamada a salvação de Deus. Para poder ser chamada a salvação de Deus é preciso que seja desprovida de tudo que pertence ao homem. O único efeito possível dos esforços humanos será obscurecer aos nossos olhos a salvação de Deus.
"Dize aos filhos de Israel que marchem".
O próprio Moisés parece ter ficado perplexo, como se depreende da interrogação "Por que clamas a mim?" Moisés podia dizer ao povo "estai quietos e vede o livramento do SENHOR", enquanto o seu próprio espírito clamava a Deus angustiado. Todavia, de nada vale clamar quando devemos atuar; do mesmo modo que de nada servirá atuar quando devemos estar em expectativa. E contudo tal é sempre o nosso método. Intentamos avançar quando devemos estar quie¬tos, e ficamos quietos quando devemos avançar. No caso de Israel, podia perguntar-se: "Para onde devemos ixí" Segundo as aparênci¬as, havia uma barreira instransponível no caminho a qualquer movimento. Como poderiam eles atravessar o mar1?- Esta era a dificuldade que a natureza jamais poderia resolver. Contudo, pode¬mos estar certos que Deus nunca dá um mandamento sem, ao mesmo tempo, comunicar o poder para lhe obedecermos. O verda¬deiro estado do coração pode ser posto à prova pelo mandamento; porém a alma que, pela graça, estiver disposta a obedecer receberá poder do alto para o fazer. Quando Cristo mandou ao homem com a mão mirrada que a estendesse, ele poderia naturalmente ter dito: "Como posso eu estender um braço que está morto para mim?" Contudo, ele não levantou nenhuma objeção, porque com o man¬damento, e da mesma origem, veio o poder para obediência.

Deus Abre o Caminho para a Fé
Assim, também, no caso de Israel, vemos que com o mandamen¬to para marcharem veio o suprimento da graça. "E tu, levanta a vara, e estende a tua mão sobre o mar, e fende-o, para que os filhos de Israel passem pelo meio do mar em seco" (versículo 16). Eis aqui a senda da fé. A mão de Deus abre o caminho para podermos dar o primeiro passo, e isto é tudo que a fé sempre precisa. Deus não dá nunca direção para dois passos ao mesmo tempo. Devemos da um passo, e então recebemos luz para o segundo. Deste modo o coração é mantido em permanente dependência de Deus. "Pela fé, passaram o Mar Vermelho, como por terra seca" (Hb 11:29). E evidente que o Mar não foi dividido em toda a sua extensão de uma só vez. Se assim tivesse sido, eles teriam sido conduzidos "por vista" e não "por f é". Não é preciso fé para se empreender uma viagem quando se vê o caminho em toda a sua extensão; mas é necessária fé para alguém se pôr ao caminho quando não vê mais do que o primeiro passo. O Mar divida-se à medida que Israel avançava, de forma que, para cada novo passo, eles dependiam de Deus. Tal era o caminho por onde marchavam os remidos do Senhor, guiados pela Sua mão. Passaram pelas grandes águas da morte e descobriram que estas águas "foram-lhes como muro à sua direita e à sua esquerda" (versículo 22).
Os egípcios não puderam avançar num caminho como este. Entraram nele porque o viram aberto — para com eles era uma questão de vista e não de fé — "...o que intentando os egípcios se afogaram" (Hbll:29).Quandoas pessoas tentam fazer aquilo que só a fé pode conseguir, encontram a derrota e a confusão. O caminho pelo qual Deus faz marchar o Seu povo é um caminho que nunca pode ser trilhado pela natureza — "... carne e sangue não podem herdar o Reino de Deus" (1 Co 15:50); tampouco podem caminhar pelo caminho de Deus. A f é é a grande regra característica do reino de Deus, e é só pela fé que podemos andar nos caminhos de Deus. "Sem fé é impossível agradar a Deus" (Hb 11:6). Deus égrandemen-te glorificado quando avançamos com Ele com os olhos vendados, por assim dizer, porque esta é a prova de que temos mais confiança na Sua vista do que na nossa. Se sei que Deus vela por mim, posso muito bem cerrar os olhos e avançar em santa calma e segurança. Nas ocupações humanas sabemos que quando a sentinela está no seu posto, os outros podem dormir tranquilos. Quanto melhor podemos nós descansarem perfeita segurança quando sabemos que Aquele que não tosqueneja nem dorme tem o Seu olhar fixo em nós (SI 121:4) e os Seus braços eternos em volta de nós!

O Anjo de Deus e a Coluna de Nuvem
"E o Anjo de Deus, que ia diante do exército de Israel, se retirou, e ia atrás deles; também a coluna de nuvem se retirou diante deles e se pôs atrás deles. E ia entre o campo dos egípcios e o campo de Israel; e a nuvem era escuridade para aqueles e para estes esclarecia a noite; de maneira que em toda a norte não chegou um ao outro" (versículos 19- 20). O Senhor colocou-Se exatamente entre Israel e o inimigo—isto era verdadeira proteção. Antes que Faraó pudesse tocar num cabelo da cabeça de Israel, teria que atravessar o pavilhão doTodo-Poderoso —, sim, o PróprioTodo-Poderoso. É assim que Deus sempre Se interpõe entre o Seu povo e todo o inimigo, de forma que "toda a ferramenta preparada contra" eles "não prosperará" (Is 54:17). Ele pôs-Se entre nós e os nossos pecados, e é nosso privilégio encontrá-Lo entre nós e todo aquele ou coisa que possa ser contra nós. Este é o único meio de encontrarmos tanto a paz de coração como a paz de consciência. O crente pode buscar os seus pecados com ansiedade e diligência sem conseguir encontrá-los. Por quê? Porque Deus está entre ele e os seus pecados. O Senhor lançou para trás das Suas costas todos os nossos pecados; enquanto que, ao mesmo tempo, faz brilhar sobre nós a luz do Seu semblante.
Da mesma maneira, o crente pode buscar as suas dificuldades, e não as encontrar, porque Deus está entre ele e as dificuldades. Se, portanto, em vez de nos determos com os nossos pecados e as nossas dores, nos apoiássemos somente em Cristo, o cálice amargoso seria adoçado e muitas horas negras seriam iluminadas. A verdade é que muitas vezes descobrimos que nove décimos das nossas dores e provações se compõem de males antecipados ou imaginários, que só existem no nosso espírito desordenado, porque é incrédulo. Deus permita que o leitor conheça a paz inabalável tanto do coração como da consciência, que resulta de ter a Cristo, em toda a Sua plenitude, entre si e todos os seus pecados e todas as suas dores.
É, ao mesmo tempo, solene e interessante notar o aspecto duplo da "coluna de nuvem", neste capítulo. E a nuvem era escuridão para os egípcios, mas para Israel "esclarecia a noite". Que semelhança com a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo! Verdadeiramente, essa cruz tem, do mesmo modo, um duplo aspecto. Constitui a base da paz do crente; e, ao mesmo tempo, sela a condenação de um mundo culpado. O mesmíssimo sangue que purifica a consciência do crente e lhe dá paz mancha este mundo e consuma o seu pecado. A mesmíssima missão do Filho de Deus, que despojou o mundo da sua capa e o deixa inteiramente sem desculpa, veste a Igreja de um manto formoso de justiça e enche a suaboca de louvor incessante. O próprio Cordeiro de Deus que encherá de terror, com a grandeza da Sua ira, todas as tribos e povos da terra, conduzirá pela Sua mão bondosa o rebanho que comprou com o Seu precioso sangue através de verdes pastos e a águas tranquilas (comparem-se Ap 6:15 -17 com 7:17).

Israel Vitorioso e o Exército de Faraó Destruído
O fim do nosso capítulo mostra-nos Israel vitorioso nas praias do Mar Vermelho e o exército do Faraó submergido nas suas águas. Os temores dos israelitas e a jactância dos egípcios eram igualmente desprovidos de fundamento. A obra gloriosa do Senhor havia destruído tanto uns como os outros. As mesmas águas que serviram de muro aos remidos de Deus, serviram de sepultura para Faraó. É sempre assim: aqueles que andam por fé acham um caminho por onde transitar, ao passo que todos aqueles que tentam imitá-los encontram uma sepultura. Trata-se de uma verdade solene, que não é, de modo nenhum, diminuída pelo fato que Faraó atuava em hostilidade declarada e positiva contra Deus quando intentou atravessar o Mar Vermelho. Descobrir-se-á sempre a verdade que todos aqueles que intentam imitar as obras da fé serão confundidos. Felizes daqueles que, embora fracos, podem andar por fé. Seguem por um caminho de bem-aventurança inf lável—um caminho que, embora possa ser marcado por falhas e fraquezas, é, todavia, come¬çado, prosseguido e acabado com Deus. Possamos nós entrar mais e mais na realidade divina, calma elevação e santa independência desta senda.
Não devemos deixar esta parte do Livro do Êxodo sem nos referirmos à passagem da 1 Epístola aos Coríntios 10:1-2, em que se faz referência à nuvem e ao mar.
"Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem; e todos passaram pelo mar; e todos foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar". Esta passagem encerra a instrução preciosa e profunda para o cristão, pois que o apóstolo continua, dizendo: "E essas coisas foram-nos feitas em figura" (versículo 6), dando-nos assim autorização divina para interpretar¬mos o batismo de Israel "na nuvem e no mar" de uma maneira simbólica; e nada, seguramente, pode ter uma significação mais profunda e prática. Foi como povo batizado desta maneira que os israelitas empreenderam a sua peregrinação através do deserto, para qual foi feita provisão de "um manjar espiritual" e "uma mesma bebida espiritual" pela mão d'Aquele que é amor. Em suma: era simbolicamente um povo morto para o Egito e tudo que lhe dizia respeito. A nuvem e o mar foram para eles aquilo que a cruz e a sepultura de Cristo são para nós. Anuvem punha-os ao abrigo dos seus inimigos e o mar separava-os do Egito—da mesma maneira, a cruz protege-nos de tudo que podia ser contra nós, e nós achamo-nos do lado celestial da sepultura de Jesus. É aqui que começa a nossa peregrinação através do deserto. E aqui que começamos a saborear o maná celestial e abeber das correntes que brotam da "rocha espiritual", enquanto que, como povo de peregrinos, caminhamos para a terra do repouso da qual Deus nos tem falado.
Desejo aqui chamar a atenção do leitor para a importância de compreender a diferença entre o Mar Vermelho e o Jordão. Os dois acontecimentos têm o seu antítipo na morte de Cristo. Porém, no primeiro vemos separação do Egito; no último vemos introdução na terra de Canaã. O crente não somente está separado deste presente século mau, por meio da cruz de Cristo, como foi vivifi¬cado da sepultura de Cristo, ressuscitado juntamente com Ele e assentado nos lugares celestiais, em Cristo (Ef 2:5-6). Por isso, ainda que esteja rodeado pelas coisas do Egito, ele encontra-se, quanto à sua experiência atual, no deserto; enquanto que, ao mesmo tempo, é levado pela energia da fé àquele lugar onde Jesus está sentado à destra de Deus. Assim, o crente não só é perdoado de todos os seus pecados, como está associado com Cristo ressuscitado nos céus: não só é salvo por Cristo, como está unido a Ele para sempre. Nada menos do que isto podia satisfazer o amor de Deus ou realizar os Seus propósitos a respeito da Igreja.
Prezado leitor, compreendemos nós estas coisas? Acreditamo-las? Manifestamos o poder delas?- Bendita a graça que as tornou invariavel¬mente certas para cada membro do corpo de Cristo, quer seja só um olho, uma pálpebra, uma mão ou umpé. A verdade destas coisas não depende, portanto, da sua manifestação por nós, nem de as realizar-mos ou compreendermos, mas, sim, do "PRECIOSO SANGUE DE CRISTO", que cancelou toda a nossa culpa e lançou o fundamento de todos os desígnios de Deus a nosso respeito. Eis descanso verda¬deiro para todo o coração quebrantado e toda a consciência sobrecarregada.


— CAPÍTULO 15 —

UM CÂNTICO DE VITÓRIA

O Louvor que Segue a Libertação
Este capítulo abre com o cântico magnífico de vitória de Israel nos bancos do Mar Vermelho, quando viu "a grande mão que o SENHOR mostrara aos egípcios" (capítulo 14:31). Haviam visto a salvação de Deus e, portanto, entoaram os Seus louvores e narraram as Suas obras maravilhosas. "Então, cantou Moisés e os filhos de Israel este cântico ao SENHOR" . Até este momento não temos ouvido nem sequer uma só nota de louvor. Ouvimos o seu clamor angus¬tioso, enquanto labutavam nos fornos de tijolo do Egito, escutámos o seu brado de incredulidade, quando se viram rodeados por aquilo que lhes parecia serem dificuldades insuperáveis; mas, até agora, não ouvimos nenhum cântico de louvor. Foi só quando, como um povo salvo, se acharam rodeados pelos frutos da salvação de Deus que o hino triunfal irrompeu de toda a congregação redimida. Foi quando saíram do seu batismo "na nuvem e no mar", e puderam contemplar os ricos despojos da vitória, que se achavam espalhados à sua volta, que milhares de vozes se ouviram entoando o cântico da vitória. As águas do Mar Vermelho corriam entre eles e o Egito, e eles achavam-se na costa como povo inteiramente libertado; e, portanto, puderam louvar o Senhor.

A Redenção e o Culto
Nisto, como em tudo o mais, eles foram figuras de todos nós. Nós precisamos de saber que estamos salvos, no poder da morte e ressurreição, antes de podermos prestar a Deus culto claro e inteligente. Haverá sempre na alma reserva e hesitação, provenientes, sem dúvida, da sua incapacidade em compreender a reden¬ção que há em Cristo Jesus. Pode haver o reconhecimento do fato que há salvação em Cristo Jesus, e em nenhum outro; porém compreender, pela fé, o verdadeiro caráter e fundamento dessa salvação, realizando-a como nossa, é coisa muito diferente. O Espírito de Deus revela, com clareza inconfundível, na Palavra de Deus, que a Igreja está unida a Cristo na morte e ressurreição; e, demais, que Cristo ressuscitado e assentado à destra de Deus é a medida e o penhor da aceitação da Igreja. Quando se crê isto, a alma é transportada para lá das regiões da dúvida e incerteza. Como pode o crente duvidar quando sabe que é representado continua¬mente diante do trono de Deus por um advogado, Jesus Cristo, o Justo1?- É privilégio até do mais fraco dos membros da Igreja de Deus saber que foi representado por Cristo na cruz, e que todos os seus pecados foram confessados, levados, julgados e expiados ali. É uma realidade divina, que, quando aceite pela fé, dá a paz. Mas nada menos que isto pode jamais dar paz. Pode existir o desejo mais sincero, ardente, ansioso e verdadeiro de Deus; poderão observar-se pia e devotadamente todas as ordenações, deveres e práticas da religião, mas o único meio de libertar a consciência do sentido do pecado é vê-lo julgado na pessoa de Cristo, oferecendo-Se uma vez como sacrifício pelo pecado na cruz de maldição. Se o pecado foi ali julgado uma vez para sempre, o crente deve, portanto, considerá-lo, agora, como uma questão divinamente e eternamente arrumada. E que a questão do pecado foi assim julgada está provado pela ressur¬reição do nosso Substituto. "Eu sei que tudo quanto Deus faz durará eternamente; nada se lhe deve acrescentar, e nada se lhe deve tirar. E isso faz Deus para que haja temor diante dele" (Ec 3:14).
Contudo, enquanto é admitido em geral que tudo isto é verdadeiro quanto à Igreja coletivamente, muitos têm grande dificuldade em fazer a sua aplicação pessoal. Estão prontos a dizer com o Salmista: "Verdadeiramente bom é Deus para com Israel, para com os limpos de coração. Quanto a mim..." (SI 73:1- 2). Olham para si, em vez de olharem para Cristo na morte e Cristo na ressurreição. Estão mais ocupados com a apropriação de Cristo do que com Cristo Mesmo. Pensam na sua capacidade em vez de pensarem nos seus privilégios. São retidos num estado de incerte¬za inquietante; e, por conseguinte, nunca podem tomar o lugar de adoradores ditosos e inteligentes. Oram por salvação em vez de se regozijarem na possessão consciente dela. Olham para os seus frutos imperfeitos em vez de contemplarem a perfeita expiação de Cristo.
Bom, examinando as várias notas deste cântico, no capítulo 15 de Êxodo, não encontramos uma nota sequer acerca do ego nem dos seus feitos: tudo se refere ao Senhor desde o princípio ao fim. Começa assim: "Cantarei ao SENHOR, porque sumamente se exal¬tou; lançou no mar o cavalo e o seu cavaleiro". Isto é uma amostra de todo o cântico. É um simples relato dos atributos e obras do Senhor. No capítulo 14 os corações dos israelitas haviam sido, com efeito, encurralados sob a pressão excessiva das circunstâncias; porém no capítulo 15 essa pressão é tirada, e os seus corações encontram plena saída num suave cântico de louvor. O ego é esquecido; as circunstâncias são perdidas de vista, e um só objeto enche a sua visão, e esse é o Próprio Senhor no Seu caráter e em Suas obras. Assim eles puderam dizer: "Pois tu, SENHOR, me alegraste com os teus feitos; exultarei nas obras das tuas mãos" (SI 92:4). Isto é culto verdadeiro. É quando o pobre ego, com tudo quanto lhe pertence, é perdido de vista e somente Cristo enche os nossos corações, que podemos oferecer a Deus culto verdadeiro. Os esforços de uma piedade carnal não são precisos para despertar na alma sentimentos de devoção. Não temos necessidade nenhuma de recorrer à pretendida ajuda da religião, assim chamada, para inflamar na alma a chama do culto aceitável a Deus. Ah! Não; deixai que o coração esteja ocupado somente com a Pessoa de Cristo, e os "cânticos de louvor" serão a consequência natural. É impossível que o olhar esteja fixado n'Ele sem que o espírito se curve em santa adoração. Se contemplarmos o culto dos exércitos celestiais, que rodeiam o trono de Deus e do Cordeiro, veremos que é sempre acompanhado da apresentação de algum traço especial das perfeições ou obras divinas. Assim deveria ser com a Igreja na terra; e quando é de outra maneira, é porque nos deixamos vencer por coisas que não têm lugar nas regiões da clara luz e da pura bem-aventurança.

Deus: o Único Propósito do Louvor
Em todo o culto verdadeiro, Deus é ao mesmo tempo o objeto do culto, o assunto do culto, e o poder do culto.
Por isso neste capítulo de Êxodo encontra-se um belo exemplo de um cântico de louvor. É a linguagem de um povo redimido celebrando os louvores dignos d'Aquele que os redimiu.
"O SENHOR é a minha força e o meu cântico; ele me foi por salvação; este é o meu Deus; portanto, lhe farei uma habitação; ele é o Deus de meu pai; por isso o exaltarei. O SENHORÓ varão de guerra; SENHOR é o seu nome... A tua destra, ó SENHOR, se tem glorificado em potência; a tua destra, ó SENHOR, tem despedaçado o inimigo... O SENHOR, quem é como tu entre os deuses1?- Quem é como tu glorifi¬cado em santidade, terrível em louvores, operando maravilhas?-... Tu, com a tua beneficência, guiaste este povo, que salvaste; coma tua força o levaste à habitação da tua santidade... O SENHOR reinará eterna e perpetuamente".
Quão compreensiva é a extensão deste cântico! Começa com a redenção e termina com a glória'. Principia com a cruz, e termina com o reino. É parecido com um belo arco-íris, do qual uma extremidade mergulha nos "sofrimentos" e a outra na "glória que se lhes seguiu" (1 Pe 1:11). Tudo se refere ao Senhor. É o derrama¬mento da alma produzido pela contemplação de Deus e das suas obras maravilhosas.
Além disso, o cântico não pára com o cumprimento dos desíg¬nios de Deus, visto que lemos: "Com a tua beneficência guiaste este povo..., com a tua força o levaste à habitação da tua santidade". O povo podia dizer isto, embora acabasse apenas de pôr os seus pés nas margens do deserto. Não era uma expressão de uma vaga esperança. Tampouco era aproveitar uma escura oportunidade. Ah! não; quando a alma está inteiramente ocupada com Deus pode espraiar-se na plenitude da Sua graça, gozar da proteção da luz do Seu rosto, e deleitar-se na rica abundância das Suas misericórdias e da Sua bondade. As perspectivas que se abrem ante a alma estão livres de nuvens, quando ela, tomando o seu lugar sobre a rocha eterna em que o amor redentor se associou com um Cristo ressuscitado, contempla a abóbada espaçosa dos planos e propósitos infinitos de Deus e fixa o olhar no esplendor dessa glória que Deus preparou para todos aqueles que lavaram e branquearam os seus vestidos no sangue do Cordeiro.
Isto explica-nos o caráter peculiarmente brilhante e elevado desses rasgos de louvor que encontramos através das páginas da Sagrada Escritura. A criatura é posta de parte; Deus é o único objeto e enche toda a esfera da visão da alma. Nada há ali que pertença ao homem, nem aos seus pensamentos ou às suas experiências; e, portanto, a corrente de louvor corre copiosa e ininterruptamente. Quão diferente é tudo isto dos hinos que frequentemente ouvi¬mos cantar nas reuniões cristãs, tão repletos das nossas faltas, das nossas fraquezas e das nossas deficiências! O fato é que nunca poderemos cantar com verdadeira inteligência espiritual e poder enquanto nos contemplarmos a nós próprios. Descobriremos sempre qualquer coisa em nós que será um obstáculo para o nosso culto. De fato, muitos parecem crer que estar num estado de dúvida e hesitação é uma graça cristã; e, como resultado, os seus hinos são do mesmo caráter da sua condição espiritual. Estas pessoas, por muito sinceras e piedosas que possam ser, nunca, na verdadeira experiência das suas almas, compreenderam o própio fundamento do culto. Ainda não puseram de parte o ego; não atravessaram ainda o mar; e, não tomaram ainda o seu lugar, como um povo espiritualmente batizado, na outra margem, no poder da ressurreição. Estão ainda, de um modo ou de outro, ocupadas consigo: não consideram o ego como uma coisa crucificada, com a qual Deus acabou para sempre.
Que o Espírito Santo leve o povo de Deus a uma compreensão mais clara, plena, e digna do seu lugar e privilégios, como aqueles que, havendo sido lavados dos seus pecados no sangue de Cristo, são apresentados diante de Deus naquela aceitação infinita e pura em que Ele está, como Chefe ressuscitado e glorificado da Sua Igreja. As dúvidas e os temores não são próprios dos filhos de Deus, porque o seu divino penhor não deixou sombra de dúvidas, para que haja suspeita de temor. O seu lugar é no santuário. Têm "ousadia para entrar no santuário, pelo sangue de Jesus" (Hb 10:19). Acaso podem existir dúvidas ou temores no santuário"? Não é evidente que aquele que duvida põe a perfeição da obra de Cristo — obra que foi confirmada, à vista da inteligência, pela ressurreição de Cristo de entre os mortos'?- O bendito Senhor não podia ter deixado a sepultura sem que todo o motivo de dúvida e de temor para o Seu povo tivesse sido inteiramente removido. Por esse motivo, é doce privilégio do cristão exultar na salvação completa. O próprio Senhor é a sua salvação, e ele tem apenas que gozar os frutos da obra que Deus fez por ele, e andar para Seu louvor enquanto espera pelo tempo em que "O SENHOR reinará eterna e perpetuamente".
Existe uma nota neste cântico para a qual desejo chamar a atenção do leitor: "...este é o meu Deus; portanto, lhe farei uma habitação" (versículo 2). É um fato digno de notar que quando o coração transborda da alegria da redenção, então expressa o propó¬sito de se consagrar referente à habitação fará Deus.
Que o cristão pondere isto. O pensamento de Deus habitar com os homens acha-se nas Escrituras desde Êxodo, capítulo 15, ao Apocalipse. Escutemos a linguagem de um coração consagrado: "Certamente, que não entrarei na tenda em que habito, nem subirei ao leito em que durmo, não darei sono aos meus olhos, nem repouso às minhas pálpebras, enquanto não achar lugar para o SENHOR, uma morada para o Poderoso de Jacó" (SI 132:3 - 5). "Pois o zelo da tua cada me devorou, e as afrontas dos que te afrontam caíram sobre mim" (SI 69:9; Jo 2:17). Não pretendo tratar deste assunto aqui; porém, gostaria de despertar interesse por ele no coração do leitor, para que o estudasse, por si mesmo, com oração, desde a primeira vez que o encontramos nas Escrituras até chegar àquela consoladora declaração: "Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus. E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima"(Ap 21:3-4).

A Partida para o Deserto
"Depois, fez Moisés partir os israelitas do Mar Vermelho, e saíram ao deserto de Sur, e andaram três dias no deserto; e não acharam águas" (versículo 22). E quando entramos na experiência do deserto que somos postos à prova, a fim de que se manifeste até que ponto conhecemos Deus e o nosso próprio coração. O princípio da nossa vida cristã é acompanhado por uma vivacidade e de um gozo exuberantes, que logo as rajadas de vento do deserto procuram deter; e então, a não ser que haja um profundo sentimento daquilo que Deus é para nós, acima e além de tudo mais, sentimo-nos desfalecer, e em nossos corações tornamos ao Egito (At 7:39). A disciplina do deserto é necessária, não para nos dar o direito a Canaã, mas para nos tornar familiarizados com Deus e os nossos próprios corações, para nos habilitar a compreendermos o poder do nosso parentesco e para nos dar capacidade para gozarmos da terra de Canaã, quando lá chegarmos (veja-se Dt 8:2 - 5).
A verdura, a frescura e a exuberância da primavera têm atrativos peculiares, os quais desaparecem perante o calor abrasador do verão; porém, com os devidos cuidados, este mesmo calor que destrói os traços esplêndidos da primavera, produz os frutos maduros e sazona¬dos do outono. O mesmo acontece na vida cristã; pois existe, como sabemos, uma analogia notável e profundamente instrutiva entre os princípios que regem o reino da natureza e aqueles que caracterizam o reino da graça, sendo uns e outros obra do mesmo Deus.
Podemos contemplar Israel sob três posições distintas, a saber: no Egito, no deserto, e na terra de Canaã. Em todas estas posições, eles são "nossas figuras"; enquanto que nós nos achamos nas três ao mesmo tempo. De fato, nós encontramo-nos, por assim dizer, no Egito, rodeados de coisas da natureza, que se adaptam perfeitamente ao coração natural. Todavia, porquanto fomos chamados pela graça de Deus à comunhão de Seu Filho Jesus Cristo, nós, segundo os afetos e desejos da nova natureza, encontramos, necessariamente, o nosso lugar fora de tudo que pertence ao Egito (*) (o mundo no seu estado natural), e isto f az-nos passar pelas experiências do deserto, ou, por outras palavras, põe-nos, quanto à experiências, no deserto.
A natureza divina suspira ardentemente por uma ordem de coisas diferentes — por uma atmosfera mais pura do que aquela que nos rodeia, e desta forma faz-nos sentir que o Egito é como um deserto moral. Porém, visto que estamos, aos olhos de Deus, eterna¬mente ligados Aquele que penetrou nos céus, e se assentou à destra da Majestade, é nosso privilégio saber, pela fé, que estamos assen¬tados com Ele ali (Ef 2:6). De forma que, apesar de estarmos, quanto aos nossos corpos, no Egito, quanto à nossa experiência estamos no deserto, enquanto que, ao mesmo tempo, a fé nos conduz a Canaã e habilita-nos a alimentarmo-nos "do trigo da terra do ano antece¬dente" Os 5:11), isto é, de Cristo, como Aquele que não somente veio à terra, mas que voltou para o céu e Se assentou ali em glória.

Mara: as Águas Amargas
Os versículos finais deste capítulo mostram-nos Israel no deser¬to. Até aqui parece que tudo lhes havia corrido bem. Terríveis j uízos haviam caído sobre o Egito, mas Israel fora perfeitamente excluído; o exército do Egito jazia morto nas praias do mar, mas Israel estava em triunfo. Tudo isto era bastante; mas, enfim, o aspecto das coisas depressa mudou! Os hinos de louvor foram depressa substituídos pelas palavras de descontentamento. "Então, chegaram a Mara; mas não puderam beber as águas de Mara, porque eram amargas: por isso, chamou-se o seu nome Mara. E o povo murmurou contra Moisés, dizendo: Que havemos de bebera (versículos 23 a 24).
"E toda a congregação dos filhos de Israel murmurou contra Moisés e contra Arão no deserto. E os filos de Israel disseram-lhes:
Quem dera que nós morrêssemos pela mão do SENHOR na terra do Egito, quando estávamos sentados junto às panelas de carne, quando comíamos pão até fartar! Porque nos tendes tirado para este deserto, para matardes de fome a toda esta multidão (capí¬tulo 16:2-3).
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(¹) Existe uma grande diferença moral entre o Egito e Babilónia, que é importante conhecer. O Egito foi o país de onde veio o povo de Israel; Babilónia foi a terra para onde eles foram deportados mais tarde (comparem-se Am 5:25- 27 com At 7:42-43). O Egito significa aquilo que o homem fez do mundo; Babilónia expressa o que Satanás tem feito, faz ou fará da Igreja professa. Por isso, não estamos apenas rodeados das circunstâncias do Egito, como também pelos princípios morais de Babilônia.
Isto faz dos nossos "tempos" o que o Espírito Santo considera "trabalho¬sos"—difíceis. São necessárias a energia do Espírito de Deus e uma sujeição completa à autoridade da Palavra de Deus para se poder enfrentar a influência combinada das realidades do Egito e o espírito e os princípios de Babilónia. Aquelas satisfazem os desejos naturais do coração; enquanto que estes se ligam e dirigem à religiosidade da natureza, que lhes dá um acolhimento peculiar no coração. O homem é um ente religioso e peculiarmente susceptível das influências da música, da escultura, da pintura, ritos pomposos e cerimónias. Quando estas coisas se acham ligadas com o suprimento das necessidades naturais—sim, com a facilidade e a luxúria da vida, nada senão o poder da Palavra de Deus e do Espírito pode manter alguém fiel a Cristo.
Devemos notar também que existe uma grande diferença entre os destinos do Egito e os de Babilónia. O capítulo 19 de Isaías apresenta-nos as bênçãos que estão guardadas para o Egito. Esta é a conclusão: "E ferirá o SENHOR aos egípcios e os curará; e converter-se-ão ao SENHOR, e mover-se-á às suas orações, e os curará: ...Naquele dia, Israel será o terceiro com os egípcios e os assírios, uma bênção no meio da terra. Porque o SENHOR dos Exércitos os abençoará, dizendo: Bendito seja o Egito, meu povo, e a Assíria, obra de minhas mãos, e Israel, minha herança" (versículos 22-25).
O fim da história da Babilónia é muito diferente quer o encaremos como uma cidade literal ou um sistema espiritual. "E reduzi-la-ei a possessão de corujas e a lagoas de águas; e varrê-la-ei com vassoura de perdição, diz o SENHOR dos Exércitos" (Is 14:23). "Nunca mais será habitada, nem reedificada de geração em geração" (Is 13:20). Isto quando a Babilónia, literalmente; sob o ponto de vista místico ou espiritual vemos o seu destino em Apocalipse, capítulo 18. Esse capítulo é uma descrição de Babilónia, e termina com estas palavras: "E um forte anjo levantou uma pedra como uma grande mó e lançou-a no mar, dizendo: Com igual ímpeto será lançada Babilónia, aquela grande cidade, e não será jamais achada" (versículo 21).
Com que imensa solenidade deveriam essas palavras soar aos ouvidos de todos aqueles que estão ligados, de qualquer modo, com Babilónia—isto é, com a Igreja professa. "Sai dela, povo meu, para que não sejas participante dos seus pecados e para que não incorras nas suas pragas" (Ap 18:4). O "poder" do Espírito Santo operará necessariamente ou expressar-se-á numa certa "forma" de piedade, e o alvo do inimigo tem sido sempre defraudar a Igreja professa do poder, ao mesmo tempo que a induz a apoiar-se na forma e a perpetuá-la—a imprimir a forma depois de todo o espírito e a vida haverem desaparecido. É assim que ele edifica a Babilónia espiritual. As pedras com que esta cidade é edificada são os professos sem vida espiritual; e o martelo com que ele liga essas pedras é "a forma de piedade sem poder".
Oh! prezado leitor, certifiquemo-nos de que compreendemos estas coisas plena e claramente.

Eis aqui as provações do deserto. "Que havemos de comera" e "que havemos de bebera" As águas de Mara puseram à prova o coração de Israel e mostraram o seu espírito murmurador; mas o Senhor mostrou-lhes que não havia amargura que Ele não pudesse dulcificar com a provisão da Sua graça: "...e o SENHOR mostrou-lhe um lenho que lançou nas águas, e as águas se tornaram doces: ali lhes deu estatutos e uma ordenação, e ali os provou". Que formosa figura d'Aquele que foi, em graça infinita, lançado às águas da morte, para que essas águas nada mais nos pudessem dar senão doçura, para todo o sempre. Verdadeiramente, podemos dizer: "Na verdade já passou a amargura da morte", e nada mais nos resta senão as doçuras eternas da ressurreição.
O versículo 26 põe diante de nós o caráter importante desta primeira etapa dos remidos de Deus no deserto. Encontramo-nos em grande perigo, nesta hora, de cair num espírito mal disposto, impa¬ciente de murmuração. O único remédio contra este mal é conservarmos os olhos postos em Jesus —"olhando para Jesus" (Hb 12:2). Bendito seja o Seu nome, Ele sempre Se mostra à altura das necessidades do Seu povo; e eles, em vez de se queixarem das suas circunstâncias, deviam fazer delas o moti¬vo de se aproximarem mais d'Ele. É assim que o deserto se torna útil para nos ensinar o que Deus é. É uma escola na qual aprendemos a conhecer a Sua graça constante e os Seus amplos recursos. "E suportou os seus costumes no deserto por espaço de quase quarenta anos" (At 13:18).
O homem espiritual reconhecerá sempre que vale a pena ter águas amargas para Deus as dulcificar:".. .também nos gloriamos nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a paciência; e a paciência, a experiência, e a experiência, a esperança" (Rm 5:3 -5).

Elim: Doze Fontes e Setenta Palmeiras
Todavia, o deserto tem os seus Elins bem como os seus Maras; as suas fontes e palmeiras, bem como as suas águas amargas. "Então, vieram a Elim, e havia ali doze fontes de água e setenta palmeiras; e ali se acamparam junto das águas (versículo 27).
O Senhor graciosa e ternamente prepara verdes lugares no deserto para o Seu povo; e embora sejam, quanto muito, oásis, refrescam, todavia, o espírito e animam o coração. A permanência temporária em Elim era evidentemente calculada para tranquilizar os corações do povo e fazer cessar as suas murmurações. A sombra agradável das suas palmeiras e as águas refrescantes das suas fontes vieram muito a propósito, depois da provação de Mara, e realçam à nossa vista as virtudes preciosas daquele ministério espiritual que Deus provê para o Seu povo no mundo. Os números "doze" e "setenta" estão intimamente ligados com o ministério.
Mas Elim não era Canaã As fontes e as palmeiras eram apenas um antegozo desse país ditoso que estava situado para lá dos limites do deserto estéril, no qual os remidos acabavam de entrar. Davam refrigério, sem dúvida, mas era refrigério do deserto: era apenas momentâneo, destinado em graça, a animar os espíritos deprimidos e a dar-lhes vigor para a sua marcha para Canaã. Assim é, como sabemos, com o ministério na Igreja; é um suprimento gracioso para as nossas necessidades, destinado a refrescar, fortalecer e encorajar os nossos corações "até que todos cheguemos à medida da estatura completa de Cristo" (Ef 4:13).

— CAPITULO 16 —

O MANÁ: O PÃO DO CÉU

As Murmurações do Povo
"E PARTIDOS de Elim, toda a congregação dos filhos de Israel veio ao deserto de Sim, que está entre Elim e Sinai, aos quinze dias do mês segundo, depois que saíram da terra do Egito". Vemos aqui Israel numa posição notável e muito interessante. É ainda o deserto, sem dúvida, mas é um lugar de paragem muito importante e significativo, a saber, "entre Elim e Sinai". Aquele era o lugar onde haviam recentemente provado as águas refrescantes do ministério divino; este era o lugar onde eles deixaram o terreno da graça soberana e se colocaram debaixo do concerto das obras. Estes fatos tornam "o deserto de Sinai" uma parte particularmente interessante da jornada de Israel. O Seu aspecto e influência são acentuados grandemente como qualquer outro ponto em toda a sua história. Vêmo-los aqui como os objetos da mesma graça que os havia tirado da terra do Egito, e, portanto, todas as suas murmurações são imediatamente atendidas por suprimento divino. Quando Deus opera na manifestação da Sua graça não há impedimento. As bênçãos que Ele derrama correm sem interrupção. E só quando o homem se coloca debaixo da lei que perde tudo; porque então Deus tem de permitir que ele se certifique de quanto pode exigir com base nas suas próprias obras.
Quando Deus visitou e redimiu o Seu povo e os tirou da terra do Egito, não foi, certamente, com o propósito de os deixar morrer de fome e de sede no deserto. Eles deviam saber isto. Deviam ter confiado n'Ele e andado na confiança daquele amor que os havia libertado gloriosamente dos horrores da escravidão do Egito.
Deviam ter recordado que era infinitamente melhor estar com Deus no deserto do que nos fornos de tijolo com Faraó. Mas não; o coração humano acha uma coisa muito difícil dar crédito a Deus pelo seu amor puro e perfeito: tem muito mais confiança em Satanás do que em Deus. Vede, por um momento, toda a dor e sofrimento, a miséria e degradação que o homem tem sofrido por causa de ter dado ouvidos à voz de Satanás, e contudo nunca tem uma palavra de queixa quanto ao seu serviço ou desejo de se libertar das suas mãos. Não está descontente com Satanás nem cansado de o servir. Colhe repetidas vezes os frutos amargos nesses campos que Satanás tem aberto de si; e, todavia, pode ser visto repetidas vezes a semear a mesmíssima semente e a passar pelos mesmos trabalhos.
Mas como é diferente quando se trata de Deus! Quando nos dispomos a andar nos Seus caminhos, estamos prontos, à primeira aparência de dificuldades ou provações, a murmurar e a rebelarmo-nos. Na verdade, não há nada em que tanto falhamos como no desenvol¬vimento de um espírito confiante e agradecido. Esquecemos facil¬mente dez mil bênçãos na presença de uma simples privação. Os nossos pecados foram todos perdoados, "fomos aceites noamado"(Ef 1:6) efeitos herdeiros eco-herdeiros com Cristo—esperamos aglória eterna; e além de tudo mais, o nosso caminho através do deserto está coberto de misericórdias inumeráveis; e todavia deixai que uma nuvem, apenas como palma da mão de um homem, apareça no horizonte, e as ricas misericórdias do passado são por nós prontamen¬te esquecidas àvistadesta pequena nuvem, que, afinal, pode muito vem desfazer-se embênçãos sobre a nossa cabeça.
Este pensamento deveria humilhar-nos profundamente diante de Deus. Como somos diferentes nisto, e em tudo mais, do nosso bendito Modelo! Vede-O—o verdadeiro Israel no deserto—rodeado de feras e jejuando durante quarenta dias. Como Se conduziu Ele? Murmurou1?- Queixou-Se da Sua sorte?- Desejou achar-Se noutras circunstâncias1? Ah! não. Deus era a porção do Seu cálice e a parte da Sua herança (SI 16). E, portanto, quando o tentador se aproximou de Lhe oferecer o necessário, glórias, distinções, e as honras desta vida, Ele recusou-os e manteve firmemente a posição de absoluta depen¬dência de Deus e implícita obediência à Sua palavra. Só aceitaria do mesmo modo o pão e a glória das mãos de Deus.
Como foi tão diferente com Israel segundo a carne! Tão depressa sentiu o sofrimento da fome "Murmurou contra Moisés e contra Arão, no deserto" (versículo 2). Parece que haviam perdido a compreensão de haverem sido libertados pela mão do Senhor, porque disseram:"... porque nos tendes tirado para este desertou" E também no capítulo 17:3, lemos: "...o povo murmurou contra Moisés, e disse: porque nos fizeste subir do Egito, para nos matares de sede, a nós, e aos nossos filhos, e ao nosso gado?" Assim, eles manifestaram em todas as ocasiões um espírito irritado e de quei¬xume, e mostraram quão pouco realizavam a presença do seu Poderoso e infinitamente gracioso Libertador.
Ora, não há nada que tanto desonre a Deus como um espírito murmurador por parte daqueles dos que Lhe pertencem. O apóstolo apresenta como característico especial da corrupção dos gentios que, "...tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças" (Rm 1:21). E então segue-se o resultado prático deste espírito ingrato, "antes em seus discursos se desvane¬ceram, e o seu coração insensato se obscureceu". Aquele que deixa de reter um sentido grato da bondade de Deus tornar-se-á rapida¬mente "entenebrecido". Assim Israel perdeu o sentido de estar nas mãos de Deus; e isto levou-os, como podia esperar-se, a trevas mais espessas, visto que os encontramos, mais tarde na sua história, dizendo: "Porque nos traz o SENHOR a esta terra, para cairmos a espada e para que nossas mulheres e nossas crianças sejam por presa"?-" (Nm 14:3). Tal é a atitude que a alma que não está em comunhão toma. Começa por perder a noção de estar nas mãos de Deus para seu bem, e, termina por se julgar nas Suas mãos para seu mal. Que triste progresso!

O Maná
Contudo, como Israel estava debaixo da graça, as suas necessi¬dades são supridas de uma maneira maravilhosa, como lemos no versículo 4, deste capítulo: "Então, disse o SENHOR, a Moisés: Eis que vos farei chover pão dos céus". Quando se achavam envolvidos pela nuvem fria da incredulidade, eles haviam dito: "Quem dera que nós morrêssemos por mão do SENHOR, na terra do Egito, quando estáva¬mos sentados junto às panelas de carne, quando comíamos pão até fartar!" Porém, agora Deus diz que lhes dará "pão dos céus". Abençoado contraste! Que diferença espantosa entre as panelas de carne, os alhos porros e as cebolas do Egito e este maná celestial— "o pão dos poderosos"! (SI 78:25). Aquelas coisas pertenciam aterra, este pão era do céu.
Mas este alimento celestial era necessariamente, uma experi¬ência da condição de Israel, como está escrito, "...para que eu seja se anda em minha lei ou não". Era preciso ter-se um coração separado das influências do Egito para se dar por satisfeito, ou apreciar "o pão dos céus". Com efeito, sabemos que o povo não se contentou com este pão, antes o desprezou, declarou-o "pão vil" e desejou carne.
Desta forma os israelitas mostraram quão pouco separados esta¬vam os seus corações do Egito e como não estavam dispostos a andar na lei de Deus: "..em Seu coração se tornaram ao Egito" (At 7:39).
Porém, longe de serem reconduzidos para ali, foram transpor¬tados, por fim, para além de Babilónia (At 7:43). Eis uma lição solene e salutar para os cristãos. Se aqueles que foram libertados deste presente século mau não andam com Deus com corações agradecidos, satisfeitos com a provisão que Ele fez para os remidos no deserto, estão em perigo de cair nos laços da influência de Babilónia. É uma reflexão muito séria, que requer gosto celestial para se poder alimentar do Pão do céu. A natureza não pode saborear um tal alimento; suspira sempre pelo Egito, e, portanto, deve ser sempre dominada. É nosso privilégio, como aqueles que foram batizados na morte de Cristo e ressuscitados "pela fé no poder de Deus" (Cl 2:12), alimentarmo-nos de Cristo como "o pão da vida que desceu do céu" (Jo6:51).

Cristo: O Pão Vivo que Desceu do Céu
Este é o nosso alimento nesta peregrinação—Cristo apresenta¬do pelo ministério do Espírito Santo através das Escrituras; enquan¬to que, para nosso refrigério espiritual, o Espírito Santo veio, como o fruto precioso da Rocha ferida — Cristo, que foi ferido por nós. Tal é a nossa parte neste mundo.
Ora, é evidente que, a fim de podermos desfrutar uma parte como esta, os nossos corações devem estar separados de tudo neste presente século mau— de tudo aquilo que poderia despertar a nossa cobiça como aqueles que vivem na carne. Um coração mundano e carnal não encontra Cristo nas Escrituras nem poderá apreciá-Lo, se o encontrar. O maná era tão puro e mimoso que não podia suportar contato com a terra. Por isso, descia sobre o orvalho (veja-se Nml 1:9) e tinha de ser recolhido antes de o sol se elevar. Cada um, portanto, devia levantar-se cedo e recolher a sua parte. O mesmo acontece com o povo de Deus agora: o maná celestial tem de ser colhido todas as manhãs. O maná de ontem não serve para hoje nem o de hoje para amanhã. Devemo-nos alimentar de Cristo cada dia que passa, com novas energias do Espírito, de contrário deixaremos de crescer. Ademais, devemos fazer de Cristo o nosso primeiro objetivo. Devemos buscá-lo "cedo", antes de "outras coisas" terem tempo de se poderar dos nossos pobres corações. E nisto que muitos de nós, enfim, falhamos! Damos um segundo lugar a Cristo, e como consequência ficamos fracos e estéreis. O inimigo, sempre vigilan¬te, aproveita-se da nossa indolência espiritual para nos roubar a bem-aventurança e as forças que recebemos nutrindo-nos de Cris¬to. A nova vida no crente só pode ser alimentada e mantida por Cristo. "Assim como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim quem de mim se alimenta também viverá por mim" (Jo 6:57).
A graça do Senhor Jesus Cristo, como Aquele que desceu do céu, para ser o alimento do Seu povo, é inefavelmente preciosa para a alma renovada; porém, a fim de poder apreciá-Lo desta forma, devemos compreender que estamos no deserto, separados para Deus, no poder de uma redenção efetuada. Se ando com Deus através do deserto, estarei satisfeito com o alimento que Ele me dá, e este é Cristo, como Aquele que desceu do céu. "O trigo da terra" deCanaã, "do ano antecedente" (Js 5:11) tem o seu antítipo em Cristo elevado às alturas e assentado na glória. Como tal, Ele é o próprio alimento daqueles que, pela fé, sabem que estão ressuscita¬dos e assentados juntamente com Ele nos lugares celestiais. Porém,
o maná, isto é, Cristo como Aquele que desce do céu, é o sustento para o povo de Deus, na sua vida e experiências do deserto. Como um povo estrangeiro no mundo, necessitamos de um Cristo que tam¬bém aqui viveu como estrangeiro; como povo assentado nos luga¬res celestiais, temos um Cristo que também ali está assentado. Isto poderá explicar a diferença que existe entre o maná e o trigo da terra doano antecedente. Não se trata da redenção, pois que esta já a temos no sangue da cruz, e ali somente; mas simplesmente da provisão que Deus fez para o Seu povo em face das variadas condições em que este se encontra, quer seja lutando no deserto ou tomando posse em espírito da herança celestial.

A Glória do Senhor na Nuvem
Que quadro admirável nos oferece Israel no deserto! Detrás de si ficava o Egito, na sua frente estava a terra deCanaã,eàsua volta a areia do deserto; enquanto que eles mesmos estavam reduzidos a esperar do céuoseu sustento diário! O deserto não produziu uma folha de erva nem deu uma gota de água para o Israel de Deus. A sua porção estava só em Deus. Nada têm aqui. A sua vida, sendo celestial, só pode ser mantida por coisas celestiais. Embora es tej am no mundo, não são do mundo, porque Cristo os escolheu dele. Como povo celestial por nascimento, acham-se de caminho para a sua pátria; e são mantidos por alimento que lhes é enviado dali. A sua marcha é para diante e para cima. Aglória só assim os dirige. É inteiramente inútil volver os olhos para trás na direção do Egito, porque nem um só raio de glória se pode distinguir ali; "...e eles viraram para o deserto, eis que a glória do S ENHOR apareceu na nuvem". O carro de fogo do Senhor estava no deserto, e todos os que desejam ter comunhão com Ele tinham de estar ali também, e, estando ali, o maná do céu seria o seu alimento, e somente esse.

Cristo: O Alimento do Cristão
Verdade seja que este maná era um sustento estranho, tal como um egípcio nunca poderia compreender, apreciar ou viver dele; porém aqueles que haviam sido "batizados... na nuvem e no mar" (1 Co 10:2) podiamapreciá-loesernutridos por ele, se tão-somente andassem em conformidade com esse batismo. Assim é agora no caso de todo o verdadeiro crente. O homem do mundo não pode compreender como é que o crente vive. Tanto a sua vida como aquilo que o mantém estão inteiramente fora do alcance da visão humana. Cristo é a sua vida, e de Cristo ele vive. Nutre-se, pela fé, com os atrativos poderosos d'Aquele que, sendo "Deus, bendito eternamente" (Rm 9:15), "tomou sobre si a forma de servo, fazen-do-se semelhante aos homens" (Fl 2-.7). Segue-O desde o seio do Pai até à cruz e desde a cruz ao trono, e encontra n'Ele, em todas as fases da Sua carreira e em cada atitude da Sua vida, um alimento precioso para o homem novo em si. Tudo em volta, embora de fato seja o Egito, é moralmente um deserto árido e lúgubre, que nada produz para o espírito renovado; e precisamente na proporção em que o crente encontrar alguma coisa com que se nutrir, o seu homem espiritual será impedido no seu progresso. A única provisão que Deus tem feito é o maná do céu, e o verdadeiro crente deverá alimentar-se sempre dele.
É verdadeiramente lamentável ver como tantos cristãos bus¬cam as coisas deste mundo. Isto prova claramente que estão com "tédio" do maná celestial e que o consideram como "pão vil". Servem aquilo que deveriam mortificar. As atividades da nova vida estarão sempre em relação com a subjugação "do velho homem com seus feitos" (Cl 3:9); e quanto mais isto for consegui¬do, tanto mais se desejará o nutrimento "do pão que fortalece o... coração" (SI 104:15). Assim como acontece com o físico, em que quanto maior é o exercício maior é o apetite, assim também acontece com a graça: quanto mais exercitadas forem as nossas faculdades renovadas, tanto mais sentiremos a necessidade de nos alimentarmos diariamente de Cristo. Uma coisa é sabermos que temos vida em Cristo juntamente com pleno perdão e aceitação diante de Deus, e outra muito diferente termos habitualmente comunhão com Ele — nutrindo-nos d'Ele, pela fé e fazendo d'Ele o único alimento das nossas almas. Muitos professam ter achado perdão e paz em Jesus, mas, na realidade, alimentam-se de uma variedade de coisas que não têm relação com Ele. Alimentam os seus espíritos com a leitura dos periódicos e uma variedade de literatura frívola e insípida. Poderão encontrar Cristo nela? Acaso é por tais meios que o Espírito Santo fala de Cristo à alma? São estas as gotas de orvalho puro sobre as quais o maná desce do céu para sustento dos remidos de Deus no Deserto? Ah! não; são produtos grosseiros sobre os quais se deleita o espírito carnal. Como poderia, pois, o verdadeiro cristão alimentar-se com tais coisas? Sabemos, median¬te o ensino da Palavra de Deus, que ele tem duas naturezas: e pode perguntar-se qual das duas se alimenta com o noticiário do mundo e a literatura mundana. É a velha natureza ou a nova? Só pode haver uma resposta. Pois bem, qual das duas estamos ansiosos por alimen¬tara A nossa conduta dará, incontestavelmente, a verdadeira respos¬ta a esta interrogação. Se eu desejar sinceramente crescer na vida divina, se o meu grande objetivo for o de ser semelhante e consagra¬do a Cristo, se suspiro sinceramente pela extensão do reino de Deus no meu coração, então, sem dúvida, buscarei continuamente essa qualidade de alimento que está destinado por Deus a promover o meu crescimento espiritual. Tudo isto é claro. Os atos de um homem são sempre o verdadeiro indício dos seus desejos e propó¬sitos . Por isso, se vejo um crente descurar a sua Bíblia, e, contudo, dispor de tempo — sim, parte do seu melhor tempo — para ler o jornal, não me será difícil ver qual é o verdadeiro estado da sua alma. Estou certo que não pode ser um crente es piritual: não se alimenta de Cristo, não vive para Cristo nem dá testemunho d'Ele.
Se um israelita deixasse de apanhar, durante a frescura da manhã, a sua porção do alimento que a graça de Deus havia preparado, em breve sentiria a falta de forças para a sua jornada. Assim é conosco. Devemos fazer de Cristo o objeto supremo na ocupação das nossas almas, de outro modo a nossa vida espiritual declinará inevitavelmente. Nem tampouco podemos alimentar as nossas almas com os sentimentos e as experiências relacionados com Cristo porque, sendo incertos, não podem representar o nosso alimento espiritual. Vivemos ontem de Cristo, temos de viver hoje de Cristo e de Cristo para sempre. Além disso de nada vale alimentarmo-nos em parte de Cristo e em parte de outras coisas. Assim como no caso da vida ésomente Cristo, da mesma forma o viver deve ser Cristo somente. Assim como não podemos misturar nada com aquilo que transmite a vida, tampouco podemos misturar alguma coisa com aquilo que a mantém.

O Vaso de Maná na Arca da Aliança
É bem verdade que, em espírito e pela fé, nós podemo-nos alimen¬tar, até mesmo agora, de um Cristo ressuscitado e glorificado, elevado às alturas, em virtude da redenção efetuada, conforme era ilustrado no "trigo da terra do ano antecedente" (Josué 5). E não somente isto, sabemos que quando os remidos de Deus tiverem entrado nessas regiões de glória, descanso e imortalidade, que se acham além do Jordão, terão acabado, de fato, com o alimento do deserto; mas não terão terminado com Cristo nem com a recordação daquilo que constitui o alimento específico da sua vida no deserto.
Os israelitas nunca haviam de esquecer, no meio do leite e mel da terra de Canaã, aquilo que os havia sustentado durante os quarenta anos da sua peregrinação no deserto:".. .Esta é a palavra que o SENHOR tem mandado: Encherás um gômer dele e o guardarás para as vossas gerações, para que vejam o pão que vos tenho dado a comer neste deserto, quando eu vos tirei da terra do Egito... .Como o SENHOR tinha ordenado a Moisés, assim Aarão o pôs diante doTestemunho em guarda" (versículos 32 - 34).
Que precioso memorial da fidelidade de Deus! Não os deixou morrer de fome, como os seus corações insensatos e incrédulos haviam temido. O Senhor fez chover pão do céu, alimentou-os com "pão de poderosos", velou sobre eles com toda a ternura de uma ama, suportou-os, levou-os sobre asas de águias, e, tivessem eles continu¬ado no próprio terreno da graça, ter-lhes-ia dado posse de todas as promessas feitas aos seus pais. O vaso de maná, portanto, contendo, com efeito, a ração diária de um homem, e posto diante do Senhor, é cheio de instrução. Não houve nele vermes nem vestígios de corrupção. Era o memorial da fidelidade do Senhor provendo as necessidades daqueles que havia remido da mão do inimigo.

Não Fazer Provisão de Maná para o Dia de Amanhã
Não acontecia assim quando o homem o acumulava para si. Então os sintomas de corrupção depressa se manifestavam. Não podemos fazer provisões, se compreendermos a verdade e realidade da nossa posição. É nosso privilégio apropriarmo-nos, dia a dia, da preciosidade de Cristo, como Aquele que desceu do céu para dar vida ao mundo. Porém, se alguém, esquecendo-se disto, entesoura para o dia de amanhã, isto é, se reserva verdade além das suas necessida¬des, em vez de a converter em proveito da renovação das suas forças, a verdade certamente corromper-se-á. Eis uma lição salutar para nós. É uma cosia muito séria aprender a verdade; porque não existe um princípio que professamos ter aprendido que não teremos que provar na prática. Deus não nos quer teóricos. Trememos muitas vezes ao ouvir como algumas pessoas, quando oram, fazem arden¬tes votos de consagração, temendo que, quando chegar a hora da provação, não tenham o poder espiritual necessário para executar o que os seus lábios têm pronunciado.
Existe o grande perigo do intelecto ultrapassar a consciência e os afetos do coração. É por isso que muitos parece fazerem, logo ao princípio, um rápido progresso, até um certo ponto; mas então param de repente e parece retrocederem. Como um israelita que apanhasse mais maná do que precisava para o sustento do dia. Podia parecer muito mais diligente que os outros, fazendo reserva do alimento celestial; contudo cada partícula a mais das necessidades do dia não só era inútil, mas muito pior do que inútil, visto que "criava bichos". É assim com o cristão: deve usar o que tem—deve alimentar-se de Cristo como necessidade premente e essa necessi¬dade manifesta-se no seu serviço. O caráter e os caminhos de Deus e a preciosidade e beleza de Cristo, assim como as vivas profundi¬dades das Escrituras são somente reveladas à fé e às necessidades presentes da alma. É na medida em que usamos o que recebemos que mais nos será dado. Ávida do crente tem de ser prática; e é nisto que muitos de nós fracassamos. Acontece frequentemente que aqueles que progrediam mais depressa em teoria são os mais vagarosos nos elementos práticos e experimentais, porque se trata mais de um trabalho intelectual que do coração e da consciência. Nunca deve¬mos esquecer que o Cristianismo não é um conjunto de opiniões, um sistema de dogmas ou um determinado número de pontos de vista. É uma realidade viva por excelência—uma coisa pessoal, prática, poderosa, anunciando-se a si própria em todas as circuns¬tâncias e cenas da vida diária, espalhando a sua influência santa sobre o caráter e a vida do indivíduo e transmitindo as suas dispo¬sições celestiais a todas as relações a que o cristão possa ser chamado por Deus a cumprir.
Em resumo, é o resultado de se estar associado e ocupado com Cristo. Tal é o cristianismo. Pode haver ideias corretas e princípios sãos e pontos de vista claros sem se ter a menor comunhão com Jesus; porém um credo ortodoxo sem Cristo não é mais que uma coisa fria, estéril e morta.
Que o leitor cristão se certifique de que não só está salvo por Cristo como vive, também, d'Ele. De fazer d'Ele a sua porção diária, buscá-Lo "de manhã" e a "Ele só". Quando qualquer coisa despertar a sua atenção, durante o dia, deve fazer esta interrogação: "Contribuirá isto para que Cristo venha ao meu coração? Será isto um meio de aumentar o meu afeto por Ele ou de me aproximar mais da Sua Pessoal Se a resposta for negativa deve rejeitar o que quer que for imediata¬mente: sim, rejeitar, ainda mesmo que o objetivo que chama a sua atenção seja o mais agradável à vista e se presente com o mais respeitável aspecto. Se o seu propósito for avançar e fazer progresso na vida divina, então deve cultivar a sua familiaridade pessoal com Cristo; só então poderá reclamar do seu coração o cumprimento fiel desta lealdade. Deve fazer de Cristo o seu alimento diário. Deve juntar o maná que desce sobre o orvalho e alimentar-se dele com o apetite provocado pela companhia diligente com Deus através do deserto. Que a graça de Deus o fortifique abundantemente, por meio do Espírito Santo (¹).
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(¹) O leitor tirará muito proveito com a meditação do capítulo 6 do Evangelho de João, em relação com o assunto do maná. Estando perto a páscoa, Jesus alimenta a multidão, e depois retira-se para um monte, para estar só. Dali vem em auxílio dos Seus, que se acham aflitos sobre as águas do lago. Depois disto revela a doutrina da Sua Pessoa e da sua Obra, e declara que dará a Sua carne pela vida do mundo e que ninguém pode ter vida se não comer a Sua carne e beber o Seu sangue. Finalmente fala de Si Mesmo como subindo para onde estava primeiro e do poder vivificador do Espírito Santo. É, na verdade rico e abundante em verdade espiritual para conforto e edificação da alma. revela a doutrina da Sua Pessoa e da sua Obra, e declara que dará a Sua carne pela vida do mundo e que ninguém pode ter vida se não comer a Sua carne e beber o Seu sangue. Finalmente fala de Si Mesmo como subindo para onde estava primeiro e do poder vivificador do Espírito Santo. É, na verdade rico e abundante em verdade espiritual para conforto e edificação da alma.

O Dia de Repouso: o Sábado
Existe mais um ponto neste capítulo que desejo mencionar, isto é, a instituição do sábado relacionada com o maná e a posição de Israel tal qual nos é apresentada aqui. Depois do capítulo 2 de Génesis até ao capítulo que temos perante nós, não se faz menção desta instituição. Isto é singular. O sacrifício de Abel, a carreira de Enoc com Deus, a pregação deNoé,achamadadeAbraão,juntamentecomahistóriapermenorizada de Isaquejacóejosé, são todas representadas; mas não se fazalusãoao sábado até ao momento em que encontramos Israel reconhecido como um povo em relação com o Senhor, e consequentemente debaixo da responsabilidade que essa relação implica.
O sábado foi interrompido no Éden; e é aqui instituído outra vez para Israel no deserto. Mas, ah, o homem não ama o repouso de Deus! "E aconteceu, ao sétimo dia, que alguns do povo saíram para colher, mas não o acharam. Então, disse o SENHOR a Moisés: Até quando recusareis guardar os meus mandamentos e as minhas leisi Vede, visto que o SENHOR vos deu o sábado, por isso ele, no sexto dia, vos dá pão para dois dias; cada um fique no seu lugar, que ninguém saia do seu lugar no sétimo dia" (versículos 27 -29). Deus queria que o Seu povo gozasse de um doce repouso com Ele Mesmo: queria dar-lhes repouso, alimento, e refrigério no deserto. Porém o coração humano não está disposto a repousar comDeus.O povo podia recordar e falar dos tempos em que "estavam sentados junto às panelas de carne" no Egito; mas não podiam apreciar a bem- aventurança de se sentarem nas suas tendas, gozando com Deus "o descanso do sábado" e alimen-tando-se com o maná celestial.
E não se esqueça que o sábado é apresentado aqui como um caso de dádiva: "...o SENHOR vos deu o sábado" (versículo29). Mais adiante, neste mesmo livro, encontramo-lo outra vez mencionado debaixo da forma de lei e acompanhado de maldição e juízo, no caso de desobediência; porém, quer o homem caído receba um privilégio ou uma lei, é-lhe indiferente. A sua natureza é má. Não pode descansar em Deus nem trabalhar para Deus. Se Deus trabalha e lhe faz um repouso, ele não quer guardá-lo; e se Deus o manda trabalhar, não o faz. Tal é o homem. Não tem lugar em seu coração para Deus. Pode usar o nome do sábado como um meio de se exaltar a si próprio ou como insígnia da sua própria religiosidade; mas quando volvemos os olhos para o capítulo 16 do Êxodo descobrimos que não pode celebrar o sábadodeDeus como uma dádiva; e quando abrimos o capítulo 15 de Números, versículos 32 a 36, descobrimos que não pode guardá-lo como uma lei.
Ora, nós sabemos que o sábado, assim como o maná, era uma figura. Em si mesmo, era uma bênção — uma agradável mercê da parte de um Deus de amor e graça, que queria suavizar o trabalho e a labuta de um mundo pecaminoso mediante o refrigério de um dia de descanso em cada sete. Qualquer que seja a forma de encararmos a instituição do sábado, vê-la-emos sempre fecunda da mais rica graça, quer a encaremos a respeito do homem ou acerca da criação animal. E embora os cristãos guardem o primeiro dia da semana — o dia do Senhor— e liguem com ele as regras que lhe são próprias, todavia observa-se a mesma providência graciosa; nem a mente governada por sentimentos próprios procuraria, por um momento sequer, interferir com uma tal demonstração de misericórdia:".. .o sábado foi feito por causa do homem" (Mc 2:27); e embora o homem nunca o houvesse guardado, segundo o pensamento divino, isso não dimi¬nuiu a graça que resplandece na sua instituição, nem o priva da sua profunda significação como figura do repouso eterno que resta para o povo de Deus, ou sombra dessa substância a qual a fé goza agora na Pessoa e Obra de um Cristo ressuscitado.
O leitor não deve supor, portanto, que o que tem sido dito, ou possa ser acentuado, nesta linhas, tem por fim menosprezar, no mínimo, a provisão misericordiosa de um dia de repouso para o homem e para a criação animal ou interferir com o lugar distinto que o Dia do Senhor ocupa no Novo Testamento. Muito longe disso! Como homem, aprecio o primeiro destes dias, e como cristão regozijo-me no último o bastante para não escrever ou articular uma sílaba sequer em desabono quer de um quer do outro. Gostaria apenas de pedir ao leitor para pesar, com imparcialidade, na balança das Escrituras, tudo que tem sido afirmado, e não formar um juízo precipitadamente antecipado.
Este assunto será tratado outra vez, mais adiante, se o Senhor permitir. Entretanto, procuraremos aprender a apreciar melhor o valor do repouso que o nosso Deus nos preparou em Cristo, e gozar d'Ele como o nosso repouso, alimentando-nos d'Ele como "o maná escondido" (Ap 2:17) e posto, no poder da ressurreição, no lugar santíssimo — o memorial do que Deus fez por nós, vindo a este mundo, em Sua graça infinita, a fim de que pudéssemos estar perante Ele, segundo as perfeições de Cristo, e nos alimentarmos com as Suas riquezas inexauríveis para sempre.

— CAPITULO 17 —

REFIDIM

A Contenda do Povo com Moisés
"Depois, toda a congregação dos filhos de Israel partiu do deserto de Sim pelas suas jornadas, segundo o mandamento do SENHOR, e acamparam em Refidim; e não havia ali água para o povo beber. Então, contendeu o povo com Moisés, e disseram: Dá-nos água para beber. E Moisés lhes disse: Por que contendeis comigo? Por que tentais ao SENHORA"
Não conhecêssemos nós alguma coisa do mal humilhante de nossos corações e ficaríamos embaraçados quanto à razão da insen¬sibilidade espantosa de Israel para com a bondade, a fidelidade e os atos poderosos do Senhor. Acabavam de ver cair pão do céu para alimentar seiscentas mil pessoas no deserto, e ei-los agora, prontos a "apedre j ar" Moisés por os ter trazido para esse mesmo deserto, para os matar de sede. Nada pode exceder a incredulidade terrível e maldade do coração humano senão a graça superabundante de Deus. É só nessa graça que alguém pode encontrar alívio sob a sensação, sempre crescente, da sua natureza perversa, que as circunstâncias tendem a manifestar. Hou¬vesse Israel sido transportado diretamente do Egito a Canaã, e não teria sido feita uma tão triste exibição do que é o coração humano; e, como consequência, eles não teriam sido exemplos ou figuras tão admiráveis para nós. De fato, os quarenta anos de peregrinação no deserto of erecem-nos um volume de avisos, admoestações e instru¬ções úteis além de toda a concepção. Aprendemos, entre outras coisas, a propensão constante do coração para suspeitar de Deus. Confia em tudo, menos em Deus. Prefere apoiar-se numa teia de aranha em vez do braço do Deus onipotente, sábio e generoso; e a mais pequena nuvem é mais que suficiente para ocultar da sua vista a luz do Seu bendito rosto. É pois com razão que as Escrituras falam dele como sendo "mau e infiel", sempre pronto para" se apartar do Deus vivo" (Hb3:12).
É interessante notar as duas interrogações feitas pela increduli¬dade, neste capítulo e no precedente. São precisamente idênticas àquelas que se levantam em nós e à nossa volta, diariamente: "Que comeremos'?- E que beberemos?" (Mt 6:31). Não vemos que o povo fizesse a terceira pergunta desta categoria, "com que nos vestire-mos'?-" Porém, estas são as interrogações do deserto: "O quêí" "Ondeí" "Cornou". A fé tem apenas uma resposta compreensível para todas as três, a saber: DEUS! Que resposta perfeita e preciosa! Ah, se o autor e o leitor destas linhas conhecessem perfeitamente o seu poder e a sua plenitude! Necessariamente precisamos recor¬dar, quando passamos pela provação, que não vem sobre nós tenta¬ção senão humana, "mas, fiel é Deus, que vos não deixará tentar acima do que podeis; antes, com a tentação dará também o escape, para que a possais suportar" (1 Co 10:13). Sempre que somos postos à prova, podemos estar certos que, com a prova, há também uma saída, e tudo que precisamos é uma vontade submissa ao Senhor e um olhar simples para vermos a saída.

A Rocha Ferida
"E clamou Moisés ao SENHOR, dizendo: Que farei a este povoi Daqui a pouco me apedrejarão. Então, disse o SENHORa Moisés: Passa diante do povo e toma contigo alguns dos anciãos de Israel; e toma na tua mão a tua vara, com que feriste o rio, e vai. Eis que eu estarei ali diante de ti sobre a rocha, em Horebe, e tu ferirás a rocha, e dela sairão águas, e o povo beberá. E Moisés assim o fez, diante dos olhos dos anciãos de Israel" (versículos 4 a 6). Assim tudo é suprido pela graça mais perfeita. Cada murmuração ocasiona uma nova mani¬festação da graça. Aqui vemos como as águas refrescantes jorraram da rocha ferida—uma ilustração formosa do Espírito dado como fruto do sacrifício efetuado por Cristo. No capítulo 16 temos uma figura de Cristo descendo do céu para dar vida ao mundo. O capítulo 17 mostra-nos uma figura do Espírito Santo "derramado" em virtude da obra consumada de Cristo. "Porque bebiam da pedra espiritual que os seguia; e a pedra era Cristo" (1 Co 10:4). Mas quem poderia beber antes da pedra ser ferida? Israel poderia ter contem¬plado essa rocha e morrer de sede ao mesmo tempo que a contem¬plava, porque antes que fosse ferida pela vara de Deus não podia dar refrigério. Isto é bem claro. O Senhor Jesus Cristo era o centro e base de todos os desígnios de amor e misericórdia de Deus. Por Seu intermédio deveria correr toda a bênção para o homem. As correntes da graça deviam emanar do "Cordeiro de Deus"; porém era neces¬sário que o Cordeiro fosse morto—que a obra da cruz fosse um fato consumado, antes que muitas destas coisas fossem realizadas. Foi quando a Rocha dos séculos foi ferida pela mão de Jeová, que as comportas do amor eterno foram abertas de par em par e os pecadores perdidos convidados pelo Espírito Santo a beber abun¬dantemente elivremente: "...O dom do Espírito Santo" é oresulta-do da obra consumada pelo Filho de Deus sobre a cruz. "A promessa do Pai..." (Lc 24:49) não podia ser cumprida antes que Cristo se assentasse à destra da Majestade nos céus, depois de ha ver cumprido toda a justiça, respondido a todas as exigências da santidade, engran¬decido a lei tornando-a justa, suportado a ira de Deus contra o pecado, destruído o poder da morte, e tirado à sepultura a sua vitória. Havendo feito todas estas coisas, subiu ao alto, "levou cativo o cativeiro e deu dons aos homens. Ora isto—ele subiu—que é, senão que também, antes, tinha descido às partes mais baixas da terral Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para cumprir todas as coisas" (Ef 4:8-10).
Este é o verdadeiro fundamento da paz e da bem-aventurança e glória da Igreja, para todo o sempre.

A Água da Rocha
Antes de a rocha ser ferida a corrente de bênção estava retida e o homem nada podia fazer. Que poder humano poderia fazer brotar água da pederneira? E do mesmo modo, podemos perguntar, que justiça humana poderia conseguir autorização para abrir as com¬portas do amor divino1?- Este é o verdadeiro modo de pôr à prova a competência do homem. Não podia, por seus feitos, suas palavras ou sentimentos, prover um fundamento para a missão do Espírito Santo.
Seja o que for ou faça o que puder, ele não pode fazer isto. Mas, graças a Deus, tudo está consumado; Cristo terminou a obra; a verdadeira Rocha foi ferida, e as águas refrescantes brotaram, de forma que as almas sedentas podem beber. "A água que eu lhe der", diz Cristo, "se fará nele uma fonte de água que salte para ávida eterna" (Jo 4:14). E mais adiante, lemos: "E, no último dia, o grande dia dà festa, Jesus pôs-se em pé, e clamou, dizendo: Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre. E isto disse ele do Espírito, que haviam de receber os que nele cressem; porque o Espírito Santo ainda não fora dado, por ainda Jesus não ter sido glorificado" Qo 7:37 - 39).
Assim como temos no maná uma figura de Cristo, de igual modo temos uma figura do Espírito Santo na água brotando da rocha." Se tu conheceras o dom de Deus (Cristo)... tu lhe pedirias, e ele te daria água viva" — quer dizer, o Espírito.
Tal é, portanto, o ensino ministrado à mente espiritual com a rocha ferida; todavia, o nome do lugar no qual esta figura foi apresentada é um memorial perpétuo da incredulidade do homem. "E chamou o nome daquele lugar Massa" (que quer dizer tentação) "e Meribá" (que quer dizer murmurar) "por causa da contenda dos filhos de Israel, e porque tentaram ao SENHOR, dizendo: Está o SENHOR no meio de nós, ou não?" (versículo 7). Levantar uma tal interro¬gação, depois de tantas e repetidas garantias evidentes da presença de Jeová, prova a incredulidade profundamente arraigada no cora¬ção humano. Era, de fato, tentar o Senhor.
Foi assim também que os judeus, tendo a presença de Cristo com eles, pediram um sinal do céu, tentando-o.
A fé nunca atua assim; crê na presença divina e goza dela, não por meio de um sinal, mas pelo conhecimento que tem do próprio Deus. Conhece que Deus está presente para gozar d'Ele. Que o Senhor nos conceda um espírito de verdadeira confiança n'Ele!

Amaleque
O ponto sugerido a seguir por este capítulo é de particular interesse para nós. "Então, veio Amaleque e pelejou contra Israel em Refidim. Pelo que disse Moisés a Josué: Escolhe-nos homens, e sai, peleja contra Amaleque: amanhã, eu estarei sobre o cume do outeiro, e a vara de Deus estará na minha mão" (versículos 8 e 9). O dom do Espírito Santo conduz à luta. A luz reprime e luta com as trevas. Onde tudo é obscuridade não há luta; porém a mais pequena luta indica a presença da luz: "...a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne; e estes opõem-se um ao outro; para que não façais o que quereis" (Gl 5:17). Assim acontece com este capítulo: a rocha é ferida e as águas brotam dela, e lemos imediatamente, "então veio Amaleque e pelejou contra Israel".
Esta é a primeira vez que Israel se vê em luta com um inimigo exterior. Até este momento o SENHOR havia pelejado por eles, conforme lemos em capítulo 14: "O SENHOR pelejará por vós e vos calareis". Porém, agoraédito: "Escolhe-nos homens". Em boa verda¬de, Deus tem agora que lutar em Israel, assim como havia lutado,?or eles. E nisto que está a diferença, quanto ao símbolo; e quanto ao antítipo, sabemos que existe uma grande diferença entre os com¬bates de Cristopor nós e a luta do Espírito Santoem nós. Aqueles acabaram, bendito seja Deus, a vitória foi ganha, e uma pazgloriosa e eterna foi alcançada. Esta, pelo contrário, continua ainda.
Faraó e Amaleque representam dois poderes ou influências dife¬rentes: Faraó representa o impedimento à libertação de Israel do Egito; Amaleque representa o estorvo á sua caminhada com Deus pelo deserto. Faraó serviu-se das coisas do Egito para impedir Israel de servir ao Senhor; por isso prefigura Satanás, que se serve "deste presente século mau" (Gl 1:4) contra o povo de Deus. Amaleque, pelo contrário, é-nos apresentado como o protótipo da carne. Era neto de Esaú, o qual preferiu um prato de lentilhas ao direito de primogenitura (veja-se Gn 36:12), e foi o primeiro que se opôs ao avanço de Israel depois do seu batismo "na nuvem e no mar" (1 Co 10:2). Estes fatos servem para definir o seu caráter com grande distinção; e, além disso, sabemos que Saul foi deposto do trono do reino de Israel em consequência de ter falhado em destruir Amaleque (1 Sm 15). E, mais descobrimos que Hamã é o último dos amalequitas de quem se fala nas Escrituras. Foi enforcado, em consequência do seu pecaminoso atentado contra a semente de Israel (veja-se Es 3:1). Nenhum amalequita podia entrar na congregação do Senhor. E, finalmente, no capítulo que temos perante nós, o Senhor declara guerra perpétuaa Amaleque.
Todas estas circunstâncias podem ser consideradas como dando evidência concludente do fato que Amaleque é uma figura da carne. A ligação entre o seu conflito com Israel e a água correndo da rocha é a mais notável e instrutiva e está de perfeita harmonia com o conflito do crente com a sua natureza pecaminosa; conflito este, que, como sabemos, é a consequência de ele ter a nova natureza e o Espírito Santo habitar em si. A luta de Israel começou logo que se acharam de posse da redenção e depois de haverem provado o "manjar espiritual" e bebido "da pedra espiritual" (ICo 10:3-4). Antes de encontrarem Amaleque nada tinham que fazer. Não contenderam com Faraó; não destruíram o poder do Egito nem despedaçaram as cadeias da servidão; não dividiram o mar nem submergiram as hostes de Faraó nas suas águas; não fizeram descer pão do céu, nem tiraram água da pederneira. Não fizeram nem poderiam fazer nenhuma destas coisas; porém agora são chamados para lutar com Amaleque. O conflito anterior tinha sido todo entre Jeová e o inimigo. Eles apenas tiveram que estar "quietos" e contem¬plar os triunfos poderosos do braço estendido do Senhor e gozar os frutos da vitória. O Senhor havia lutado por eles; porém agora luta neles e por meio deles.

O Combate Contra Amaleque
Assim é também com a Igreja de Deus. As vitórias sobre as quais se baseiam a sua paz eterna e bem-aventurança foram ganhas para ela por Cristo combatendo sozinho. Ele esteve sozinho na cruz e só na sepultura. Algreja teve de ficar de parte, pois como poderia ela estar alí? Como poderia ela vencer Satanás, suportar a ira de Deus ou tirar à morte o seu aguilhão? Era impossível. Estas coisas estavam fora do alcance dos pecadores, mas não fora do alcance d'Aquele que veio para os salvar e que era o único que podia levar sobre Seus ombros o peso poderoso de todos os seus pecados e tirar o fardo para sempre por meio do Seu sacrifício, de forma que Deus o Espírito Santo, emanando de Deus o Pai, em virtude da expiação ef etuada pelo Deus Filho, pode fazer morada na Igreja coletivamente e em cada um dos seus membros individualmente.
Ora é quando o Espírito Santo faz assim morada em nós, em consequência da morte e ressurreição de Cristo, que começa o nosso conflito. Cristo combateu por nós; o Espírito Santo lutaem nós. O próprio fato de desfrutarmos este primeiro rico despojo da vitória coloca-nos em conflito direto com o inimigo. Mas a nossa conso¬lação é sabermos que somos feitos vencedores mesmo antes de entrarmos no campo da luta. O crente entra na peleja cantando "Graças a Deus que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo" (1 Co 15:57). Portanto, não combatemos como coisa incerta, batendo no ar, enquanto procuramos subjugar o nosso corpo e reduzi-lo à servidão (1 Co 9:26-27)."... Somos mais do que vence¬dores por Aquele que nos amou" (Rm 8:37). Agraça em que nos apoiamos toma a carne inteiramente desprovida de poder para dominar sobre ela em nós (veja Romanos 6). Se a lei é "a força do pecado", a graça é a fraqueza da lei. A lei concede poder ao pecado sobre nós; a graça dá-nos poder sobre o pecado.
"Pelo que disse Moisés a Josué: Escolhe-nos homens, e sai e peleja contra Amaleque; amanhã, eu estarei sobre o cume do outeiro, e a vara de Deus estará na minha mão. E fez Josué como Moisés lhe dissera, pelejando contra Amaleque; mas Moisés, ArãoeHur subiram ao cume do outeiro. E acontecia que, quando Moisés levantava a sua mão Israel prevalecia; mas quando ele abaixava a sua mão, Amaleque prevalecia. Porémas mãos de Moisés eram pesadas; por isso, tomaram uma pedra, e a puseram debaixo dele, para assentar-se sobre ela; e Arão e Hur sustentaram as suas mãos, um de um lado e o outro, do outro; assim ficaram as suas mãos firmes até que o sol se pôs. E, assim Josué desfezaAmalequeeaoseupovoaofiodeespada" (versículos 9 a 13).
Aqui temos duas coisas distintas, a saber: o combate e a intercessão. Cristo está nas alturas por nós, enquanto o Espírito Santo conduza luta terrívelem nós. Estas duas coisas andam juntas. É na medida que compreendemos, pela fé, a eficácia da intercessão de Cristo em nosso favor que fazemos frente (ou nos opomos) à nossa natureza pecaminosa.

A Luta do Cristão Contra a Carne
Algumas pessoas procuram olvidar o fato do combate do cristão com a carne. Encaram a regeneração como uma transfor¬mação completa ou renovação da velha natureza. Segundo este princípio segue-se, necessariamente, que o crente não tem nada com que lutar. Se a minha natureza é renovada, contra o que tenho de lutara Não há nada com que lutar no íntimo, visto que a minha velha natureza está renovada, e nenhum poder exterior pode prejudicar-me, porquanto não há nada que lhe corresponda no meu íntimo. O mundo não possui atrativos para aquele cuja carne foi inteiramente transformada, e Satanás não tem com que ou sobre que possa atuar. Pode dizer-se a todos aqueles que sustém esta teoria que parece esquecerem o lugar que Amaleque ocupa na história do povo de Deus. Tivesse Israel concebido a ideia que, uma vez destruídas as hostes do Faraó, o seu conflito havia acabado, e teriam sido tristemente confundidos quando Amaleque veio sobre eles. O fato é que o conflito deles começou só então. Assim é para o crente, porque "... tudo isto lhes sobreveio como figuras, e estão escritas para aviso nosso" (1 Co 10:11). Porém não poderia haver nenhuma "figura" nem "aviso" em "tudo isto" para aquele cuja velha natureza fosse feita de novo. Com efeito, uma tal pessoa teria muito pouca necessidade de qualquer dessas provisões graciosas que Deus preparou no Seu reino para aqueles que são os seus súbditos.
Somos ensinados claramente na Palavra de Deus que o crente traz consigo aquilo que corresponde a Amaleque, a saber "a carne" — "o homem velho", a mente carnal (Rm 6:6; 8:7; Gl 5:17). Ora, se o cristão, sentindo os movimentos da sua velha natureza, começa por pôr em dúvida se é cristão, não somente se torna a si próprio extremamente infeliz como se priva das vantagens da sua posição diante do inimigo. A carne existe no crente e estará nele até ao fim da sua carreira. O Espírito Santo reconhece inteiramen¬te a sua existência, como podemos ver em várias passagens do Novo Testamento. Em Romanos, capítulo 6:12, lemos: "Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em suas concupiscências". Um tal preceito seria de todo descabido se a carne não existisse no crente. Seria inoportuno dizer-nos para não deixarmos que o pecado reinasse sobre nós, se o pecado não habitasse de fato em nós. Existe uma grande diferen¬ça entre habitar e reinar. O pecado habita no crente, porém reina no descrente.
Contudo, embora habite em nós, temos, graças a Deus, um princípio de poder sobre ele. "Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça" (Rm 6:14). A mesma graça que, mediante o sangue da cruz, tirou o pecado, garante-nos a vitória e dá-nos poder sobre o seu princípio de ação em nós.
Morremos para o pecado, e por isso o pecado não tem reivin¬dicações sobre nós. "Aquele que está morto está justificado do pecado". "Sabendo isto: que o nosso velho homem foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado" (Rm 6:6-7). "E, assim, Josué desfez a Amaleque e a seu povo ao fio de espada". Tudo foi vitória, e a bandeira de Jeová flutuou sobre as hostes triunfantes, tendo a formosa e acalentadora inscrição "Jeová-nissi" — "o SENHOR é minha bandeira". A certeza da vitória deve ser tão completa como a compreensão do perdão, visto que as duas cosias são baseadas igualmente sobre o fato que Jesus morreu e ressuscitou. É no poder deste fato que o crente goza de uma consciência purificada e subjuga o pecado em si. A morte de Cristo havendo satisfeito todas as exigências de Deus quanto ao nosso pecado, a Sua ressurreição torna-se a origem de poder em todos os pormenores da luta. O Senhor morreu por nós e agora vive em nós. A sua morte dá-nos paz e a Sua ressurreição dá-nos poder.

Cristo: o nosso Grande Intercessor
É edificante notar o contraste entre Moisés no cume do outeiro e Cristo no trono. As mãos do nosso grande Intercessor nunca poderão estar pesadas. A Sua intercessão nunca poderá vacilar. Ele vive sempre para interceder por nós (Hb 7:25). A sua intercessão é incessante eeficaz. Havendo tomado o Seu lugar nas alturas, no poder da justiça divina, o Senhor atua por nós, segundo o que Ele é e conforme a perfeição infinita do que fez. As Suas mãos nunca poderão abaixar, nem pode ter necessidade de alguém para as suster. A perfeição da Sua advocacia está baseada sobre o Seu perfeito sacrifício. Apresenta-nos perante Deus, vestidos das Suas próprias perfeições, de forma que, embora tenhamos que cobrir sempre o nosso rosto com o pó, com o sentimento daquilo que somos, o Espírito só pode testemunhar perante nós daquilo que o Senhor é perante Deus e daquilo que nós somos n'Ele. Não estamos na carne, mas no Espírito (Rm 8:9). Estamos nocorpo, quanto ao fato da nossa condi¬ção; mas não estamos nacarne, quanto ao princípio da nossa posição. Além disso, a carne está em nós, apesar de estarmos mortos para ela; mas não estamos na carne, porque estamos vivos com Cristo.
Notemos também que Moisés tinha a vara de Deus com ele no outeiro — a vara com que havia ferido a rocha. Esta vara era a expressão ou símbolo do poder de Deus, o qual é visto igualmente na expiação e na intercessão. Quando a obra de expiação foi cum¬prida, Cristo tomou o Seu lugar no céu e enviou o Espírito Santo para fazer a Sua morada na Igreja; de forma que existe uma ligação inseparável entre a obra de Cristo e a obra do Espírito. Em cada uma delas é feita a aplicação do poder de Deus.

— CAPÍTULO 18 —

O JUDEU, O GENTIO
E A IGREJA DE DEUS

Chegamos agora ao fim de uma parte verdadeiramente notável do Livro de Êxodo. Vimos como Deus, no exercício da Sua perfeita graça, visitou e redimiu o Seu povo, tirando-o da terra do Egito e livrando-o primeiro da mão do Faraó e depois da mão de Amaleque. Demais, vimos no maná um símbolo de Cristo descendo do céu; e na rocha uma figura de Cristo ferido pelo Seu povo; e na água que brotava da rocha um símbolo do Espírito Santo. Então segue-se, em ordem notável e formosa, uma figura da glória vindoura, dividida nas suas três partes principais, a saber: Os judeus, os gentios e a Igreja de Deus.
Durante a época de rejeição de Moisés pelos seus irmãos, ele foi postodepartee favorecido com uma noiva — a companheira da sua rejeição. No princípio deste livro fomos levados a ver o caráter da relação de Moisés com esta esposa. Foi para ela "esposo sanguiná¬rio" . Isto é precisamente o que Cristo é para a Igreja. A sua união com Ele é baseada na morte e ressurreição; e ela é chamada à comunhão dos Seus sofrimentos. É, como sabemos, durante a época da incre¬dulidade de Israel, e da rejeição de Cristo, que a Igreja é formada; e quando estiver completa, segundo os desígnios de Deus e houver entrado nela a plenitude dos gentios (Rm 11:25), Israel entrará outra vez em cena.
Assim foi com Zípora e o antigo Israel. Moisés enviara-a para junto de seu sogro durante o perigo da sua missão junto de Israel; e logo que este saiu como povo inteiramente livre, lemos que "Jetro, sogro de Moisés, tomou a Zípora, a mulher de Moisés, depois que ele lha enviara, com seus dois filhos, dos quais um se chamava Gérson; porque disse: Eu fui peregrino em terra estranha; e o outro se chamava Eliézer, porque disse: O Deus de meu pai foi minha ajuda e me livrou da espada de Faraó. Vindo, pois, Jetro, o sogro de Moisés, com seus filhos e com sua mulher a Moisés no deserto ao monte de Deus, onde se tinha acampado, disse a Moisés: Eu, teu sogro Jetro, venho a ti, com tua mulher e seus dois filhos com ela. Então, saiu Moisés ao encontro de seu sogro, e inclinou-se, e beij ou-o, e perguntaram um ao outro como estavam, e entraram na tenda. E Moisés contou a seu sogro todas as coisas que o SENHOR tinha feito a Faraó e aos egípcios por amor de Israel, e todo o trabalho que passaram no caminho, e como o SENHOR os livrara. Ealegrou-se Jetro de todo o bem que o SENHOR tinha feito a Israel, livrando-o da mão dos egípcios. E Jetro disse: Bendito seja o SENHOR, que vos livrou das mãos dos egípcios e da mão de Faraó; que livrou a este povo de debaixo da mão dos egípcios. Agora sei que o SENHOR é maior que todos os deuses: porque na coisa em que se ensoberbeceram, os sobrepujou. Então, tomou Jetro, o sogro de Moisés, holocaustos e sacrifícios para Deus; e veio Arão, e todos os anciãos de Israel, para comerem pão com o sogro de Moisés diante de Deus" (versículos 2 a 12).
Esta cena é profundamente interessante. Toda a congregação se reuniu, em triunfo, perante o Senhor: o gentio apresentou sacrifíci¬os, e, para completar o quadro, a esposa do libertador juntamente com os filhos que Deus lhe havia dado, são introduzidos. É, em resumo, uma ilustração particularmente admirável do reino vindouro.
"O Senhor dará graça a glória" (SI 84:11). Vimos nas páginas anteriores deste livro muito da operação da "graça"; e aqui temos um quadro formoso de "glória" da autoria do Espírito Santo—um quadro que deve ser considerado particularmente importante por nos mostrar as várias esferas em que será manifestada essa glória.
"Os judeus, os gentios e a Igreja de Deus" são termos bíblicos que nunca poderão ser esquecidos sem transtornar o curso perfeito da verdade que Deus revelou na Sua Palavra. Existiram sempre desde que o mistério da Igreja foi inteiramente desenrolado pelo ministério do apóstolo Paulo e existirão através do milénio. Por isso, devem ter lugar na mente de todo o estudante espiritual da Escritura Sagrada.
O apóstolo ensina-nos, claramente, na sua Epístola aos Efésios, que o mistério da Igreja não foi dado a conhecer noutros séculos aos filhos dos homens como lhe fora revelado a ele. Mas, embora não houvesse sido diretamente revelado, acha-se representado em figura de uma maneira ou de outra; como, por exemplo, no casamento de José com uma mulher egípcia e no casamento de Moisés com uma mulher da Etiópia (uma mulher cusita; Nm 12:1) O tipo ou sombra de uma verdade é uma coisa muito diferente de uma revelação direta e positiva da mesma verdade. O grande mistério da Igreja não foi revelado até que Cristo, emglória celestial, o revelou a Saulo deTarso. Por isso, todos aqueles que procuram o desenrolar deste mistério na lei, nos profetas ou nos Salmos, achar-se-ão ocupados em labor ininteligente. Quando, contudo, o encontram revelado claramente naEpístola aos Efésios, podem, com interesse e proveito, traçar os seus símbolos nas Escrituras do Velho Testamento.
Deste modo, temos nos primeiros versículos deste capítulo uma cena milenial. Todas as esferas de glória se abrem em visão perante nós. "Os judeus" estão aqui como as grandes testemunhas na terra da fidelidade, da misericórdia e do poder de Jeová. E isto precisamen¬te que os judeus foram em séculos passados, é o que são atualmente e o que serão para sempre. "O gentio" lê no livro dos desígnios de Deus quanto aos judeus as suas mais profundas lições. Segue a história maravilhosa desse povo peculiar e eleito — "um povo terrível desde o seu princípio" (Is 18:2). Vê tronos e impérios derrubados e nações destruídas até os seus fundamentos, todo o homem e todas as coisas são compelidas a abrir caminho para que seja estabelecida a supremacia desse povo sobre o qual Deus pôs o Seu afeto. "Agora sei que o SENHOR é maior que todos os deuses; porque na coisa em que se ensoberbeceram, os sobrepujou" (versí¬culo 11); é o testemunho de um gentio quando a página da história judaica está aberta perante si.
Por fim, "a Igreja de Deus" coletivamente, como é ilustrada por Zípora, e os seus membros individualmente, conforme os vemos em figura nos filhos de Zípora, são apresentados como ocupando a mais íntima ligação com o libertador. Tudo isto é perfeito na sua ordem. Se nos pedirem provas, responderemos: "Falo como a enten¬didos, julgai vós mesmos o que digo" (1 Co 10:15).
Não pode fundar-se uma doutrina sobre um símbolo; porém, quando uma doutrina é revelada, pode discernir-se o símbolo dela com exatidão e estudá-la com proveito. Em todos os casos o discernimento espiritual é essencialmente necessário, quer seja para compreender a doutrina quer para discernir o símbolo: "...o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente" (ICo 2:14).

Chefes para a Administração
Desde o versículo 13 até ao fim do capítulo fala-se da nomeação de chefes para ajudarem Moisés na administração dos negócios da congregação. Isto foi feito por sugestão de Jetro, que temia que Moisés desfalecesse totalmente em consequência do seu trabalho. Em relação com este fato, pode ser útil considerar a nomeação dos setenta anciãos em Números, Capítulo 11. Vemos ali o espírito de Moisés esmagado sob o peso da responsabilidade que pesava sobre si, e dá lugar à angústia do seu coração nas seguintes palavras: "Por que fizeste mal a teu servo, e por que não achei graça aos teus olhos, que pusesses sobre mim a carga de todo este povo*?- Concebi eu, porventura, todo este povo1?- Gerei-o eu, para que me dissesses que o levasse ao colo, como o aio leva o que cria, à terra que juraste a seus pais£.. .Eu sozinho não posso levar a todo este povo, por que muito pesado é para mim. E, se assim fazes comigo, mata-me, eu te peço, se tenho achado graça aos teus olhos; e não me deixes ver o meu mal" (Nml 1:11-15).
Em todo este caso vemos como Moisés se retira de um lugar de honra. Se aprouve a Deus fazer dele o único instrumento da administração da Assembleia, isso foi para ele uma maior honra e um alto privilégio. É verdade que era uma grande responsabilidade; porém a fé teria reconhecido que Deus era amplamente suficiente para tudo. Todavia, Moisés perde o ânimo (servo abençoado como era) e diz, "eu sozinho não posso levar todo este povo, porque muito pesado é para mim. Mas ele não fora incumbido de levar todo o povo sozinho, porque Deus estava consigo. O povo não era demasiado pesado para Deus; era Ele que os suportava. Moisés era apenas o instrumento. Da mesma forma poderia ter dito que a sua vara levava o povo, porque o que era ele senão um simples instrumento nas mãos de Deus, da mesma forma que a vara o era nas suas? E neste ponto que os servos de Cristo falham constantemente; e a sua falta é tanto mais perigosa quanto é certo que se reveste da aparência de humildade. Fugir de uma grande responsabilidade dá a impressão de falta de confiança pessoal e de uma profunda humildade de espírito; porém, tudo que nos interessa saber é se Deus tem imposto essa responsabilidade. Sendo assim, Ele estará incontestavelmente conosco no seu desempenho; e, com a Sua companhia, podemos suportar todas as coisas. Com o Senhor o peso de uma montanha não é nada; sem Ele o peso de uma simples pena é esmagador. É uma coisa muito diferente se um homem, na vaidade do seu espírito, se apressa em tomar um fardo sobre os seus ombros, um fardo que Deus nunca teve intenção de ele levar, e, portanto, nunca o dotara para o conduzir; podemos, portanto, esperar vê-lo esmagado sob o peso. Porém, se é Deus que põe sobre ele esse fardo, Ele torna-o não só apto a conduzi-lo como lhe dá as forças necessárias.

O Ensinamento para o Servo de Cristo
O abandono de um posto divinamente indicado nunca é o fruto de humildade. Pelo contrário, a mais profunda humildade manifes-tar-se-á na permanência nesse posto em simples dependência de Deus. Quando recuamos ante algum serviço sob o fundamento de inaptidão é uma prova segura de estarmos ocupados com o ego — com nós próprios. Deus não nos chama para o serviço com base na nossa capacidade, mas, sim, na Sua; por isso, a menos que esteja ocupado com pensamentos a meu respeito ou com desconfiança n'Ele, não preciso abandonar qualquer posição de serviço ou teste¬munho por causa das muitas dificuldades relacionadas com ela. Todo o poder pertence a Deus, e é o mesmo quer esse poder atue por meio de um só instrumento ou mediante setenta; o poder é ainda o mesmo: contudo, se um instrumento recusa o cargo, tanto pior é para ele. Deus não obrigará ninguém a ocupar um lugar de honra, se não confiar em Si para o manter nele. O caminho está sempre aberto para poder descer do seu cargo e lançar-se no lugar onde a vil incredulidade quercolocar-nos.
Aconteceu assim com Moisés: queixou-se do fardo que devia levar, e o fardo foi imediatamente removido; porém com ele foi tirada também a grande honra de poder levá-lo. "E disse o SENHOR a Moisés: Ajunta-me setenta homens dos anciãos de Israel, de quem sabes que são anciãos do povo e seus oficiais; e os trarás perante a tenda da congregação, e ali se porão contigo. Então, eu descerei, e ali falarei contigo, e tirarei do Espírito que está sobre ti, e o porei sobre eles; e contigo levarão o cargo do povo, para que tudo sozinho o não leves" (Nml 1:16-17). Nenhum novo poder foi introduzido. Era o mesmo Espírito, que fosse num ou em setenta. Não havia mais valor ou virtude na natureza de setenta homens do que na de um só homem. "O Espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita" (Jo 6:63). Nada se ganhou, quanto ao poder, mas Moisés perdeu muito da sua dignidade.
Na segunda parte do capítulo onze de Números vemos como Moisés profere palavras de incredulidade, as quais lhe valeramuma severa reprimenda da parte do Senhor. "Seria pois encurtada a mão do SENHORA Agora verás se a minha palavra te acontecerá ou não" (versículo 23). Se o leitor comparar os versículos 11 a 15 com os versículos 21 e 22, verá que existe uma relação solene e clara. O homem que recua perante a responsabilidade, com fundamento na sua própria fraqueza, corre grande perigo de pôr em dúvida a suficiênciae plenitude dos recursos de Deus.
Esta cena ensina uma lição muito preciosa para todo o servo de Cristo que possa ser tentado a sentir-se só ou sobrecarregado com o seu trabalho. Convém que um tal servo se lembre que, onde o Espírito Santo está operando um só instrumento é tão bom e eficaz como setenta instrumentos; e onde Ele não opera, setenta não têm mais valor do que um só. Tudo depende da energia do Espírito Santo. Com Ele um só homem pode fazer tudo, sofrer tudo e suportar tudo.
Sem Ele setenta homens nada podem fazer. Que o servo solitário se recorde, para conforto e ânimo do seu coração fatigado, que, contanto que tenha consigo a presença e poder do Espírito Santo, não tem motivo para queixar-se da sua carga nem de suspirar por diminuição do seu trabalho. Se Deus honra um homem dando-lhe muito trabalho a fazer, regozije-se o tal no seu trabalho e não murmure; porque se murmurar pode perder rapidamente a sua honra. Deus não tropeça com dificuldades quando se trata de achar instrumen¬tos. Até das pedras podia levantar filhos a Abrão, e pode suscitar de essas memas pedras os instrumentos necessários para o cumpri¬mento da sua obra gloriosa.
Ah! quem tivera um coração mais disposto a servi-Lo! Um coração paciente, humilde, consagrado e despido de si mesmo! Um coração prontoaservircomoutrosedispostoaservirsó; um coração cheio de tal maneira de amor por Cristo, que encontra o seu gozo —o seu maior gozo—em servi-Lo, seja em que esfera for e qualquer que seja o caráter do serviço. Esta é certamente a necessidade especial dos dias em que nos caiu a nossa sorte. Que o Espírito Santo desperte em nossos corações um sentimento mais profundo da preciosidade excelente do nome de Jesus e nos habilite a dar uma resposta mais clara, completa e inequívoca ao amor imutável de Seu coração!

— CAPITULO 19 —

ISRAEL
AO PÉ DO MONTE SINAI

O Pacto da Graça
Eis-nos agora chegados a um ponto muito importante na histó¬ria de Israel. O povo fora conduzido ao pé do "monte palpável, acesso em fogo" (Hb 12:18). A cena de glória milenial, que nos apresenta o capítulo anterior, desaparecera. Fora apenas um momento breve de sol durante o qual fora proporcionada uma viva imagem do reino; porém o sol desvaneceu-se rapidamente e grossas nuvens amontoaram-se sobre esse "monte palpável", onde Israel, num espírito funesto e insensível de legalismo, abandonou o pacto de graça de Jeová pela aliança das obras do homem. Impulso fatal! Que foi seguido dos resultados mais funestos. Até aqui, como temos visto, nenhum inimigo pôde subsistir diante de Israel — nenhum obstáculo pôde deter a sua marcha vitoriosa. Os exércitos de Faraó haviam sido destruídos; Amaleque e o seu povo haviam sido passados a fio de espada: tudo fora vitória, porque Deus interviera a favor do Seu povo, em conformidade com as promessas que fizera a Abraão, Isaqueejacó.
Nos primeiros versículos do capítulo que temos perante nós, o Senhor resume de uma maneira tocante aquilo que tem feito por Israel: "Assim falarás à casa de Jacó e anunciarás aos filhos de Israel: Vós tendes visto o que fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de águias, evos trouxe a mim; agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz, e guardardes o meu concerto, então sereis a minha propriedade peculiar de entre todos os povos; porque toda a terra é minha. E vós me sereis um reino sacerdotal e o povo santo" (versículos 3 a 6). Note-se que o Senhor disse: "a minha voz" e "o meu concerto". Que dizia essa "voz" e que implicava esse "concerto"? A voz de Jeová tinha-se feito ou vir para impor as leis e as ordenações de um legislador severo e inflexível? De modo nenhum. Falou para dar liberdade aos cativos—para prover um refúgio da espada do destrui¬dor—,para preparar um caminho para que os remidos pudessem passar, para fazer descer pão do céu, para fazer brotar água da rocha. Tais foram as expressões graciosas e inteligíveis da "voz" do Senhor até ao momento em que Israel acampou defronte do monte.
Quanto ao Seu "concerto" era um concerto de pura graça. Não impunha condições, não podia nada, não punha nenhum fardo sobre os ombros nem jugo no pescoço. Quando "o Deus da glória apareceu" a Abrão em Ur dos caldeus (At 7:2), de certo que não lhe disse "farás isto" e "não farás aquilo". Oh! não; uma tal linguagem não seria segundo o coração de Deus. Ele prefere muito mais pôr uma mitra limpa sobre a cabeça do pecador do que pôr um jugo de ferro sobre o seu pescoço (Zc 3:5; Dt 28:48). A Sua palavra a Abraão foi: "DAR-TE-EI". A terra de Canaã não podia ser adquirida pelas obras do homem, mas devia ser dada pela graça de Deus. Assim era; e, no princípio do livro do Êxodo vemos Deus descendo em graça para cumprir a Sua promessa aos descendentes de Abrão. O estado em que encontrou essa posteridade não importava, tanto mais que o sangue do cordeiro Lhe dava um fundamento perfeitamente justo para realizar a Sua promessa. Evidentemente não havia prometido a terra de Canaã à posteridade de Abrão com base em qualquer coisa que houvesse antevisto neles, porque isto teria destruído a verda¬deira natureza de uma promessa. Em tal caso teria sido um pacto e não uma promessa: "ora as promessas foram feitas a Abraão", não por um pacto (veja-se Gálatas 3).
Por isso, no princípio desse capítulo 19, faz-se lembrar ao povo a graça com que o Senhor havia tratado com eles até ali, e recebem também a garantia daquilo que ainda hão-de ser, contanto que continuem a atender a "voz" celestial de misericórdia e a permane¬cer no "pacto" de graça. "Sereis a minha propriedade peculiar de entre todos os povos". Como podiam eles conseguir isto? Podiam consegui-lo aos tropeções pela escada da própria justiça e do legalismoi Seriam uma "propriedade peculiar" quando amaldiçoados pelas maldições de uma lei transgredida—violada antes mesmo de a haverem recebido? Seguramente que não. Logo, como ia ser esta "propriedade peculiar"? Permanecendo naquela posição em que o Senhor os viu quando obrigou o profeta ambicioso a exclamar: "Que boas são as tuas tendas, óJacólQue boas as tuas moradas, ó Israel! Como ribeiros se estendem, como jardins ao pé dos rios; como árvores de sândalo o SENHOR a plantou, como cedros junto às águas. De seus baldes manarão águas, e a sua semente estará em muitas águas; e o seu rei se exalçará mais do que Agague, e o seu reino será levantado. Deus o tirou do Egito; as suas forças são como as do unicórnio; consumirá as gentes, seus inimigos, e quebrará seus ossos, e com as suas setas os atravessará" (Nm 24:5 - 8).

Um Compromisso Presunçoso
Contudo, Israel não estava disposto a ocupar esta posição. Em vez de se regozijarem com "a santa promessa" de Deus, aventura-ram-se a tomar ovotomais presunçoso que lábios humanos podiam pronunciar. "Então, todo o povo respondeu a uma voz e disse: Tudo o que o SENHOR tem falado faremos" (versículo 8). Esta linguagem era ousada. Não disseram, "esperamos fazer" ou "procuraremos fazer" o que o Senhor disser; o que teria mostrado certo grau de descon¬fiança em si mesmos. Mas não: pronunciaram-se da maneira mais absoluta: "Faremos". Nem tampouco isto era a linguagem de alguns espíritos presunçosos, cheios de confiança em si mesmos que presumiam representar toda a congregação. Não; "Todo o povo respondeu a uma voz". Abandonaram unânimes a "santa promessa" —o "concerto santo."
E agora, veja-se o resultado. Logo que Israel pronunciou o seu "voto" singular, assim que decidiu "fazer" tudo o que o Senhor mandasse, deu-se uma mudança no aspecto das coisas. "E disse o SENHOR a Moisés: Eis que eu virei a únuma nuvem espessa... e marcarás limites ao povo em redor, dizendo: Guardai-vos, que não subais o monte, nem toqueis o seu termo; todo aquele que tocar o monte certamente morrerá". Vemos nesta passagem uma mudança notá¬vel: Aquele que acabava de dizer,"... vos levei sobre asas de águias e vos trouxe a mim", agora oculta-Se "numa nuvem espessa" e diz: "Marcarás limites ao povo em redor". Os acentos agradáveis de graça são trocados pelos "trovões e relâmpagos" do monte fume¬gante. O homem havia ousado falar das suas miseráveis obras na presença da magnificente graça de Deus. Israel dissera: "Faremos", e portanto é preciso que sejam postos à distância de forma a poder verse claramente o que é que podem fazer. Deus toma o lugar de distância moral; e o povo não pensa de modo nenhum em encurtá--la, porque todos estão cheios de temor e tremendo; e não era de admirar, porque a visão era; "terrível" — tão terrível que "Moisés disse: Estou todo assombrado e tremendo (Hb 12:25). Quem pode¬ria suportar a vista desse "fogo consumidor", que era a justa expressão da santidade divinal "...O SENHOR veio de Sinai, e lhes subiu de Seir; resplandeceu desde o monte Para, e veio com dez milhares de santos; à sua direita havia para eles o fogo da lei" (Dt 33:2). Otermo"fogo", aplicadoàlei, mostraa sua santidade. "O nosso Deus é um fogo consumidor" (Hb 12:29) — que não transige com o mal em pensamento, palavras ou ações.
Desta forma, pois, Israel cometeu um erro fatal em dizer, "faremos". Isto era fazer um voto que não podiam, ainda mesmo que quisessem, cumprir; e nós conhecemos aquele que disse "me¬lhor é que não votes do que votes e não pagues" (Ec 5:5). O próprio caráter do voto implica a competência de o cumprir; e onde está a competência do homem?- Para um pecador desamparado fazer um voto, seria o mesmo que um homem falido passar um cheque sobre um banco. Aquele que faz um voto nega a verdade quanto à sua própria condição e natureza. Está arruinado, que poderá fazer?-Encontra-se inteiramente sem forças, e não pode querer nem fazer nada bom. Israel cumpriu o seu voto?- Fizeram tudo que o Senhor lhes havia mandado? O bezerro de outro, as tábuas feitas em pedaços, o sábado profanado, as ordenações menosprezadas e aban¬donadas, os mensageiros de Deus apedrejados, o Cristo rejeitado e crucificado, e a resistência ao Espírito, são provas esmagadoras de como o homem violou os seus votos. Acontecerá assim sempre que a humanidade caída fizer votos.
Não se regozija o leitor cristão no fato de que a sua salvação eterna não descansa sobre os seus miseráveis votos e resoluções, mas sim sobre a "oblação do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez"? (Hb 10:10). Oh, sim, é sobre este fato que está fundado o nosso gozo, que nunca pode falhar. Cristo tomou todos os nossos votos sobre Si Mesmo e cumpriu-os gloriosamente para todo o sempre. ASua vida de ressur¬reição corre nos Seus membros e produz neles resultados que os votos e as exigências da lei não podiam produzir. Ele é a nossa vida e a nossa justiça. Que o Seu nome seja precioso para os nossos corações e que a Sua causa domine sempre anossa vida. Que a nossa comida e a nossa bebida seja gastar e gastarmo-nos no Seu glorioso serviço.
Não posso terminar este capítulo sem mencionar uma passa¬gem do Livro de Deuteronômio, que pode oferecer alguma dificul¬dade para certos espíritos e que se relaciona com o assunto que acabamos de tratar. "Ouvindo, pois, o SENHOR a voz das vossas palavras, quando me faláveis a mim, o SENHOR me disse-. Eu ouvi a voz das palavras deste povo, que te disseram; em tudo falaram eles bem" (Dt 5:28). Poderia parecer, segundo estas palavras, que o Senhor aprovava que eles tivessem feito um voto; porém, se o leitor se der ao trabalho de ler todo o contexto, desde o versículo 24 ao versículo 27, verá imediatamente que não se trata de um voto, mas da expressão do seu terror por causa das consequências do seu voto. Não podiam suportar aquilo que lhes era ordenado. "Se ainda mais ouvíssemos a voz do SENHOR, nosso Deus, morreríamos. Porque, quem há, de toda a carne, que ouviu a voz do Deus vivente falando do meio do fogo, como nós, e ficou vivo? Chega-te tu, e ouve tudo o que disser o SENHOR nosso Deus; e tu nos dirás tudo o que te disser o SENHOR nosso Deus, e o ouviremos, e o faremos". Era esta a confissão da sua incapacidade para se encontrarem com o Senhor sob o aspecto terrível a que o seu legalismo orgulhoso os havia levado. É impossível que o Senhor possa aprovar o abandono de graça imutável por um fundamento movediço de "obras da lei".

— CAPÍTULO 20 —

A LEI


A Lei e a Graça
É da maior importância compreender o verdadeiro caráter e o objeto da lei moral, como nos é apresentada neste capítulo. Existe uma tendência no homem para confundir os princípios da lei com graça, de sorte que nem a lei nem a graça podem ser perfeitamente compreendidas. Alei é despojada da sua austera e inflexível majes¬tade, e a graça é privada de todos os seus atrativos divinos. As santas exigências de Deus ficam sem resposta, e as profundas e múltiplas necessidades do pecador permanecem insolúveis pelo sistema anómalo criado por aqueles que tentam confundir a lei com a graça. Com efeito, nunca podem confundir-se, visto que são tão distintas quanto o podem ser duas coisas. Alei mostra-nos o que o homem deveria ser; enquanto que a graça demonstra o que Deus é. Como poderão, pois, ser unidas num mesmo sistema1?- Como poderia o pecador ser salvo por meio de um sistema formado em parte pela lei e em parte pela graça1? Impossível: ele tem de ser sal vo por uma ou por outra.
A lei tem sido às vezes chamada "a expressão do pensamento de Deus". Mas esta definição é inteiramente inexata.. Se a considerás¬semos como a expressão daquilo que o homem deveria ser, estaríamos mais perto da verdade. Se eu considerar os dez mandamentos como a expressão do pensamento de Deus, então, pergunto, não há nada mais no pensamento de Deus senão "farás" isto e "não farás" aquilo? Não há graça, nem misericórdia nem bondade? Deus não manifes¬tará aquilo que é, nem revelará os segredos profundos desse amor que enche o Seu coração? Não existe nada mais no coração de Deus senão exigências e proibições severas"? Se fosse assim, teríamos de dizer que "Deus é lei"emvezde dizermos que" Deus é amor". Porém, bendito seja o Seu nome, existe muito mais em Seu coração do que jamais poderão expressar os "dez mandamentos" pronunciados no monte fumegante. Se quero saber o que Deus é, devo olhar para Cristo; "porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade" (Cl 2:9). "PorquealeifoidadaporMoisés;agraçaeaverdadevieram por Jesus Cristo" (Jo 1:17). Certamente, na lei achava-se uma certa medida de verdade; continha a verdade quanto àquilo que o homem deveria ser. Como tudo que emana de Deus, a lei era perfeita — perfeita para alcançar o fim a que era destinada; porém esse fim não era, de modo nenhum, revelar, perante pecadores culpados, a natu¬reza e o caráter de Deus. Não havia graça nem misericórdia. "Que¬brantando alguém a lei de Moisés, morre sem misericórdia" (Hb 10.28). "Ohomem que fizer estascoisas viverá por elas" (Lv 18:5; Rm 10:5). "Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las" (Dt 27:26; Gl 3:10). Nada disto era graça. Com efeito, o monte Sinai não era o lugar para se procurar tal coisa. Jeová revelou-Se ali em majestade terrível, no meio da obscuridade, trevas, tempestade, trovões e relâmpagos. Estas circunstâncias não são aquelas que acompanham uma dispensação de graça e misericórdia; mas eram próprias de uma dispensação de verdade e justiça: e a lei não era mais que isso.
Na lei Deus declara o que o homem deveria ser, e pronuncia a maldição sobre ele se o não for. Ora quando o homem se examine à luz da lei descobre que é precisamente aquilo que a lei condena. Como poderá ele, portanto, obter a vida por meio da lerv A lei propõe a vida e a justiça como os fins a alcançar, guardando-a; mas mostra-nos, desde o primeiro momento, que nos encontramos num estado de morte e iniquidade. Precisamos desde o primeiro momento das mesmíssimas coisas que a lei propõe alcançar-nos no fim. Como vamos nós, portanto, obtê-las? Para cumprir aquilo que a lei requer é preciso que eu tenha vida; e para ser o que a lei exige devo possuir a justiça; e se eu não tiver vida e justiça sou "maldito". Porém, o fato é que eu não tenho uma nem a outra. Que devo então f azer4- Eis a questão. Que respondam aqueles que querem ser "doutores da lei" (1 Tm 1.7): que dêem uma resposta própria para uma consciência reta, curvada sob o sentido duplo da espiritualidade e inflexibilidade da lei e a sua carnalidade desesperada.

O Propósito da Lei
A verdade é que, como nos ensina o apóstolo, a lei veio para que a ofensa abundasse (Rm5:20). Isto mostra-nos claramente o verda¬deiro objetivo da lei: veio a propósito para que o pecado se fizesse excessivamente maligno (Rm 7:13). Era, em certo sentido, como um espelho perfeito enviado para revelar ao homem o seu desarranjo moral. Se eu me puser diante de um espelho com o meu vestuário desarranjado, o espelho mostra-me o desarranjo, mas não o põe em ordem. Se eu fizer descer sobre um muro tortuoso um prumo, o prumo mostra a tortuosidade, mas não a altera. Se eu sair numa noite escura com uma luz, esta revela-me todos os obstáculos e dificulda¬des que se acham no caminho, mas não os remove. Além disso, o espelho, o prumo, e a luz não criam os males que revelam distintamente: nem os criam nem os afastam, apenas os revelam. O mesmo acontece com a lei: não cria o mal no coração dohomem nem tampouco o tira; mas revela-o com infalível exatidão.
"Que diremos pois4 É a lei pecado1?- De modo nenhum; mas eu não conheci o pecado senão pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência se a lei não dissesse: Não cobiçarás" (Rm 7:7). O apóstolo não diz que não teria tido "concupiscência". Não, mas apenas que não a teria conhecido. A "concupiscência" existia; mas ele estava às escuras quanto ao fato, até que a lei, como a luz do Deus Onipotente, brilhou nos recessos tenebrosos do seu coração e revelou o mal que nele havia Assim como um homem numa câmara escura pode estar rodeado de poeira e confusão sem contudo poder ver nada por causa da escuridão. Mas deixai que os raios de sol penetrem ali e ele distinguirá imediatamente tudo. São os raios de sol que formam o pó? Certamente que não. O pó encontra-se ali, e os raios de sol apenas o detectam e revelam. Isto é apenas uma simples ilustração dos efeitos da lei: julga o caráter e a condição do homem. Julga o pecador e encerra-o debaixo da maldição: vem para julgar o que ele é e amaldiçoa-o se ele não é o que ela lhe diz que deve ser.

A Lei Condena o Pecador
É, portanto, claramente impossível que alguém possa obter a vida e a justificação por meio daquilo que só pode amaldiçoá-lo; e a menos que a condição do pecador e o caráter da lei sejam inteira¬mente alterados, a lei não pode fazer mais que amaldiçoá-lo. A lei não é indulgente com as fraquezas, e não reconhece a obediência sincera, embora imperfeita. Se fosse este o caso, não seria aquilo que é, "santa, justa e boa" (Rm7:12). É justo que o pecador não possa obter vida pela lei porque a lei é aquilo que é. Se o pecador pudesse obter vida pela lei, a lei não seria perfeita, ou então ele não seria pecador. É impossível que o pecador possa obter vida por meio de uma lei perfeita, porque, embora seja perfeita, tem de condená-lo: a sua perfeição absoluta manifesta e sela a ruína e condenação do homem. "Porisso, nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado" (Rm 3:20). O apóstolo não diz que o pecado é pela lei, mas somente que por ela vem o conhecimento do pecado. "Porque até à lei estava o pecado no mundo, mas o pecado não é imputado não havendo lei" (Rm 5:13). O pecado existia, e precisava apenas da lei para o manifestar na forma de "transgressão". É como se eu dissesse a meu filho: "não deves tocar nessa faca". A minha proibição revela a tendência do seu coração para fazer a sua própria vontade.
O apóstolo João diz que o "o pecado é iniquidade" (1 Jo 3:4). A palavra "transgressão" não traduz o verdadeiro pensamento do Espírito Santo nesta passagem (1). Para que haja transgressão é necessário que seja estabelecida uma regra ou linha de conduta definida; porque transgressão quer dizer cruzar uma linha proibi¬da; essa linha têmo-la na lei. Tomemos por exemplo algumas das suas proibições: "Não matarás", "Não cometerás adultério", "Não furtarás". Aqui tenho, pois, uma regra ou linha posta diante de mim; porém descubro que tenho em mim mesmo os próprios princípios contra os quais estas proibições são expressamente dirigidas. Ainda mais, o próprio fato de me ser proibido matar mostra que o homicídio está em minha natureza. Não havia necessidade de me ser proibido fazer uma coisa que eu não tinha inclinação para fazer; porém, a revelação da vontade de Deus, quanto ao que eu deveria ser, mostra a tendência da minha vontade para ser aquilo que não devo. Isto é bem claro, e está perfeitamente de acordo com todoo ensino apostólico sobre este assunto.
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(¹) Ao contrário da King James Version (inglês), que emprega a palavra transgressão, as traduções em português de João Ferreira de Almeida e de António Pereira de Figueiredo empregam o vocábulo iniquidade, o qual nos parece estar mais conforme com o original (N. do T.).

Não somos Justificados pela Lei
Muitos, contudo, admitem que não podemos obter vida pela lei, mas sustentam, ao mesmo tempo, que a lei é a nossa regra de vida. Ora, o apóstolo declara que "Todos aqueles... que são das obras da lei, estão debaixo da maldição" (Gl 3:10). Pouco importa a sua condição individual, se estão sobre o terreno da lei, acham-se, necessariamente, sob a maldição. Pode ser que alguém diga: "Eu estou regenerado, e, portanto, não estou exposto à maldição." Porém, se a regeneração não retira o homem do terreno da lei, não pode pô-lo para lá dos limites da maldição da lei. Se o cristão estiver debaixo da lei, está exposto, necessariamente, à maldição da lei. Mas, que tem que ver a lei com a regeneração1?- Onde é que vemos que se trate da regeneração no capítulo 20 de Êxodos A lei tem apenas uma pergunta a fazer ao homem—uma pergunta curta, solene e direta —, a saber: "És tu o que deverias seri" Se a resposta é negativa, a lei não pode senão lançar os seus terríveis anátemas sobre o homem e matá-lo. E quem reconhecerá mais prontamente e mais profundamente que, em si mesmo, não é aquilo que deveria ser senão o homem verdadeiramente regenerado?- Portanto, se está debaixo da lei, está, inevitavelmente, debaixo da maldição. Não é possível que a lei diminua as suas exigências ou se misture com a graça. Os homens procuram sempre baixar o seu padrão; sentem que não podem elevar-se à medida da lei, e, então, procurar rebaixá-la até si; porém este esforço é vão: a lei permanece em toda a sua pureza, majestade e inflexibilidade austera, e não aceitará nada menos que uma obediência perfeita; qual é o homem, regenerado ou não, que pode intentar obedecer assim?- Dir-se-á: "Nós temos a perfeição em Cristo". Sem dúvida, mas não é pela lei, mas, sim, pela graça; e não podemos, de nenhum modo, confundir as duas dispensações. As Escrituras ensinam-nos claramente que não somos j ustif içados pela lei; nem a lei é a nossa regra de vida. Aquilo que só pode amaldiçoar nunca poderá justificar, e aquilo que só pode matar nunca poderá ser uma regra de fé. Seria como se um homem tentasse fazer fortuna valendo-se de uma ação de falência movida contra si.

Um Jugo Impossível de Levar
O capítulo 15 do livro de Atos mostra-nos como o Espírito Santo respondeu à tentativa que se pretendera fazer para pôr os crentes sob a lei, como regra de vida. "Alguns, porém, da seita dos fariseus, que tinham crido, se levantaram, dizendo que era mister circuncidá-los e mandar-lhes que guardassem a lei de Moisés" (versículo 5). Isto não era mais do que o silvo da antiga serpente fazendo-se ouvir nas sugestões sinistras e desanimadoras desses primitivos legalistas. Mas vejamos como o assunto foi resolvido pela poderosa energia do Espírito Santo e a voz unânime dos doze apóstolos e de toda a Igreja. "E, havendo grande contenda, levan-tou-se Pedro e disse-lhes: Varões irmãos, bem sabeis que já há muito tempo Deus me elegeu, dentre vós, para que os gentios ouvissem da minha boca a palavra do evangelho e cressem". — O quê? As exigências e as maldições da lei de Moisés? Não; bendito seja Deus, esta não era a mensagem que Deus queria fazer chegar aos ouvidos de pecadores perdidos. Ouvissem, então, o quê"? "OUVISSEM DA MINHA BOCA A PALAVRA DO EVANGE¬LHO E CRESSEM". Aqui estava a mensagem que correspondia ao caráter e natureza de Deus. Ele nunca teria perturbado os homens com uma linguagem triste de exigências e proibições. Esses fariseus não eram Seus mensageiros — muito pelo contrário. Não eram portadores de boas novas, nem anunciadores da paz, e portanto os seus pés eram tudo menos "formosos" aos olhos d'Aquele que Se deleita em misericórdia.
"Agora, pois", continua o apóstolo, "porque tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportara" Esta linguagem era grave e forte. Deus não queria pôr "um jugo sobre a cerviz" daqueles cujos corações haviam sido libertados pelo evangelho da paz. Antes pelo contrário, desejava exortá-los a permanecerem na liberdade de Cristo e a não se meterem "outra vez debaixo do jugo da servidão" (Gl. 5:1). Não enviaria aqueles a quem havia recebido em Seu seio de amor "ao monte palpável" para os aterrorizar com a "escuridão", "trevas", e "tempestade" (Hb 12:18). Isso seria impossível. "Mas cremos", diz Pedro, "que seremos salvos PELA GRAÇA DO SE¬NHOR JESUS CRISTO, como eles também" (At 15:11). Tanto os judeus, que tinham recebido a lei como os gentios, que nunca a receberam, deviam agora ser "salvos" pela "graça". E não somente deviam ser "salvos pela graça", mas estar "firmes" na graça (Rm 5:2) e crescer na graça (2Pe 3:18). Ensinar outra coisa era tentar a Deus. Esses fariseus subvertiam os próprios fundamentos da fé cristã; e o mesmo fazem todos aqueles que procuram pôr os crentes debaixo da lei. Não existe mal ou erro mais abominável aos olhos de Deus do que o legalismo. Escutai a linguagem enérgica — os acentos de justa indignação—de que se serve o Espírito Santo, a respeito desses doutores da lei: "Eu quereria que fossem cortados aqueles que vos andam inquietando" (Gl 5:12).
Mas, deixai-me perguntar, os pensamentos do Espírito Santo mudaram a este respeitou Já deixou de ser tentar a Deus pôr um jugo sobre a cerviz do pecadora E segundo a Sua vontade graciosa que a lei seja lida aos ouvidos dos pecadores? Responda o leitor a estas interrogações à luz do capítulo 15 de Atos e da Epístola aos Gálatas. Estas Escrituras, ainda mesmo que não houvesse outras, são sufici¬entes para provar que a intenção de Deus nunca foi que os Gentios "ouvissem a palavra" da lei. Se fosse essa a Sua intenção, o Senhor teria, certamente, escolhido alguém para a proclamar aos seus ouvidos. Mas não; quando proclamou a Sua "lei terrível", Ele falou numa só língua; porém quando proclamou as boas novas de salva¬ção, pelo sangue do Cordeiro, falou na língua "de todas as nações que estão debaixo do céu". Falou de tal moâoque cada um, na sua própria língua em que havia nascido, pudesse ouvir a doce história da graça (At 2:1 -11).

A Mensagem da Graça
Além disso, quando Deus deu, no monte Sinai, as exigências severas do concerto das obras, dirigiu-Se exclusivamente a um povo. A sua voz foi ouvida unicamente dentro dos estreitos limites da nação judaica; porém, quando, nas planícies de Belém, "o anjo do Senhor" proclamou "novas de grande alegria", acrescentou estas palavras características, "que serápara todo o povo" (Lc 2:10). Quando o Cristo ressuscitado enviou os Seus arautos de salvação, a Sua mensagem era redigida assim: "Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda a criatura" (Mc 16:15). A onda poderosa da graça, que tinha a sua origem no seio de Deus e o seu leito no sangue do Cordeiro, estava destinada a elevar-se, na energia irresistível do Espírito Santo, muito acima dos estreitos limites de Israel e rolar através do comprimento e largura de um mundo manchado de pecado. "Toda a criatura" devia ouvir "na sua própria língua" a mensagem da paz, a palavra do evangelho, o relato da salvação pelo sangue da cruz.
Finalmente, para que nada pudesse faltar para dar a prova aos nossos corações legalistas que o monte Sinai não era, de modo nenhum, o lugar onde os segredos profundos do coração de Deus foram revelados, o Espírito Santo disse, tanto por boca de um profeta como de um apóstolo: "Quão formosos os pés dos que anunciam a paz, dos que anunciam coisas boas!" (Is 52:7; Rm 10:15). Porém, daqueles que queriam ser doutores da mesma lei o Espírito Santo disse: "Eu quereria que fossem cortados aqueles que vos andam inquietando" (GI5:12).

A Lei e o Evangelho
Desta forma, é evidente que a lei não é nem o fundamento de vida para o pecador nem a regra de vida para o cristão. Cristo é tanto uma coisa como a outra. Ele é a nossa vida e a nossa regra de vida. Alei só pode amaldiçoar e matar. Cristo é a nossa vida e justiça. Ele fez-Se maldição por nós sendo pregado no madeiro. O Senhor desceu ao lugar onde estava o pecador—ao lugar da morte e do juízo —, e, havendo, pela Sua morte, cumprido inteiramente tudo que era ou poderia ser contra nós, tornou-Se, na ressurreição, a origem de vida e o fundamento de justiça para todos os que crêem no Seu nome. Possuindo assima vida e a justiça n'Ele, somos chamados para andar, não apenas como a lei ordena, mas "como ele andou" (1 Jo 2:6). Será desnecessário afirmar que matar, cometer adultério ou roubar, são atos diretamente opostos à moral cristã. Mas se um cristão regulasse a sua vida segundo esses mandamentos ou de acordo com o decálogo produziria esses frutos raros e delicados de que fala a espístola aos Efésios1?- Poderiam os dez mandamentos fazer com que um ladrão não roubasse mais e trabalhasse a fim de poder ter que dar4 Trans¬formariam jamais um ladrão num homem laborioso e liberais Não, por certo. A lei diz: "Não furtarás"; mas acaso diz, "dá àquele que está em necessidade" — vai, dá de comer ao teu inimigo, veste-o e abençoa-o —, vai e alegra por teus sentimentos benevolentes e teus atos beneficentes o coração daquele que procura sempre prejudicar-te? De modo nenhum; e, contudo, se eu estivesse sob a lei, como regra, ela só podia amaldiçoar-me e matar-me. Como pode ser isto, sendo o padrão do Novo Testamento muito mais elevado"? Éporque sou fraco e a lei não me dá forças nem me mostra misericór¬dia. A lei exige força daquele que não tem nenhuma eantaldiçoa-o se ele não pode mostrá-la. Mas o evangelho dá forças àquele que não tem nenhuma, e abençoa-o na manifestação dessa força. A lei propõe a vida como o fim da obediência; o evangelho dá vida como o próprio e único fundamento de obediência.
Mas, para não fatigar o leitor à força de argumentos, pergunto, se a lei é, realmente, a regra de vida do crente, em que parte do Novo Testamento se apresenta ela assima Evidentemente o apóstolo não tinha tal pensamento quando disse. "Porque, em Cristo Jesus, nem a circuncisão nem a incircuncisão têm virtude alguma, mas sim o ser um nova criatura. E, a todos quantos andarem conforme esta regra, paz e misericórdia sobre eles e sobre o Israel de Deus" (Gl 6:15-16). Qual regra? A lei?- Não, mas sim a "nova criatura".
Em capítulo 20 de Êxodo não encontramos uma só palavra quanto à "nova criação". Pelo contrário, este capítulo é dirigido ao homem tal qual ele é, no seu estado natural da velha criação, e põe-no à prova para saber o que ele pode realmente fazer. Ora se a lei era a regra pela qual os crentes deviam andar, por que pronuncia o apóstolo a sua bênção sobre os que andam segundo uma regra totalmente diferen-tei Por que não diz ele, "a todos quantos andarem conforme a regra dos dez mandamentos"1? Não é evidente, segundo esta passagem, que a Igreja de Deus tem uma regra mais elevada segundo a qual deve andara É, indiscutivelmente. Os dez mandamentos, embora façam parte, como todos os verdadeiros crentes admitem, do cânon de inspiração, nunca poderiam ser a regra de fé para todo aquele que tenha, pela graça infinita, sido introduzido na nova criação—todo aquele que tem recebido nova vida em Cristo.

A Lei é Perfeita
Mas, pode perguntar-se, "a lei não é perfeita? E se é perfeita que mais pode desejar-se?- A lei é divinamente perfeita. Na verdade, a própria perfeição da lei é a razão de amaldiçoar e matar aqueles que não são perfeitos e pretendem subsistir perante ela. "A lei é espiri¬tual, mas eu sou carnal" (Rm 7:14). É inteiramente impossível fazer-se uma ideia justada perfeiçãoeespiritualidadedalei. Porém, esta lei perfeita estando em contato com a humanidade caída—esta lei espiritual entrando em contato com a mente carnal—só podia produzir a "ira" e a "inimizade" (Rm 4:15; 8:7). Por quê1?- É porque a lei não é perfeita?- Ao contrário, é porque ela o é e o homem é pecador. Se o homem fosse perfeito cumpriria a lei em toda a sua perfeição espiritual; e até mesmo no caso de crentes verdadeiros, embora tragam ainda consigo uma natureza corrompida, o apósto¬lo ensina-nos: "Para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o espírito" (Rm 8:4): ".. .porque quem ama aos outros cumpriu a lei... O amor não faz mal ao próximo. De sorte que o cumprimento da lei é o amor" (Rm 13:8 e 10). Se eu amar o próximo não furtarei aquilo que lhe pertence; pelo contrário, procurarei fazer-lhe todo o bem que puder. Tudo isto é claro e fácil de compreender por uma alma espiritual; mas não toca na questão da lei, quer seja como fundamento de vida do pecador ou de regra de vida para o crente.

Os dois grandes Mandamentos
Se considerarmos a lei sob as suas duas partes importantes, vemos que ordena ao homem amar a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças, e amarão próximo como a si mesmo. Tal é o resumo da lei. Eis o que a lei exige, e nada menos. Mas qual é o filho caído de Adão que j amais pôde responder a esta dupla exigência da lei4- Qual é o homem que pode dizer que ama Deus desta maneirai "...a inclinação da carne" (quer dizer, a inclinação que temos por natureza) "é inimizade contra Deus" (Rm 8:7). O homem aborrece a Deus e os Seus caminhos. Deus veio na Pessoa de Cristo e manifestou-Se aos homens, não na magnificência esmagadora da Sua majestade, mas com todo o encanto e a doçura de graça perfeita e condescendência. Qual foi o resultado? O homem aborreceu a Deus: "...me aborreceram a mime a meu Pai" (Jo 15:24). Mas dirá alguém, "ohomem devia amar a Deus". Sem dúvida, e merece a morte e a perdição eterna se o não fizer. Mas poderá a lei produzir este amor no coração do homemi Era esse o seu fim? De maneira nenhuma, "porque a lei opera a ira". A lei encontra o homem num estado de inimizade contra Deus; e, sem alterar nada desse estado — porque esse não era o seu objetivo — manda que ele ame a Deus de todo o seu coração, e amaldiçoa-o se o não fizer. Não pertencia ao domínio da lei alterar ou melhorar a natureza do homem; nem tampouco podia dar-lhe o poder de cumprir as suas justas exigências. Dizia: "Faze isto é viverás". Mandava que o homem amasse a Deus. Não revelava aquilo que Deus era para o homem, mesmo na sua culpa e ruína; mas dizia ao homem aquilo que ele deveria ser para Deus.
Era uma obra triste. Não se via em tudo isto o desenrolar dos atrativos poderosos do caráter divino, produzindo no homem verdadeiro arrependimento para com Deus, fundindo o seu cora¬ção de gelo e elevando a sua alma em verdadeiro af eto e adoração sincera. Não; era um mandamento inflexível para amar a Deus; e, em vez de produzir amor, opera "a ira"—não porque não devesse ser amado, mas porque o homem era pecador.
Depois, lemos; "Amarás ao teu próximo como a ti mesmo". Como pode "o homem natural" fazer isto? Ama ao seu próximo como a si mesmo?- É este o princípio que se observa nas câmaras de comércio, na bolsa, nos bancos, nos negócios, nas feiras e nos mercados deste mundo"?- Ah, não! O homem não ama o seu próximo como a si mesmo. Sem sombras de dúvida, deveria fazê-lo, e se a sua condição fosse boa, ele o faria. Mas é mau — inteiramente mau—e a menos que nasça de novo da Palavra e do Espírito Santo, não pode ver nem entrar no reino deDeus(Jo3:3-5).Aleinãopode produzir este novo nascimento. Mata "o homem velho", mas não cria, nem pode criar "ohomemnovo".Comefeito, sabemos que o Senhor Jesus reuniu na Sua gloriosa Pessoa tanto Deus como o nosso próximo, visto que era, segundo a verdade fundamental da doutrina cristã, "Deus manifestado em carne" (1 Tm 3:16). Como foi Ele tratado pelo homem'? Amou-0 de todo o seu coração ou como a si mesmo*?- Ao contrário: crucificou-0 entre dois salteadores depois de haver, antecipadamente, preferido um ladrão e malfeitor a este bendito Senhor que andara fazendo bem — que tinha vindo da eterna morada de luz e amor, sendo Ele Próprio a personificação viva dessa luz e desse amor — Cujo coração tinha sempre palpitado com a mais simpatia pela necessidade humana e Cuja mão estivera sempre disposta a enxugar as lágrimas do pecador e a aliviar os seus sofrimentos. Assim, contemplando a cruz de Cristo, vemos nela uma demonstração irrefutável do fato que não está ao alcance da natureza ou capacidade do homem guardar a lei.

A Adoração
Depois de tudo que temos visto, há um interesse particular para o homem espiritual observar a posição relativa de Deus e o pecador no Hm deste memorável capítulo. "Então, disse o SENHOR a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel:... Um altar de terra me farás e sobre ele sacrificarás os teus holocaustos, e as tuas ofertas pacíficas e as tuas ovelhas, e as tuas vacas; em todo lugar onde eu fizer celebrar a memória do meu nome, VIREI ATI E TE ABENÇOAREI. E, se me fizeres um altar de pedras, não o farás de pedras lavradas; se sobre ele levantares o teu buril, profaná-lo-ás. Não subirás também por degraus ao meu altar, para que a tua nudez não seja descoberta diante deles" (versículos 22 á 26).
Não vemos nesta passagem o homem na posição de fazer obras, mas na de um adorador: e isto no fim do capítulo 20 do Êxodo. Este fato ensina-nos claramente que o ambiente de Sinai não é aquele que Deus quer que o pecador respire—o monte de Sinai não é o lugar próprio para o encontro de Deus com o homem:".. .em todo o lugar onde eu fizer celebrar a memória do meu nome virei a ti e te abençoarei". Como esse lugar onde Jeová faz celebrar a memória do Seu nome, e onde vem para abençoar o Seu povo em adoração, é diferente dos terrores do monte fumegante!
Mas, além disso, pode encontrar-Se com o pecador num altar sem pedras lavradas ou degraus—um lugar de culto cuja constru¬ção não necessita da arte do homem ou esforço humano para dele se aproximar. As pedras lavradas por mão do homem só podiam manchar o altar e os degraus só podiam descobrir a "nudez" humana. Que símbolo admirável do lugar onde Deus encontra agora o pecador, a própria Pessoa e obra de Seu Filho, Jesus Cristo, em Quem todas as exigências da lei e da justiça e da consciência são perfeitamente cumpridas! Em todos os tempos e em todos os lugares, o homem tem estado sempre pronto, de um modo ou de outro, a levantar os seus instrumentos na construção do seu altar ou para se aproximar dele pelos degraus de sua própria invenção. Porém, o resultado dessas tentativas tem sido a contaminação e a nudez... "todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças, como trapo da imundícia; e todos nós caímos como a folha, e as nossas culpas, como um vento, nos arrebatam" (Is 64:6). Quem se atreveria a aproximar-se de Deus com um vestuário de "trapo da imundície?" Ou quem poderá adorá-Lo na sua "nudeza" Que maior absurdo poderia haver do que pensar em chegar à presença de Deus de um modo que necessariamente inclui contaminação ou nudeza E contudo sucede assim sempre que o esforço humano é empregado para abrir o caminho para Deus. Não somente esse esforço é desnecessário como está marcado com a contaminação e a nudez. Deus veio tão perto do pecador, até mesmo à profundidade da sua ruína, que não há necessidade de ele levantar o instrumento da legalidade ou de subir os degraus da justiça própria — fazê-lo é apenas expor a sua imundícia e a sua nudez.
São estes os princípios com que o Espírito Santo termina esta parte notável deste livro inspirado. Que Deus os inscreva em nossos corações de forma a podermos compreender claramente a diferença essencial entre a LEI e a GRAÇA.

— CAPITULO 21 a 23 —

AS ORDENANÇAS
E AS PENALIDADES

A Infinita Condescendência de Deus para cora o Homen
O estudo desta parte do Livro do Êxodo está calculado para compenetrar o coração do significado da sabedoria inescrutável e infinita bondade de Deus. Com este estudo podemos formar uma ideia de um reino governado por leis estabelecidas por Deus. Pode¬mos ver nele também a maravilhosa condescendência d'Aquele que, não obstante ser o grande Deus do céu e da terra pode, todavia, curvar-Se para julgar entre os homens a morte de um boi, o empréstimo de um vestido ou a perda do dente de um servo. "Quem é como o SENHOR nosso Deus, que habita nas alturas; que se curva para ver o que está nos céus ena terral" (Sl 113:5-6). Governa o universo e, todavia, pode ocupar-Se com o suprimento de vestuário para uma das Suas criaturas. Dirige o vôo dos anjos e toma nota do rastejar de um verme. Humilha-Se a Si Próprio para regular o movimento dos inumeráveis astros que se movem no espaço infinito e para registrar a queda de um pardal.
Quando ao caráter das leis apresentadas no primeiro destes capítulos, podemos aprender nele uma lição dupla. Essas leis e ordenações dão um testemunho duplo: trazem-nos uma mensa¬gem e põem perante os nossos olhos dois lados de um quadro. Falam de Deus e do homem.
Em primeiro lugar, quando a Deus, vêmo-Lo decretar leis que mostram justiça perfeita, estrita e imparcial. "Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe". Tal era o caráter das leis, dos estatutos e dos juízos por meio dos quais Deus governava o Seu reino terrestre de Israel. Previu-se tudo, defenderam-se todos os interesses, e atenderam-se todas as reclamações. Não houve parci¬alidade, não se fez diferença entre ricos e pobres. A balança em que se pesaram as reivindicações de cada homem foi afinada com precisão divina, de forma que ninguém pudesse justamente apelar de uma decisão. A toga pura da justiça não podia ser manchada com as nódoas imundas dos suborno, da corrupção ou da parcialidade. Os olhos e as mãos de um Legislador divino precaveram tudo; e o Executivo divino tratou inflexivelmente com todo o delinquente. O golpe da justiça caiu somente sobre a cabeça do culpado, enquan¬to que toda a alma obediente foi protegida no gozo de todo os seus direitos e privilégios.
Em segundo lugar, quanto ao homem, é impossível ler todas estas leis sem se ficar impressionado com a declaração que, indireta, mas realmente, fazem da sua depravação. O fato de o Senhor ter de promulgar leis contra certos crimes prova que o homem era capaz de os cometer. Se essa capacidade ou tendência não existisse no homem, não haveria necessidade da promulgação das leis. Ora, há muitas pessoas que, se as abominações grosseiras proibidas por este capítulo lhes fossem relatadas podiam sentir-se tentadas a adoptar a linguagem de Hazael e dizerem: "Pois que é teu servo, que não é mais que um cão, para fazer tal coisa?" (2 Rs 8:13). Estas pessoas não desceram ainda ao profundo abismo do seu próprio coração. Porque embora alguns dos crimes aqui proibidos pareçam colocar o ho¬mem, quanto a seus hábitos e inclinações, abaixo do nível de um cão, estes mesmíssimos estatutos provam, além de toda a controvér¬sia, que o membro mais polido e cultivado da família humana traz em seu coração as sementes das abominações mais tenebrosas, horríveis e abomináveis. Para quem foram esses estatutos promul¬gados?- Para o homem. Eram necessários? Sem nenhuma dúvida. Mas teriam sido inteiramente desnecessários se o homem fosse incapaz de cometer os pecados referidos. Porém o homem era capaz de os cometer; e por isso vemos que caiu o mais baixo possível—que a sua natureza está completamente corrompida —, que, desde a cabeça à planta do seu pé, não existe nem sequer um átomo de perfeição moral.
Como poderá um tal ente estar jamais, sem uma sensação de temor, perante o brilho do trono de Deus? Como poderá permane¬cer dentro do lugar santíssimo? Como poderá estar de pé sobre o mar de cristal?- Como poderá entrar pelas portas de pérolas e trilhar as ruas de ouro da cidade santa? A resposta a estas interrogações mostra-nos as profundidades assombrosas do amor redentor e da eficácia eterna do sangue do Cordeiro de Deus. Por muito profunda que seja a ruína do homem, o amor de Deus é ainda mais profundo. Por muito negra que seja a sua culpa, o sangue de Jesus pode lavá-la. Por mais largo que seja o abismo que separa o homem de Deus, a cruz tem-no atravessado. Deus desceu ao ponto mais baixo da condição do pecador, de modo a poder elevá-lo a uma posição de infinito favor, em ligação eterna com Seu Filho. Bem podemos exclamar: "Vede quão grande amor nos tem concedido o Pai: que fôssemos chamados filhos de Deus" (1 Jo 3:1). Nada podia sondar a ruína do homem senão o amor de Deus, e nada podia sobrepujara culpa do homem senão o sangue de Cristo. Mas agora a própria profundidade da ruína só engrandece o amor que a sondou, e a intensidade da culpa apenas exalta a eficácia do sangue que a purifica. O mais vil pecador que crê em Jesus pode regozijar-se na certeza de que Deus o vê e declara que ele "está todo limpo" (Jo 13:10).

O Servo Hebreu
Tal é, pois, o caráter duplo da instrução que pode coligir-se das leis e ordenações consideradas em conjunto; e quanto mais as examinamos em pormenor, mais impressionados ficamos com o sentidoda sua plenitude e beleza. Tomemos, por exemplo, a primei¬ra ordenação que nos é apresentada, a saber, a que se refere ao servo hebraico. "Se comprares um servo hebreu, seis anos servirá; mas, ao sétimo, sairá forro, de graça. Se entrou só com o seu corpo, só com o seu corpo sairá; se ele era homem casado, sairá sua mulher com ele. Se seu senhor lhe houver dado uma mulher, e ela lhe houver dado filhos ou filhas, a mulher e seus filhos serão de seu senhor, e ele saíra só com seu corpo. Mas, se aquele servo expressamente disser.- Eu amo a meu senhor, e a minha mulher e a meus filhos, não quero sair forro, então, seu senhor o levará aos juízes, e o fará chegar à porta, ou ao postigo, e seu senhor lhe furará a orelha com uma sovela; e o servirá para sempre" (capítulo 21:2 a 6). O servo era inteiramente livre quanto a tudo que lhe dizia respeito. Havia cumprido todas as exigências da lei e poderia portanto partir com absoluta liberdade; mas, por causa do amor à sua mulher, ao seu amo e aos seus filhos submetia-se à servidão perpétua; e não somente isto, queria levar também no seu corpo as marcas dessa servidão.

O Verdadeiro Servo
O leitor inteligente reconhecerá facilmente como tudo isto tem aplicação ao Senhor Jesus Cristo. N'Ele vemos Aquele que estava no seio do Pai antes que existissem todos os mundos—o objeto das Suas delícias eternas — e que podia ter ocupado este lugar por toda a eternidade, sendo o Seu lugar pessoal e inteiramente peculiar, tanto mais que nada o obrigava a abandoná-lo, salvo esta obrigação que o amor inefável criara e inspirara. Mas era tal o Seu amor para com o Pai, Cujos desígnios estavam incluídos e para com a Igreja coletivamente e cada membro dela individualmente, cuja salvação estava em causa, que veio ao mundo, voluntariamente, humilhan-do-Se a Si Mesmo, tomando a forma de servo e as marcas de serviço perpétuo sobre Si. No Salmo 40 faz-se provavelmente uma alusão a estas marcas: "...as minhas orelhas furaste". Este Salmo é a expressão do af eto de Cristo por Deus. "Então disse: Eis aqui venho; no rolo do livro está escrito de mim: Deleito-me em fazer a tua vontade, ó meus Deus; sim a tua lei está dentro do meu coração" (versículos 7 e 8). Veio para fazer a vontade de Deus, qualquer que pudesse ser essa vontade. Jamais fez a Sua vontade, nem mesmo na aceitação e salvação de pecadores, ainda que certamente o Seu coração amantíssimo, com todas as suas afeições, estivesse posto inteiramente nessa obra gloriosa. Sem dúvida, não recebe nem salva senão como servo dos desígnios do Pai. "Tudo que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora. Porque eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E a vontade do Pai, que me enviou, é esta: que nenhum de todos aqueles que me deu se perca, mas que o ressuscite no último dia" (Jo 6:37 -39).
Nesta passagem, temos um dos mais interessantes aspectos do caráter de servo do Senhor Jesus Cristo. Em graça perfeita, Ele considera-Se responsável por receber todos os que estão incluídos nos desígnios divinos; e não só de recebê-los, mas de os guardar em todas as dificuldades e provações da sua carreira de desvios na terra, sim, até mesmo no caso da própria morte, no caso de ela vir, e de os ressuscitar no último dia. Oh, quão seguro está até o membro mais fraco da Igreja de Deus! É objeto dos desígnios eternos de Deus, de cujo cumprimento o Senhor Jesus Cristo é o fiador. Jesus ama o Pai, e a segurança de cada membro da família redimida está em propor¬ção com a intensidade desse amor. A salvação do pecador que crê no Filho de Deus não é, em certo aspecto, senão a expressão do amor de Cristo pelo Pai. Se um dos que crêem n'Ele pudesse perder-se por qualquer causa, o fato indicaria que o Senhor Jesus Cristo era incapaz de dar cumprimento à vontade de Deus, o que seria uma blasfémia contra o Seu santo nome, ao qual seja dada a honra e majestade pelos séculos eternos!
Desta forma temos no servo hebraico uma figura de Cristo em Seu afeto ao Pai. Porém há alguma coisa mais do que isto: "Eu amo a minha mulher e a meus filhos. ""Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com lavagem da água, para a apresentar a si mesmo igrej a gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível" (Ef 5:25 -27). Existem outras passagens das Escrituras que nos apresentam Cristo como antítipo do servo hebraico, tanto no Seu amor pela Igreja, como corpo, como para com todos os crentes, individualmente. O leitor encontrará ensino sobre este ponto nos capítulos 13 de Mateus, 10 e 13 de João e 2 de Hebreus.

O Amor de Cristo excede todo Entendimento
A compreensão deste amor do coração de Jesus não pode deixar de produzir um espírito de afeto fervoroso Aquele que pôde mani¬festar um amor tão puro, perfeito e desinteressado. Como poderiam a esposa e os filhos do servo hebraico deixar de amar aquele que havia renunciado voluntariamente à sua liberdade a fim de que ele e eles pudessem estar juntosi E que é o amor apresentado no tipo quando comparado com aquele que brilha no antítipo? É como nada. "O amor de Cristo excede todo o entendimento" (Ef 3:19). Foi esse amor que o levou a pensar em nós antes que os mundos existissem, a visitar-nos na plenitude dos tempos, a caminhar deliberamente para a umbreira da porta, sofrer por nós na cruz, a fim de nos poder elevar à posição de Seus companheiros no Seu reino eterno e Sua glória.
Se eu pretendesse fazer uma exposição completa dos restantes estatutos e juízos desta parte do Livro do Êxodo, isso levantar-me-ia muito mais longe do que pretendo ir, presentemente (¹). Quero apenas acentuar que é impossível ler esta parte do Livro e não sentir o coração cheio de adoração perante esta profunda sabedoria e justiça perfeita, e todavia consideração terna, que permeia todo o assunto.
Terminemos o seu estudo com esta convecção profundamente enraizada na alma, que Aquele que fala aqui é "o único Deus verdadeiro", "sábio" e infinitamente gracioso.
Que as nossas meditações sobre a Sua Palavra eterna produzam o efeito de prostrarmos as nossas almas em adoração perante Aquele Cujos caminhos perfeitos e atributos gloriosos brilham em todo o su esplendor nesta Palavra, para o gozo e edificação do Seu povo adquirido à custa do sangue de Seu Filho.
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(¹) Devo frisar que as festas mencionadas no capítulo 23:14-19, e os sacrifícios do capítulo 29, visto serem apresentados plena e pormenorizadamente no livro de Levítico, serão tratados quando dos nossos comentários sobre esse livro singularmente interessante.

— CAPÍTULO 24 —

O PODER DO SANGUE

"De Longe"
Este capítulo abre com uma expressão notavelmente caracterís¬tica de toda a dispensação moisaica. "Depois, disse a Moisés: Sobe ao SENHOR, tu e Arão, Nadabe e Abiú, e setenta dos anciãos de Israel; e inclinai-vos de longe... eles não se cheguem nem o povo suba com ele." Podemos buscar de um ao outro extremo da lei sem encontramos estas palavras: "Aproximai-vos". Ah, não; essas palavras nunca poderiam ser ouvidas do cume do Sinai, nem do meio das sombras da lei. Só podiam ser pronunciadas do lado celestial da sepultura vazia de Jesus, onde o sangue da cruz abriu uma perspectiva perfeitamente clara para a visão da fé. As palavras "de longe" são tão características da lei como as palavras "vinde" o são do evangelho. Sob a lei, a obra que podia dar direito ao pecador a aproximar-se não se realizava jamais. O homem não cumpriu a sua promessa de obediência, e o "sangue de bodes e bezerros" (Hb 9:12) não podia expiar o pecado nem dar paz à sua consciência perturbada. Por isso, ele tinha de permanecer "longe". Os votos do homem haviam sido violados e o seu pecado estava por purificar; como, pois, podia aproximar-se £ O sangue de dez mil bezerros não podia limpar nem uma só das manchas da consciência ou dar-lhe o sentimento pacífico da intimidade com um Deus reconciliado.
Contudo, "o primeiro" concerto está aqui consagrado com sangue. Um altar é edificado ao pé do monte com doze pedras, segundo as doze tribos de Israel."E enviou certos jovens dos filhos de Israel, os quais ofereceram holocaustos, e sacrificaram ao SENHOR sacrifícios pacíficos de bezerros. E Moisés tomou a metade do sangue e a pôs em bacias; e a outra metade do sangue espargiu sobre o altar... então, tomou Moisés aquele sangue, e o espargiu sobre o povo, e disse: Eis aqui o sangue do concerto que o SENHOR tem feito convosco sobre todas estas palavras" (versículos 5,6 e 8). Embora fosse impossível, como nos diz o apóstolo, que o sangue dos touros e dos bodes tirasse os pecados, contudo santificava quanto à puri¬ficação da carne (Hb 10:4; 9.13), ecomo"sombra dos bens futuros" servia para manter o povo em relação com Deus (Hb 10:1).

A Manifestação de Deus
"E subiram Moisés e Arão, Nadabe e Abiú esetentados anciãos de Israel, e viram o Deus de Israel e debaixo de seus pés havia como uma obra de pedra de safira e como o parecer do céu na sua claridade. Porém ele não estendeu a sua mão sobre os escolhidos dos filhos de Israel; mas viram a Deus, e comeram e beberam" (versículos 9 a 11). Assim se manifestava "o Deus de Israel" em luz e pureza, majestade e santidade. Nada disto era o desenrolar dosafetosdo coração do Pai ou os doces acentos da voz do Pai derramando paz e inspirando confiança no coração. Não; a "obra de pedra de safira" falava daquela pureza e luz inacessíveis que obrigavam o pecador a manter-se "longe". Contudo, eles "viram a Deus e comeram e beberam". Prova tocante da tolerância e da misericórdia divina bem como do poder do sangue!
Encarando o conjunto desta cena como uma simples ilustração, existe nela muito para interessar o coração. O campo demarcado está em baixo, tem cima o pavimentode safira; mas o altar, ao pé do monte, fala-nos desse caminho pelo qual o pecador pode subtrair-se à corrupção da sua própria condição e elevar-se à presença de Deus, para aí fazer festa e adorar em perfeita paz. O sangue que corria em redor do altar era o único direito que o homem tinha para subsistir na presença dessa glória cujo parecer "era como um fogo consumidor no cume do monte aos olhos dos filhos de Israel".
"E Moisés entrou no meio da nuvem, depois que subiu ao monte; e Moisés esteve no monte quarenta dias e quarenta noites." Para Moisés isto significava uma posição verdadeiramente elevada e santa. Foi chamado aparte da terra e das coisas terrenas. Alheado das influências naturais, é encerrado com Deus para ouvir da Sua boca os profundos mistérios da Pessoa e obra de Cristo; porque é isso, com efeito, que nos é representado no tabernáculo, cheio de signi¬ficação em todos os seus acessórios—"figuras das coisas que estão noscéus"(Hb 9:23).
O bendito Senhor sabia bem qual ia ser o fim do concerto das obras do homem; todavia, mostra a Moisés, em figuras e sombras, os Seus preciosos pensamentos de amor e desígnios eternos de graça, manifestados e garantidos por Cristo.
Bendita seja para sempre a graça que não nos deixou sob um concerto de obras. Bendito seja Aquele que aquietou os trovões da lei e apagou as chamas do monte Sinai pelo sangue do concerto eterno (Hb 13:20) e que nos deu uma paz que nenhum poder da terra ou do inferno pode abalar. "Aquele que nos ama, e em seu sangue nos lavou dos nossos pecados, e nos fezreis e sacerdotes para Deus e seu Pai, a ele glória e poder para todo o sempre. Amém (Ap 1:5-6).

— CAPÍTULO 25 —

O TABERNÁCULO

A Ordem Divina
Este capítulo é o começo de um dos mais ricos filões da mina inesgotável de inspiração—um veio no qual cada pancada do alvião descobre riquezas incontáveis. Sabemos qual é o único alvião com o qual podemos trabalhar numa tal mina, a saber, o ministério distinto do Espírito Santo. A natureza humana nada pode fazer aqui. A razão é cega e a imaginação completamente inútil; a inteligência mais elevada, em vez de estar em estado de interpretar os símbolos sagrados, parece-se mais a um morcego ante o resplen¬dor do sol, chocando-se contra os objetos que é inteiramente incapaz de discernir. Devemos obrigar a razão e a imaginação a ficarem a parte, enquanto, com um coração puro, um olhar sensato e pensamentos reverentes entramos nos recintos santos e contem¬plamos fixamente o mobiliário cheio de significado. Deus o Espírito Santo é o único que nos pode guiar através dos recintos da casa do Senhor e de interpretar para as nossas almas o verdadeiro significado de tudo que se apresenta à nossa vista. Querer dar a sua explicação com o auxílio de faculdades não santificadas seria mais absurdo do que tentar reparar um relógio com as tenazes e o martelo de um ferreiro. "As figuras das coisas que estão no céu" (Hb 9:23) não podem ser interpretadas pela mente natural, ainda mesmo a mais cultivada. Devem ser lidas à luz do céu. O mundo não tem nenhuma luzque possa revelaras suas belezas. Aquele que produziu as figuras é o único que pode explicar o que elas significam. E Aquele que deu os símbolos é quem pode interpretá-los.
Para a vista do homem parecerá que há irregularidade na maneira como o Espírito apresenta o mobiliário do tabernáculo; mas, na realidade, como poderia esperar-se, existe a mais perfeita ordem, a precisão mais notável e a exatidão mais minuciosa. Desde o capítulo 25 ao capítulo 30, inclusive, temos uma parte distinta do Livro do Êxodo. Esta parte subdivide-se em duas partes, das quais a primeira termina no versículo 19 do capítulo 27, e a segunda no fim do capítulo 30. A primeira começa com a descrição da arca do concerto, dentro do véu, e termina com o altar de bronze e o átrio no qual o altar devia ser posto. Quer dizer, dá-nos, em primeiro lugar, o trono do juízo do Senhor, sobre o qual Ele se assentava como Senhor de toda a terra; e este trono conduz-nos àquele lugar onde o Senhor encontra o pecador em virtude e com base na obra de uma expiação consumada. Depois, na segunda parte temos a maneira de o homem se aproximar de Deus—os privilégios, as honras, e as responsabilidades daqueles que, como sacerdotes, podem aproximar-se da presença Divina para prestarem culto e gozarem da Sua comunhão. Deste modo a ordem é perfeita e bela. Como poderia ser de outro modo, visto que é divinal A arca e o altar de bronze apresentam, em certo sentido, dois extremos. A primeira era o trono de Deus estabelecido em "justiça e juízo" (SI 89:14). A última era o lugar onde o pecador podia aproximar-se, porque "a misericórdia e a verdade" iam adiante do rosto de Jeová. O homem, por si mesmo, não ousava aproximar-se da arca para se encontrar com Deus, porque o caminho do santuário não estava ainda desco¬berto (Hb 9:8). Porém, Deus podia vir ao altar de bronze para encontrar o pecador. "A justiça e o juízo" não podiam admitir o pecador no santuário; mas a misericórdia e a verdade podiam fazer sair Deus—não envolto naquele resplendor irresistível e majestade com que costumava brilhar do meio das colunas místicas do Seu trono—"os querubins de glória"—, mas rodeado daquele ministé¬rio gracioso que nos é apresentado, simbolicamente, no mobiliário e nas ordenações do tabernáculo.
Tudo isto nos pode muito bem recordar o caminho que percor¬reu Aquele bendito Senhor que é o antítipo de todos estes símbolos —a substância destas sombras. Ele desceu do trono eterno de Deus no céu até à profundidade da cruz no Calvário. Deixou toda a glória do céu pela vergonha da cruz, a fim de poder conduzir o Seu povo remido, perdoado e aceite por Si Mesmo, e apresentá-lo inculpável diante daquele próprio trono que Ele havia abandona¬do por amor deles. O Senhor Jesus preenche, em Sua própria Pessoa e obra, todo o espaço entre o trono de Deus e o pó da morte, assim como a distância entre o pó da morte e o trono de Deus. N'Ele Deus desceu, em perfeita graça, até ao pecador, e n'Ele o pecador é conduzido, em perfeita justiça, até Deus. Todo o caminho, desde a arca ao altar, está marcado com as pegadas do amor; e todo o caminho desde o altar de bronze até a arca de Deus estava salpicado com sangue da expiação; e todo adorador ao passar por esse caminho maravilhoso vê o nome de Jesus impresso em tudo que se oferece à sua vista. Que este nome venha a ser o mais precioso de nossos corações!
Vamos proceder agora ao exame dos capítulos que se seguem.
E interessante notar que a primeira coisa que o Senhor revela a Moisés é o Seu propósito gracioso de ter um santuário ou santa habitação no meio do Seu povo — um santuário formado de materiais que indicavam Cristo, a Sua Pessoa, a Sua obra, e o fruto precioso dessa obra, como os vemos à luz, no poder e diversas mercês do Espírito Santo. Além disso, estes materiais eram o fruto fragrante da graça de Deus — as ofertas voluntárias de corações consagrados. Jeová, cuja Majestade o céu dos céus não poderia conter (lRs 8:27), achava o Seu agrado em habitar numa tenda erigida para Si por aqueles que nutriam o desejo ardente de saudar a Sua presença no meio deles. Este tabernáculo pode ser considerado de duas manei¬ras; primeira, como uma "figura das coisas celestiais"; e, segunda, como uma figura profundamente significativa do corpo de Cristo. Os vários materiais de que se compunha este tabernáculo serão apresentados à nossa consideração à medida que formos desenro¬lando o assunto. Portanto, vamos considerar os três assuntos mais importantes que este capítulo põe diante de nós, a saber: a arca, a mesa e o castiçal.

A Arca e seu Conteúdo
A arca do concerto ocupa o primeiro lugar nas comunicações divinas feitas a Moisés. Asua posição no tabernáculo era, também, notável. Encerrada dentro do véu, no lugar santíssimo, formava a base do trono de Jeová. O seu próprio nome apresentava à alma a sua importância. Uma arca, tanto quanto podemos compreender o significado da palavra, é destinada a guardar intacto o que é posto dentro dela. Foi numa arca que Noé e sua família, com todas as espécies de animais da criação, foram transportados com segurança sobre as ondas do juízo que cobriu a terra. Uma arca, como lemos no princípio deste livro, foi o vaso da fé para preservar um menino formoso das águas da morte. Quando, portanto, lemos da "arca do concerto" somos levados a crer que era destinada por Deus aguardar intacto o Seu concerto, no meio de um povo dado ao erro. Nesta arca, como sabemos, foram depositadas as segundas tábuas da lei. Quan¬to às primeiras foram quebradas ao pé do monte, mostrando que o concerto do homem era de todo abolido—que o seu trabalho nunca poderia, de qualquer modo, formar a base do trono de governo de Jeová. "Ajustiça e o juízo são a habitação desse trono", quer seja no seu aspecto terrestre, quer no celestial. A arca não podia conter as tábuas quebradas dentro do seu interior sagrado. O homem podia falhar no cumprimento dos votos que havia feito voluntariamen¬te; porém a lei de Deus tem de ser conservada em toda a sua integridade divina e perfeição. Se Deus estabelecia o Seu trono no meio do Seu povo, só o podia fazer de uma maneira digna de Si. O princípio do Seu juízo e governo deve ser perfeito.
"E farás varas de madeira de cetim, e as cobrirás com ouro. E meterás as varas nas argolas, aos lados da arca, para se levar com elas aarca" (versículos 13e 14). A arca do concerto devia acompanhar o povo em todas as suas peregrinações. Nunca se deteve enquanto eles se mantiveram como um exército em viagem ou no conflito: foi adiante deles até ao meio do Jordão; foi o seu ponto de reunião em todas as guerras de Canaã; era a garantia segura e certa do poder para onde quer que ia. Nenhum poder do inimigo podia subsistir diante daquilo que era a expressão bem conhecida da presença e poder de Deus. A arca devia ser a companheira inseparável de Israel no deserto; e as "varas" e as "argolas" eram a expressão exata do seu caráter ambulante.

A Arca no Templo
Contudo, a arca não deveria viajar sempre. As "aflições" de Davi(Sl 132:1) bem como as guerras de Israel deviam ter um fim. A oração, "Levanta-te, Senhor, no teu repouso, tu e a arca da tua força" (SI 132:8) devia ainda de ser feita e atendida. Esta petição sublime teve o seu cumprimento parcial nos dias auspiciosos de Salomão, quando "os sacerdotes trouxeram a arca do concerto do SENHOR ao seu lugar, ao oráculo da casa, ao lugar santíssimo, até debaixo das asas dos querubins. Porque os querubins estendiam ambas as asas sobre o lugar da arca e cobriam a arca e os seus varais por cima. E os varais sobressaíram tanto que as pontas dos varais se viam desde o santuário diante do oráculo, porém de fora não se viam; e ficaram ali até ao dia de hoje' (1 Rs 8:6 - 8). A areia do deserto devia ser trocada pelo piso de ouro do templo (1 Rs 6:30). As peregrinações da arca haviam chegado ao seu termo: "adversário não havia, nem algum mau encontro", e, portanto, fizeram sobressair os varais.
Esta não era a única diferença entre a arca no tabernáculo e no templo. O apóstolo, falando da arca na sua habitação do deserto, descreve-a como "a arca do concerto, coberta de ouro toda em redor, em que estava um vaso de ouro, que continha o maná, e a vara de Arão, que tinha florescido, e as tábuas do concerto" (Hb 9:4). Estes eram os objetos que a arca continha durante as suas jornadas no deserto—o vaso de maná era o memorial da fidelidade do Senhor em prover a todas as necessidades dos Seus remidos através do deserto, e a vara de Aarão era "um sinal para os filhos rebeldes" para acabar com "as suas murmurações" (Compare-se Ex 16:32 - 34 e Nm 17:10). Porém, quando chegou o momento em que "os varais" deviam ser retirados, logo que as peregrinações e as guerras de Israel terminaram, quando "a casa magnífica em excelência" (1 Cr 22:5) foi terminada, quando o sol da glória de Israel havia chegado, em figura, ao zénite com o esplendor e a magnificência do reino de Salomão, então os memoriais das necessidades e faltas do deserto desapareceram, e nada ficou senão aquilo que constituía o fundamento eterno do trono do Deus de Israel e de toda a terra. "Aia arca, nada havia, senão só as duas tábuas de pedra que Moisés ali pusera junto a Horebe" (I Rs 8:9).
Mas toda esta glória devia ser obscurecida pelas nuvens carregadas do fracasso humano e o descontentamento de Deus. Os pés devasta¬dores dos incircuncisos haviam ainda de atravessar as ruínas dessa magnífica casa, e o desaparecimento do seu brilho e da sua glória devia provocar o assobio dos estranhos (1 Reis 9:8). Este nãoéomomento de continuar em pormenor este assunto; limitar-me-ei a referir ao leitor a última menção que a Palavra de Deus faz da " arca do concerto" —uma passagem que nos transporta a uma época em que a loucura humana e o pecado não perturbarão mais o lugar de repouso da arca, e em que a arca não será guardada num tabernáculo de cortinas nem tampouco num templo feito por mãos. "E tocou o sétimo anjo a sua trombeta, e houve no céu grandes vozes, que diziam-. Os reinos do mundo vieram a ser de nosso Senhor e do Seu Cristo, e ele reinará para todo o sempre. Eos vinte e quatro anciãos, que estão assentados em seus tronos diante de Deus, prostraram-se sobre seu rostoe adoraram aDeus, dizendo: Graças tedamos, Senhor, DeusTodo-poderoso, que és, e que eras, e que hás de vir, que tomaste o teu grande poder e reinaste. E iraram-se as nações, e veio a tua ira, e o tempo dos mortos, para que sejam julgados, e o tempo de dares o galardão aos profetas, teus servos, e aos santos, e aos que temem o teu nome, a pequenos e a grandes, e o tempo de destruíres os que destroem a terra. E abriu-se no céu o templo de Deus, e a arca do seu concerto foi vista no seu templo; e houve relâmpagos, e vozes, e trovões, e terremotos, e grande saraiva" (Ap 11.15 -19).

O Propiciatório
Segue-se por sua ordem o propiciatório. "Também farás um propiciatório de ouro puro; o seu cumprimento será de dois côvados e meio, e a sua largura, de um côvado e meio. Farás também dois querubins de ouro; de ouro batido os farás, nas duas extremidades do propiciatório. Farás um querubim na extremidade de uma parte e o outro querubim na extremidade da outra parte; de uma só peça com o propiciatório farás os querubins nas duas extremidades dele. Os querubins estenderão as suas asas por cima, cobrindo com as suas asas o propiciatório; as faces deles, uma defronte da outra; as faces dos querunbins estarão voltadas para o propiciatório. E porás o propiciatório em cima da arca, depois que houveres posto na arca o Testemunho, que eu te darei. E ali virei a ti e falarei contigo de cima do propiciatório, do meio dos dois querubins (que estão sobre a arca do Testemunho), tudo que eu te ordenar para os filhos de Israel" (versículos 17 a 22).
Jeová declara aqui o Seu desígnio misericordioso de descer do monte ardente para tomar o Seu lugar sobre o propiciatório. Podia fazer isto, visto que a tábuas da lei estavam guardadas intactas na arca, e os símbolos do Seu poder, tanto na criação como na providên¬cia, se elevavam à direita e à esquerda como acessórios inseparáveis deste trono em que o Senhor Se havia assentado — um trono de graça fundado na justiça e sustido pela justiça e o juízo. Ali brilha a glória do Deus de Israel. Dali emanavam os Seus mandamentos suavizados e tornados agradáveis pela origem graciosa de onde saíam— à semelhança do sol do meio-dia, cujos raios ao passarem através de uma nuvem vivificam e fecundam sem que o seu resplendor nos cegue.
"Os seus mandamentos não são pesados" quando recebidos do propiciatório, porque estão ligados com a graça que dá ouvidos para ouvir e o poder para obedecer.

O Único Lugar de Encontro
A arca e o propiciatório, considerados em conjunto como um todo, são para nós uma figura admirável de Cristo, em Sua Pessoa e Sua obra. Havendo engrandecido a lei, na Sua vida, e tornando-a honrosa, veio a ser, por meio da morte, a propiciação ou propiciatório para todo aquele que crê. A misericórdia de Deus só podia repousar numa base de perfeita justiça:".. .a graça reina pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo, nosso Senhor" (Rm5:21). O único lugar próprio para o encontro entre Deus e o homem é aquele onde a graça e a justiça se encontram e se harmonizam perfeitamente. Nada senão a justiça perfeita podia agradar a Deus; e nada senão a graça perfeita pode convir ao pecador. Mas onde poderiam estes atributos encontrar-se4 Somente na cruz. E ali que a misericórdia e a verdade se encontraram; a justiça e a paz se beijaram (SI 85:10). E assim que a alma do pecador crente encontra paz. Vê que a justiça de Deus e a sua justificação repousam sobre o mesmo fundamen¬to, isto é: a obra consumada por Cristo. Quando o homem, sob a influência poderosa da verdade de Deus, toma o seu lugar como pecador, Deus pode, no exercício da graça, tomar o Seu como Salvador, e então toda a questão se acha solucionada, porque havendo a cruz respondido a todas as exigências da justiça divina, os rios da graça podem correr sem impedimento. Quando o Deus justo e o pecador se encontram sobre uma plataforma salpicada de sangue tudo está solucionado para sempre — solucionado de maneira a glorificar Deus perfeitamente e salvar o pecador para toda a eternidade. Seja Deus verdadeiro, ainda que todo o homem seja mentiroso; e quando o homem é levado inteiramente ao ponto mais baixo da sua condição moral diante de Deus e está pronto a aceitar o lugar que a verdade de Deus lhe designa, então reconhece que Deus Se revelou como o Justo justificador. Isto deve dar paz à consciência; e não apenas paz, mas concede a capacidade de comungar com Deus e de ouvir os Seus santos preceitos no conhecimento daquela relação em que a graça divina nos introduziu.
Por isso, "o lugar santíssimo" oferece-nos uma cena verdadeira¬mente admirável. A arca, o propiciatório, os querubins, a glória! Que espetáculo para o sumo sacerdote de Israel quando entrava dentro do véu! Que o Espírito de Deus abra os olhos do nosso entendimento de modo a podermos compreender melhor o profun¬do significado destes símbolos preciosos.

A Mesa do Pão da Proposição
Moisés recebe em seguida instruções quanto "à mesa dos pães da proposição", ou pães de apresentação. Sobre esta mesa estava disposto o alimento dos sacerdotes de Deus. Durante sete dias os doze pães de "flor de farinha com incenso" estavam dispostos na presença do Senhor, depois do que, sendo substituídos por outros, eram o alimento dos sacerdotes, que comiam deles no lugar santo (veja-se Lv 24:5-9).
Escusado será dizer que esses doze pães simbolizam "o homem Cristo Jesus". A "fiorde farinha" da qual eram compostos, mostra a Sua perfeita humanidade, enquanto que "o incenso" indica a inteira consagração dessa humanidade a Deus. Se Deus tem os Seus sacerdotes ministrando no lugar santo, terá certamente uma mesa para eles, e uma mesa bem fornecida também. Cristo é a mesa e o pão sobre ela. A mesa pura e os doze pães mostram Cristo, presente incessantemente diante de Deus em toda a excelência da Sua imaculada humanidade e como alimento para a família sacerdotal. Os "sete dias" mostram a perfeição do gozo divino em Cristo; e os "doze pães" exprimem este gozo no homem e pelo homem. É possível que exista também a ideia de ligação de Cristo com as doze tribos de Israel e os doze apóstolos do Cordeiro.

O Candelabro
O castiçal de ouro puro vem a seguir, porque os sacerdotes de Deus têm necessidade de Luz bem como de alimento: e têm tanto uma coisa como a outra em Cristo. Neste castiçal não se faz menção de outra coisa que não seja ouro. "Tudo será de uma só peça, obra batida de ouro puro" (versículo 36). "As sete lâmpadas", as quais se "acenderão para alumiar defronte dele", exprimem a perfeição da luz e energia do Espírito, baseadas e ligadas com a eficácia perfeita da obra de Cristo. Aobra do Espírito Santo nunca poderá ser separada da obra de Cristo. Isto é indicado, de um modo duplo, nesta magnífica imagem do castiçal de ouro. As sete lâmpadas estando ligadas à cana de ouro batido indicam-nos a obra cumprida por
Cristo como a única base da manifestação do Espírito na Igreja. O Espírito Santo não foi dado antes de Jesus ter sido glorificado (comparem-se João 7:39 com Atos 19:2 a 6). Em Apocalipse, capí¬tulo 3, Cristo é apresentado à igreja de Sardes como Aquele que tem "os sete espíritos". Quando o Senhor Jesus foi exaltado à destra de Deus, então derramou o Espírito Santo sobre a Sua Igrej a, a fim de que ela pudesse brilhar segundo o poder e a perfeição da sua posição no lugar santo, a sua própria esfera de ser, de ação e de culto.
Vemos, também, que uma das funções particulares de Arão consistia em acender e espevitar essas sete lâmpadas. "E falou o SENHORa Moisés, dizendo: Ordena aos filhos de Israel que te tragam azeite de oliveira puro, batido, para a luminária, para acender as lâmpadas continuamente. Arão as porá em ordem perante o SENHOR continuamente, desde a tarde até à manhã, fora do véu doTestemunho, na tenda da congregação; estatuto perpétuo é pelas vossas gerações. Sobre o castiçal puro porá em ordem as lâmpadas, perante o SENHOR, continuamente" (Lv 24:1-4). Desta maneira, podemos ver como a obra do Espírito Santo na Igreja está ligada com a obra de Cristo na terra e a Sua obra no céu. "As sete lâmpadas" estavam no tabernáculo, evidentemente, mas a atividade e diligên¬cia do sacerdote eram necessárias para as manter acesas e espevitadas. O sacerdote necessitava continuamente dos "espevitadores" e dos "apagadores" para remover tudo que pudesse impedir o livre curso do "azeite batido". Esses espevitadores e apagadores eram igual¬mente feitos de "ouro batido" porque todas essas coisas eram o resultado imediato da operação divina. Se a Igreja brilha, é unica¬mente pela energia do Espírito, e esta energia está fundada em Cristo, que, em virtude do desígnio eterno de Deus, veio a ser, em Seu sacrifício e sacerdócio, o manancial e poder de todas as coisas para a Sua Igreja. Tudo é de Deus. Quer olhemos para dentro desse véu misterioso e contemplemos a arca com a sua coberta e as duas figuras significativas, ou admiremos o que está da parte de fora desse véu, a mesa pura e o castiçal puro, com os seus vasos e respectivos utensílios — tudo nos fala de Deus, quer seja revelando-Se em ligação com o Filho ou o Espírito Santo.
A chamada celestial coloca o leitor cristão no próprio centro de todas estas preciosas realidades. O seu lugar não está apenas no meio das" figuras das coisas que estão no céu", mas no meio das "próprias coisas celestiais". Tem "ousadia para entrar no santuário pelo sangue de Jesus". É sacerdote para Deus. O pão da proposição lhe pertence. O seu lugar é à mesa pura, para comer o pão sacerdotal, na luz. do Espírito Santo. Nada o poderá privar desses privilégios divinos. São seus para sempre. Esteja em guarda contra tudo que possa privá-lo dogozo deles. Guarde-se contra toda a irritabilidade, a cobiça, de todo o sentimento e imaginações. Domine a sua natureza, lance o mundo fora de seu coração, afugente Satanás. Que o Espírito Santo encha inteiramente a sua alma de Cristo. Então será praticamente santo e sempre ditoso. Dará fruto, e o Pai celestial será glorificado, e o seu gozo será completo.

— CAPÍTULO 26 —

A ESTRUTURA DO
TABERNÁCULO

Os Materiais
Esta parte do livro do Êxodo inclui a descrição das cortinas e da cobertura do tabernáculo, nas quais a mente espiritual discerne as sombras das várias fases e traços do caráter de Cristo. "E o tabernáculo farás de dez cortinas de linho fino torcido, e pano azul,e púrpura, e carmesim; com querubins as farás, de obra esmerada". Aqui temos os diferentes aspectos do "homem Jesus Cristo" (1 Tm 2:5). O "linho fino torcido" representa a pureza imaculada da Sua vida e do Seu caráter; enquanto que o "azul, púrpura e carmesim" no-Lo apresentam como "o Senhor do céu", que deve reinar segundo os desígnios divinos, mas Cuja realeza deve ser o resultado dos Seus sofrimentos. Desta forma, temos n'Ele um homem puro, homem celestial, régio e sofredor. Os diferentes materiais mencionados aqui não eram apenas limitados às "cortinas" do tabernáculo, como deviam ser também usados para o "véu" (versículo 31), a "coberta" da porta da tenda" (versículo 36), a coberta da "porta do pátio" (capítulo 27:16), e "os vestidos do ministério" e "os vestidos santos para Arão" (capítulo 39:1). Em suma, era Cristo em todo as partes, Cristo em tudo, somente Cristo (¹).
__________________
(¹) A expressão "puro e resplandecente" (Ap 19:8) dá força e formosura peculiar ao símbolo que o Espírito Santo nos apresenta no "linho fino torcido". Com efeito, não é possível encontrar-se um emblema mais exato de natureza imaculada.


O LinhoTorcido
O "linho fino torcido", como figura da humanidade imaculada de Cristo, abre um manancial precioso e abundante de pensamento para a inteligência espiritual: dá-nos um tema sobre o qual nunca é demais meditar. A verdade quanto à humanidade de Cristo deve ser recebida com toda a exatidão escriturai, mantida com energia espiritual, guardada com santo zelo e confessada com poder celestial. Se estivermos enganados quanto a este ponto de capital importân¬cia não podemos estar dentro da verdade sobre coisa alguma. É uma verdade essencial e fundamental, e se não for recebida, defendida e confessada tal qual Deus a revelou na Sua santa Palavra, todo o edifício não terá solidez. Nada pode ser mais deplorável que o relaxamento que parece prevalecer e predominar nos pensamentos e expressões de alguns sobre esta doutrina tão importante. Se houvesse mais reverência pela palavra de Deus, haveria um conhe¬cimento dela mais perfeito; e, deste modo, evitar-se-iam essas declarações erróneas e irrefletidas que certamente devem entriste¬cer o Espírito de Deus, Cuja incumbência é testemunhar de Jesus. Quando o anjo anunciou a Maria as boas novas do nascimento do Salvador, ela disse-lhe: "Como se fará isto, visto que não conheço varão"?- "A sua fraca inteligência era incapaz de compreender, muito menos profundar, o estupendo mistério de "Deus manifestado em carne" (l Tm 3:16). Mas note-se com atenção a resposta do anjo— resposta dada não a umespírito céptico, mas a um coração piedoso, embora ignorante. "Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; pelo que também o Santo que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus" (Lc 1:34-35). Maria imaginava, sem dúvida que este nascimento deveria ter lugar segundo os princípios ordinários da geração. Mas o anjo corrige o seu equívoco, e, corrigindo-o, anuncia uma das maiores verdades da revelação. Declara que o poder divino estava prestes a formar UM HOMEM VERDADEIRO—" o segundo homem, o Senhor do céu" (1 Co 15:47): um homem cuja natureza seria divinamente pura, inteiramente incapaz de receber ou de comunicar a mais pequena mancha. Este Ser santo foi formado, à "semelhança da carne do pecado", sem pecado na carne. Participou inteiramente da carne e do sangue sem uma partícula ou sombra de mal ligado com eles.
Esta verdade é de primacial importância, nunca será retida com fidelidade e firmeza excessiva. A incarnação do Filho, a segunda Pessoa da Trindade eterna, a Sua entrada misteriosa em carne pura e sem mácula, formada pelo poder do Altíssimo, no ventre da virgem, é o fundamento do "mistério da piedade" (ITm 3:16), do qual a cimalha é o Deus-homem glorificado no céu, a Cabeça, Representante e Modelo da Igreja remida de Deus. A pureza essen¬cial da Sua humanidade satisfez perfeitamente as exigências de Deus; enquanto que a sua realidade correspondia às necessidades do homem. Era homem, porque só um homem podia responder pela ruína do homem. Porém, era homem tal que podia dar satisfação a todas as exigências do trono de Deus. Era um homem imaculado, verdadeiro homem, em quem Deus podia achar o Seu agrado, e em quem o homem podia apoiar-se sem reservas.
Não é preciso recordar ao leitor esclarecido que tudo isto, separado da morte e ressurreição, é perfeitamente inútil para nós. Nós tínhamos necessidade não somente de um Cristo incarnado, mas de um Cristo crucificado e ressuscitado. Na verdade, Ele fez-se carne para ser crucificado; mas é por Sua morte e ressurreição que a Sua incarnação veio a ser eficaz para nós. É um erro moral crer que Cristo tomou o homem em união consigo na incarnação. Isto era impossível. Ele Próprio ensina expressamente o contrário. "Na verdade, na verdade vos digo que se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica cie só; mas se morrer dá muito fruto" (Jo 12:24). Não podia haver nenhuma união entre carne santa e pecaminosa, pura e impura, corruptível e incorruptível, mortal e imortal. A morte é a única base de união entre Cristo e os Seus membros eleitos. É em ligação com as palavras "levantai-vos, vamos" (Mc 14:42) que o Senhor diz: "Eu sou a videira, vós as varas" (Jo 15:5). Porque "se fomos plantados juntamente com ele na semelhança da sua morte... o nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito" (Rm 6:5-6). "No qual também estais circuncidados, com a circuncisão não feita por mão no despojo do corpo da carne: a circuncisão de Cristo. Sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder deDeus, que o ressuscitou dos mortos" (Cl 2:11-12).
Os capítulos 6 de Romanos e 2 de Colossenses nos dão um relato pormenorizado da verdade sobre este importante assunto. Foi unicamente como morto e ressuscitado que Cristo e o Seu povo puderam tornar-se em um. O verdadeiro grão de trigo tinha de cair na terra e morrer antes que a espiga pudesse ser formada e recolhida no celeiro celestial.
Porém, embora isto seja uma verdade claramente revelada nas Escrituras, é igualmente claro que a incarnação formava, por assim dizer, os alicerces do glorioso edifício; e as cortinas de "linho fino" apresentam-nos, em figura, a beleza moral do "Homem Jesus Cristo". Já vimos a maneira como Ele foi concebido; e, ao longo do curso da Sua vida aqui na terra, encontramos exemplos e mais exemplos da mesma imaculada pureza. Passou quarenta dias no deserto, sendo tentado pelo diabo, mas nada em Sua natureza respondeu às vis sugestões do tentador. Podia tocar os leprosos sem ser contaminado. Podia tocar o esquife de um defunto sem contrair o fedor da morte. Podia passar incólume pela atmosfera mais contaminada. Era, quanto à Sua humanidade, como um raio de sol que vinha da fonte de luz, o qual pode passar, sem ser atingido, pelo ambiente de maior contaminação. Foi perfeitamente único em natureza, caráter e constituição.
Só Ele podia dizer: "Não permitirás que o teu santo veja corrupção" (Sl 16:10). Isto estava em relação com a Sua humanida¬de, que, sendo perfeitamente santa e pura, podia levar o pecado. "Levando ele mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro" (1 Pe 2:24). Não no madeiro, como alguns querem ensi-nar-nos, mas "sobre o madeiro". Foi na cruz que Cristo levou os nossos pecados, e somente ali. "Aquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós, para que nele fôssemos feitos justiça de Deus" (2 Co 5:21).

O Azul
"Azul" é a cor etérea e indica o caráter celestial de Cristo, o Qual, a despeito de ter entrado em todas as circunstâncias de verdadeira e autêntica humanidade—exceto o pecado—era "o Senhor do céu"
(1 Co 15:47). Sendo homem verdadeiro, andou sempre com o senti¬mento da Sua própria dignidade, como estrangeiro celestial: jamais olvidou donde tinha vindo, onde estava ou para onde ia. A fonte de todo o Seu gozo estava nas alturas. A terra não podia fazê-lo mais rico nem mais pobre. Achou que este mundo era "uma terra seca e cansada, onde não havia água" (Sl 63:1); e, por isso, o Seu espírito só podia dessedentar-se nas alturas. Era inteiramente celestial: "...ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do Homem, que está no céu" (Jo3:16).

A Púrpura
"Púrpura" indica realeza, e mostra-nos Aquele que havia "nascido rei dos judeus", que Se apresentou como tal à nação judaica e foi rejeitado; que fezumaboa confissão perante Pôncio Pilatos, decla-rando-Se rei, quando, para a visão humana, não havia um simples traço de realeza. "Tu dizes que eu sou rei" (Jo 18:37). E ".. .vereis em breve o Filho do homem assentado à direita do poder e vindo sobre as nuvens do céu" (Mt 26:64). E, por fim, a inscrição sobre a Sua cruz, em hebraico, grego e latim—a linguagem da religião, da ciência e do governo—declara, perante todo o mundo, que Ele era "Jesus Nazareno, Rei dos Judeus". A terra negou-Lhe os Seus direitos — desgraçada¬mente para ela—mas não aconteceu o mesmo com o céu: ali os Seus direitos foram plenamente reconhecidas. Foi recebido como um vencedor nas moradas eternas da luz, coroado de glória e honra, e assentou-Se, por entre aclamações dos exércitos celestiais, no trono da majestade nas alturas, até que Seus inimigos sejam postos por escabelo de Seus pés. "Por que se amotinam as nações e os povos imaginam coisas vãs£ Os reis da terra se levantam, e os príncipes juntos se mancomunam contra o SENHOR e contra o seu ungido, dizendo: Rompamos as suas ataduras e sacudamos de nós as suas cordas. Aquele que habita nos céus se rirá; o Senhor zombará deles. Então, lhes falará na sua ira, e no seu furor o confundirá. Eu, porém, ungi o meuRei sobre o meu santo monte Sião. Recitarei o decreto: O SENHORme disse: Tu és meu Filho; eu hoje te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por herança e os confins da terra por tua possessão.
Tu os esmigalharás com uma vara de ferro; tu os despedaçarás como a um vaso de oleiro. Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos instruir, juízes da terra. ServiaoSENHOR com temore alegrai-vos com tremor. Beijai o Filho, para que se não ire, e pereçais no caminho, quando em breve se inflamar a sua ira. BEM-AVENTURADOS TODOS AQUELES QUE NELE CONFIAM" (Salmo 2).

O Carmesim
O "carmesim", quando genuíno, é produzido pela morte e f ala-nos dos sofrimentos de Cristo:".. .Cristo padeceu por nós na carne" (1 Pe 4:1). Sem morte, tudo teria sido inútil. Podemos admirar "o azul" e a "púrpura", mas sem o "carmesim" o tabernáculo teria perdido um aspecto importante. Foi por meio da morte que Cristo destruiu aquele que tinha o império da morte. O Espírito Santo, pondo diante de nós uma figura admirável de Cristo — o verda¬deiro tabernáculo —, não podia omitir aquela fase do Seu caráter que constitui o fundamento da Sua união com o Seu corpo, a Igreja, o Seu direito ao trono de Davi e o senhorio de toda a criação. Em suma, o Espírito não somente nos mostra o Senhor Jesus, nestas cortinas simbólicas, como homem imaculado, homem real, mas também como homem sofredor; aquele que, por meio da morte, adquiriu o direito àquilo que, como homem, tinha direito nos desígnios divinos.

A Primeira Cortina
Contudo, as cortinas do tabernáculo não são apenas a expressão dos diferentes aspectos do caráter de Cristo, como põem também em evidência a unidade e firmeza desse caráter. Cada um desses aspectos está exposto na sua própria perfeição; e nunca interfere com ou prejudica a beleza de outro. Tudo era harmonia perfeita aos olhos de Deus e foi assim apresentado no "modelo que no monte se mostrou" a Moisés e na sua reprodução no meio do povo. "Cinco cortinas se enlaçarão à outra; e as outras cinco cortinas se enlaçarão uma com a outra" (versículo 3). Tal era a proporção e firmeza em todos os caminhos de Cristo, como homem perfeito, andando pelo mundo, em qualquer situação ou relação que O considerarmos. Quando atua segundo um desses caracteres, não encontramos absolutamente nada que seja incompatível com a integridade divina de outro. Ele foi, em todo o tempo, em todo o lugar e em todas as circunstâncias, o homem perfeito. Nada n'Ele faltava a essa encantadora e bela proporção que Lhe era própria, em todos os Seus atos. "Todas estas cortinas serão de uma medida"(versículo 2).
Um par de cinco cortinas pode muito bem simbolizar os dois aspectos principais do caráter de Cristo atuando a favor de Deus e do homem. Vemos os mesmos dois aspectos na lei, a saber, o que era devido a Deus e o que era devido ao homem; de forma que, quanto a Cristo, se olharmos de passagem, vemos que Ele podia dizer, "a tua lei está dentro do meu coração" (SI 40); e se pensarmos na Sua conduta, vemos esses dois elementos ordenados com perfeita pre¬cisão, e não só ordenados, mas inseparavelmente unidos pela graça celestial e a energia divina que habitaram na Sua gloriosa Pessoa.
"E farás laçadas de pano azul na ponta de uma cortina, na extremidade, na juntura; assim também farás na ponta da extremi¬dade da outra cortina, na segunda juntura... Farás tàmbémcinqúen-ta colchetes de ouro, e ajuntarás com estes colchetes as cortinas, uma com a outra e será um tabernáculo" (versículos 4 e 6). Nas "laçadas" de azul e nos "colchetes de ouro" temos a manifestação daquela graça celestial e energia divina em Cristo que Lhe proporcionou ligar e harmonizar perfeitamente as reivindicações de Deus e as pretensões do homem; de forma que, satisfazendo tanto umas como outras, Ele nunca, nem por um momento, perturbou o Seu caráter. Quando os homens astutos e hipócritas o tentaram com a pergunta: "É lícito pagar o tributo a César, ou não?" a Sua resposta foi, "Dai... a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Mt 22:17-21).
Nem foi apenas César, mas o homem em todas as suas relações que recebeu a resposta a todas as suas pretensões em Cristo. Da mesma maneira que reuniu na Sua Pessoa a natureza de Deus e humana, satisfez em Seus passos de perfeição as exigências de Deus e as pretensões do homem. Seria muito interessante seguir, através da narrativa do evangelho, a exemplificação do princípio sugerido pelas "laçadas de azul" e os "colchetes de ouro"; devo, porém, deixar que o leitor prossiga este estudo sob a direção do Espírito Santo, o Qual deseja alargar-Se sobre cada aspecto d 'Aquele bendito Senhor que é Seu propósito exaltar.

A Cortina de Pêlos de Cabras
A primeira cortina (na verdade, um par de cinco cortinas) era encoberta por outras de "pêlos de cabras" (versículos 7 a 13). Sua beleza estava escondida para os de fora por aquilo que indicava aspereza e severidade. Para aqueles que tinham o privilégio de entrar no recinto sagrado nada era visível senão o "azul", a púrpu¬ra", o "camersim" e o "linho fino torcido"—a exposição combinada das virtudes e excelência desse tabernáculo divino no qual Deus habitou atrás do véu: isto é, Cristo, por Cuja carne, o antítipo de todas estas coisas, os raios dourados da natureza divina brilharam tão delicadamente que o pecador podia vê-los acabrunhado pelo seu brilho deslumbrante.
Quando o Senhor Jesus passou por este mundo, quão poucos foram aqueles que realmente o conheceram! Quão poucos tiveram os olhos ungidos com colírio celestial para penetrarem e apreciarem o profundo mistério do Seu caráter! Quão poucos viram o "azul", a "púrpura", o "carmesim" e o "linho fino torcido"! Foi só quando a fé trouxe o homem à sua presença que Ele pôde consentir que o esplendor daquilo que Ele era brilhasse — deixou que a glória atravessasse a nuvem. Para a visão natural era como se houvesse uma reserva e severidade à Sua volta, que era justamente simboli¬zada pelas "cortinas de pêlos de cabras". Tudo isto era o resultado da Sua profunda separação e apartamento, não dos pecadores pes¬soalmente, mas dos pensamentos e máximas dos homens. Nada tinha em comum com o homem, nem estava dentro do âmbito da natureza humana compreendê-Lo. "Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer"; e quando um daqueles que haviam sido trazidos confessou o Seu nome, disse-lhe que não fora a carne que lho revelara, "mas meu Pai que está nos céus" (compare Jo 6:44 e Mt 16:17). Ele era "como raiz de uma terra seca", sem "parecer" nem "formosura" para atrair a vista ou satisfazer o coração do homem. A corrente da opinião pública nunca poderia correr na direção d'Aquele que, passando rapidamente pelo palco deste mundo, ia envolto numa "cortina de pêlos de cabras". Jesus não foi popular. A multidão pôde segui-Lo por um momento, porque, para ela, o Seu ministério estava ligado com "os pães e os peixes", que respondiam à sua necessidade; mas estava igualmente tão pronta a clamar: "Tira, tira, crucifica-o" como a exclamar "Hosana ao Filho de Davi!"(Mt 21:9). Que os cristãos, os servos de Cristo, os pregadores do evangelho se lembrem disto! Quetodosnós ecadaumem particular se lembre sempre das "cobertas de pêlos de cabras".

A Cortina de Peles de Carneiros Tintas de Vermelho
Porém se as peles de cabras representavam o rigor da separação de Cristo do mundo, as "peles de carneiro, tintas de vermelho, representam a Sua consagração e afeto a Deus, mantidos mesmo até à morte. Ele foi o único servo perfeito que trabalhou na vinha de Deus. Teve um só fim, que prosseguiu com firme propósito desde a manj edoura até à cruz, e este foi glorificar o Pai e consumar a Sua obra. "Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai1?-" Era a linguagem da Sua mocidade e o cumprimento desses "negó¬cios" era o fim da Sua vida. A Sua comida era fazer a vontade d'Aquele que o tinha enviado e cumprir a Sua obra (Jo 4:34). As "peles de carneiro tintas de vermelho" formam uma parte tão distinta do Seu hábito normal como os "pêlos de cabras". A sua devoção por Deus separava-O dos hábitos dos homens.

A Cortina de Peles de Texugo
"As peles de texugo" parece indicarem a santa vigilância com que o Senhor Jesus estava em guarda contra a aproximação de tudo que era hostil ao fim que absorvia toda a Sua alma. Ele tomou a Sua posição ao lado de Deus e manteve-a com uma persistência que nenhuma influência dos homens ou demónios, da terra ou do inferno, pôde j amais vencer. A coberta de peles de texugo estava por "cima" (versículo 14), ensinando-nos que o aspecto proeminente do caráter do "Homem Cristo Jesus" era a determinação de ser uma testemunha de Deus na terra. Foi o verdadeiro Nabote, que preferiu dar a Sua vida a renunciar à verdade de Deus, ou abandonar aquilo para que havia tomado o Seu lugar neste mundo.
A cabra, o carneiro e o texugo devem ser considerados como representando certos aspectos naturais e simbolizando também certas qualidades morais, e devem tomar-se em conta na sua aplicação ao caráter de Cristo. A vista humana só podia distinguir o aspecto natural, porém não podia ver nada da graça moral, beleza e dignidade que se ocultavam debaixo da forma exterior do desprezado e humilde Jesus de Nazaré. Quando os tesouros de sabedoria divina fluíam dos Seus lábios, a interrogação daqueles que O ouviam era esta: "Não é este o carpinteirou" (Mc 6:3). "Como sabe este letras, não as tendo aprendido"?-" (Jo 7:15). Quando declarava que era o Filho de Deus e afirmava a Sua divindade eterna, respondiam-lhe: "Ainda não tens cinquenta anos", ou pegavam "em pedras para lhe atirar" (Jo 8:57- 59). Em suma, a confissão dos fariseus, "este não sabemos donde é" (Jo 9:29) era verdadeira.
Seria completamente impossível, num volume como este, se¬guir o desenrolar dos aspectos preciosos do caráter de Cristo, que nos mostra o relato do evangelho. Dissemos o bastante para abrir ao leitor um manancial de meditação espiritual e dar uma ideia dos tesouros preciosos que estão envolto nas cortinas e cobertas do tabernáculo. O mistério de Cristo, motivos secretos de ação e suas perfeições inerentes — a Sua aparência exterior desprovida de atrativos —, aquilo que Ele era em Si Mesmo, o que era para Deus, e o que era para os homens, o que era segundo o juízo da fé e no parecer da natureza, tudo isto estava agradavelmente relatado aos ouvidos circuncidados pelas cortinas de azul, púrpura, carmesim e linho fino torcido, bem como na cobertura de peles.

As Tábuas e suas Bases de Prata
"As tábuas para o tabernáculo" (versículo 15) eram feitas da mesma madeira que era usada na "arca do concerto". Demais, debaixo das tábuas haviabases de prata proveniente do resgate—os "colche¬tes" e as "molduras" eram igualmente de prata (compare-se atenta-menteocapítulo30:llal6comocapítulo38:25a28).Ovigamento da tenda do tabernáculo descansava todo sobre bases daquilo que indicava a expiação ou o resgate da alma; enquanto que os "colchetes" e as "molduras" da parte superior reproduziam o mesmo pensamen¬to. As bases de prata estavam metidas na areia e os colchetes e as molduras estavam em cima. Qualquer que seja a profundidade a que penetrarmos ou a altura que alcançarmos acharemos esta verdade gloriosa e eterna brasonada: "JÁ ACHEI RESGATE" Qó 33:24). Bendito seja Deus, não somos resgatados "com coisas corruptíveis, como prata ou ouro,.. .mas com o precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro imaculado e incontaminado" (IPe 1:19).

Os Véus que Fecharam as Entradas
O tabernáculo estava dividido em três partes distintas: "O lugar santíssimo", "o santuário" e "o pátio do tabernáculo". A entrada para cada uma destas partes era feita dos mesmos materiais, "azul, púrpura, carmesim e linho fino torcido" (compare-se o capítulo 26:31 e 36 com 27:16). A sua interpretação é simples: Cristo é a única porta de entrada aos vários campos de glória que hão de ser ainda revelados, quer seja na terra, no céu ou no céu dos céus.
"Toda a família nos céus e na terra" (Ef 3:15) será posta sob a Sua autoridade e introduzida na felicidade e glória eternas, em virtude da expiação que Ele fez. Isto é bem claro e não exige esforço de imaginação para ser compreendido. Sabemos que é verdadeiro, e quando conhecemos a verdade que é simbolizada, o símbolo é facilmente compreendido. Se os nossos corações estivessem cheios de Cristo, não nos perderemos na nossa inter¬pretação do tabernáculo e seus acessórios. Não é de um intelecto cheio de criticismo que precisamos neste estudo, mas de um coração cheio de amor porjesus e uma consciência em paz pelo sangue da cruz.
Que o Espírito Santo nos prepare para o estudo destas coisas com um maior interesse e inteligência! Que Ele abra os nossos olhos para que contemplemos as maravilhas da lei.

— CAPÍTULO 27 —

O ALTAR DE COBRE
E O ÁTRIO

O Altar de Incenso não Mencionado
Deparamos agora com o altar de cobre que estava à porta do tabernáculo, e quero chamar a atenção do leitor para a ordem seguida pelo Espírito Santo nesta parte do livro. Já fizemos notar que a passagem compreendida entre o capítulo 25 e o versículo 19 do capítulo 27 forma uma parte distinta, que nos dá uma descrição da arca e do propiciatório, da mesa e do castiçal, das cortinas e do véu, e, por fim, do altar de cobre edopátioemque estava esse altar colocado. Lendo os versículos 15 do capítulo 35, 25 do capítulo 37 e 26 do capítulo 40, vemos que o altar do incenso está mencionado entre o castiçal e o altar de cobre. Ao passo que, quandoo Senhor dá instruções a Moisés, o altar de cobre é introduzido imediatamente depois do castiçal e das cortinas do tabernáculo. Ora, visto que deve haver uma razão divina para esta diferença, é privilégio de todo o estudioso inteligente e aplicado da Palavra de Deus indagar qual era essa razão.
Qual é a razão, portanto, por que o Senhor, quando dá instrução quanto aos adornos do "santuário", omite oaltarde incensoepassa ao altar de cobre que estava à porta do tabernáculo*?- A razão, presumo, é simplesmente esta: descreve primeiro a maneira em que há de manif estar-Se ao homem, e depois indica a forma de o homem se aproximar de Si. Tomou o Seu lugar no trono; como o "Senhor de toda a terra" (Js 3:11 e 13): os raios da Sua glória estavam ocultos atrás do véu—figura da carne de Cristo (Hb 10:20); porém, fora do véu, estava a manifestação de Si Mesmo, em ligação com o homem, na "mesa pura", e, pela luz e poder do Espírito Santo, representados no castiçal. Depois vem o caráter de Cristo como homem aqui na terra, representado nas cortinas e nas cobertas do tabernáculo. E finalmente temos o altar de cobre como a grande exibição do lugar de encontro entre o Deus santo e o pecador. Isto leva-nos, com efeito, à extremidade, de onde voltamos, na companhia de Arão e seus filhos, ao santuário, o lugar normal dos sacerdotes, onde estava o altar do incenso. Desta forma a ordem é notavelmente formosa. Do altar de ouro, não se faz menção antes que haja sacerdote para queimar incenso sobre ele, porque o Senhor mostrou a Moisés o modelo das coisas nos céus segundo a ordem em que estas coisas devem ser atendidas pela fé. Por outra parte, quando Moisés dá instruções às consagrações (capítulo 35), quando dá conta dos trabalhos de Bezaleel e Aoliabe (capítulos 37 e 38), e quando levanta o tabernáculo (capítulo 40), segue simplesmente a ordem em que os utensílios estavam colocados.

O Altar de Cobre
O prosseguimento deste estudo tão interessante, e o confronto das passagens acima mencionadas, recompensarão amplamente o leitor. Passemos agora ao altar de cobre.
Este altar era o lugar onde o pecador se aproximava de Deus, pelo poder e em virtude do sangue da expiação. Estava colocado à porta do tabernáculo da "tenda da congregação", e sobre ele era derramado todo o sangue dos sacrifícios. Era construído de "madeira de cetim e cobre". A madeira era a mesma do altar de ouro do incenso, mas o metal era diferente, e a razão desta diferença é obvia. O altar de bronze era o lugar onde o pecado era tratado segundo o juízo divino. O altar de ouro era o lugar onde o perfume precioso da aceitabilidade de Cristo subia para o trono de Deus. A "madeira de cetim", como figura da humanidade de Cristo, era a mesma num caso e no outro; porém no altar de cobre vemos Cristo sob o fogo da justiça divina; no altar de ouro vemos como Ele satisfaz os afetos divinos. No primeiro, o fogo da ira divina foi apagado, no último, o fogo do culto sacerdotal é aceso. A alma deleita-se de encontrar Cristo tanto num como no outro; porém o altar de cobre é o único que responde às necessidades de uma consciência culpada, como a primeira coisa para um pobre pecador desamparado, necessitado e convicto. Não é possível haver paz sólida, quanto à questão do pecado, enquanto o olhar da fé não descansar em Cristo como o antítipo do altar de cobre. É necessário que eu veja o meu pecado reduzido a cinzas na fornalha desse altar, antes de poder gozar de paz de consciência na presença de Deus. É quando sei, pela fé no testemunho de Deus, que Ele Próprio tratou do meu pecado na Pessoa de Cristo, no altar de cobre—que deu satisfação a todas as Suas justas exigências —, que tirou o meu pecado da Sua santa presença, de modo que nunca mais pode voltar, que posso gozar paz divina e eterna — e não antes.

O Ouro e o Cobre
Quero fazer aqui uma observação sobre o significado do "ouro" e do "cobre" nos utensílios do tabernáculo. O "ouro" é símbolo da justiça divina, ou da natureza divina no "Homem Jesus Cristo". "Cobre" é o símbolo da justiça, pedindo o julgamento do pecado, como no altar de cobre; ou o julgamento da impureza, como na pia de cobre. Isto explica a razão por que dentro da tenda do tabernáculo tudo era ouro — a arca, o propiciatório, a mesa, o castiçal e o altar do incenso. Todas estas coisas eram os símbolos da natureza divina e da excelência pessoal inerente do Senhor Jesus Cristo. Por outro lado, fora da tenda do tabernáculo tudo era cobre—o altar de cobre e os seus utensílios, a pia e a sua base.
É preciso que as exigências da justiça, quanto ao pecado e à impureza, sejam divinamente satisfeitas antes que possa haver alguma alegria pelos preciosos mistérios da Pessoa de Cristo, tais como nos são revelados no interior do santuário de Deus. É quando posso ver todo o pecado e impureza perfeitamente julgados e lavados que posso, como sacerdote, aproximar-me e adorar no santuário, e gozar a plena manifestação da formosura e perfeição do Deus Homem, Cristo Jesus.
O leitor poderá, com muito proveito, prosseguir com a aplicação deste pensamento em pormenor, não apenas no estudo do tabernáculo e o templo, mas também em várias passagens da Palavra de Deus; por exemplo, no capítulo 1 de Apocalipse Cristo aparece "cingido pelos peitos com um cinto de ouro" e tendo os Seus "pés semelhantes a latão reluzente, como se tivessem sido refinados numa fornalha". O "cinto de ouro" é o símbolo da Sua justiça intrínseca. Os pés semelhantes a latão reluzente" são a expressão do juízo inflexível sobre o mal- o Senhor não pode tolerar o mal, antes pelo contrário, tem de esmagá-lo debaixo dos Seus pés.
Tal é o Cristo com Quem temos de tratar. Julga o pecado, mas salva o pecador. A fé vê o pecado reduzido a cinzas no altar de cobre; vê toda a impureza lavada na pia de cobre; e, finalmente, goza de Cristo, tal como é revelado, no secreto da presença divina, pela luz e poder do Espírito Santo. A fé acha-O no altar de ouro, em todo o valor da Sua intercessão. Alimenta-se d'Ele à mesa pura. Reconhece-O na arca e no propiciatório como Aquele que responde a todas as exigên¬cias da justiça divina, e, ao mesmo tempo, satisfaz todas as necessi¬dades humanas. Contempla-O no véu, como todas as figuras místi¬cas. Vê escrito o Seu nome precioso em todas as coisas. Oh, que os nossos corações estejam sempre prontos a apreciar e louvar este Cristo incomparável e glorioso!
Nada pode ser de tanta importância como o conhecimento claro da doutrina do altar de cobre; quero dizer, como é ensinada por meio dele. E devido à falta de clareza sobre este ponto que muitas almas se lamentam toda a vida. A questão da sua culpa nunca foi clara e completamente liquidada no altar de cobre. Nunca chegaram a realizar pela fé que o Próprio Deus liquidou para sempre, na cruz, a questão dos seus pecados. Buscam paz para as suas consciências atribuladas na regeneração e a sua evidência—os frutos do Espírito, a sua disposição, sentimentos e experiência —, coisas muito boas e valiosas em si, mas que não formam o fundamento da paz. E o conhecimento daquilo que Deus tem feito no altar de cobre que enche a alma de paz. As cinzas no altar contam-me a história que TUDO ESTÁ CUMPRIDO. Os pecados do crente foram todos tirados pela própria mão do amor redentor. "Aquele que não conhe¬ceu pecado, o fez pecado por nós, para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus" (2 Co5:21).Todoopecadodeve ser julgado, porém os pecados do crente já foram julgados na cruz; por isso ele está perfeitamente justificado. Supor que pode existir qualquer coisa contra o crente, mesmo o mais fraco, é negar toda a obra da cruz. Os pecados e as iniquidades do crente foram todos tirados pelo Próprio Deus, e portanto foram perfeitamente quitados. Desapareceram com a vida que o Cordeiro de Deus derramou na morte.
Certifique-se o leitor de que o seu coração está inteiramente fundado na paz que Jesus fez pelo sangue da sua cruz.

— CAPÍTULO 28 —

AS VESTES
DOS SACERDOTES

Estes capítulos mostram-nos o Sacerdócio em todo o seu valor e eficácia, e estão cheios de interesse. A própria palavra "sacerdó¬cio" desperta no coração um sentimento da mais profunda grati¬dão pela graça que não só nos abriu um caminho para entrarmos na presença de Deus, como nos deu o necessário para ali nos mantermos, segundo o caráter e as exigências dessa posição eleva¬da e santa.

O Sacerdócio de Arão
O sacerdócio de Arão era um dom de Deus por um povo que, por natureza própria, estava distante e necessitava de alguém que aparecesse em seu nome continuamente na Sua presença. O capítulo 7 da epístola aos Hebreus ensina-nos que a ordem do sacerdócio estava ligada com a lei, que fora estabelecida segundo "a lei do mandamento carnal" (versículo 16) e que fora impedida de permanecer pela morte (versículo 23) e que os sacerdotes dessa ordem estavam sujeitos às fraquezas humanas. Portanto, esta ordem não podia dar perfeição, e por isso devemos bendizer a Deus por não ter sido instituída com "juramento". O juramen¬to de Deus só podia fazer-se em ligação com aquilo que devia durar eternamente, e isto era o sacerdócio perfeito, imortal, e intransmissível do nosso grande e glorioso Melquizedeque, que dá ao Seu sacrifício e ao Seu sacerdócio todo o valor, e a dignidade e glória da Sua incomparável Pessoa. O simples pensamento de que temos um tal sacrifício e um tal Sacerdote faz com que o coração palpite com as mais vivas emoções de gratidão.

O Éfode e as Pedras Preciosas
Mas devemos prosseguir com o exame dos capítulos que ainda temos à nossa frente. Em capítulo 28 temos as vestes sacerdotais, e em capítulo 29 trata-se dos sacrifícios. Aquelas estão mais em ligação com as necessidades do povo, enquanto que estes se relacionam com os direitos de Deus. As vestes representam as diversas funções e atributos do cargo sacerdotal. O "éfode" era o manto sacerdotal, e estando inseparavelmente ligado às umbreiras e ao peitoral, ensina-nos, clara¬mente, que a força dos ombros do sacerdote e o afeto do seu coração estavam inteiramente consagrados aos interesses daqueles que repre¬sentava, e a favor dos quais levava o éfode. Estas coisas, que eram simbolizadas em Arão, são realizadas em Cristo. O Seu poder onipo-tente e amor infinito pertencem-nos eternamente e incontestavel¬mente. Os ombros que sustém o universo protegem até o mais fraco e obscuro membro da congregação redimida a preço de sangue. O coração de Jesus bate com afeto imorredouro até mesmo pelo membro menos considerado da assembleia redimida.
Os nomes das doze tribos, gravados sobre pedras preciosas, eram levados tanto sobre os ombros como sobre o peito do sumo sacerdote (vide versículos 9al2,15a29).A excelência peculiar de uma pedra preciosa consiste no fato que quanto mais intensa é a luz que sobre ela incide, tanto maior é o seu brilho esplendente. A luz nunca pode obscurecer uma pedra preciosa; apenas aumenta e desenvolve o seu brilho. As doze tribos, tanto uma como outra, a maior como a menor, eram levadas continuamente à presença do Senhor sobre o peito e os ombros de Arão. Eram todas, e cada uma em particular, mantidas na presença divina em todo este resplendor perfeito da formosura inalterável que era próprio da posição em que a graça perfeita do Deus de Israel as havia colocado. O povo era represen¬tado diante de Deus pelo sumo sacerdote. Quaisquer que fossem as suas fraquezas, os seus erros, ou faltas, os seus nomes resplandeciam sobre o "peitoral" com imarcescível esplendor. O Senhor havia-lhes dado esse lugar, e quem poderia arrancá-los dali1?- Jeová tinha-os posto assim, e quem podia pô-los de outra formai Quem teria podido penetrar no santuário para arrebatar de sobre o coração de Arão o nome de uma das tribos de Israel? Quem teria podido manchar o brilho que rodeava esses nomes no lugar onde Deus os havia colocado? Ninguém. Estavam fora do alcance de todo o inimigo — longe da influência de todo o mal.
Quão animador é para os filhos deDeus,quesão provados, tentados, zurzidos e humilhados, pensar que Deus os vê sobre o coração de Jesus! Perante os Seus olhos, eles brilham sempre em todo o fulgor de Cristo, revestidos de toda agraça divina. O mundo não pode vê-los assim; mas Deus vê-os desta maneira, enistoestátodaa diferença. Os homens, ao considerarem os filhos de Deus, vêem apenas as suas imperfeições e defeitos, porque são incapazes de ver qualquer coisa mais; de sorte que o seu juízo é sempre falso e parcial. Não podem ver as jóias brilhantes com os nomes dos remidos gravados pela mão do amor imutável de Deus. É certo que os cristãos deveriam ser cuidadosos em não dar ocasião a que os homens do mundo falem injuriosamente; deviam procurar, fazendo bem, tapar a boca à ignorância dos homens maus (lPe2:15). Seao menos compreendessem, pelo poder do Espírito Santo, a graça em que brilham sem cessar, aos olhos de Deus, realizariam certamente as características de uma vida de santidade prática, pureza moral e engrandecimento perante os olhos dos homens. Quanto mais compreendermos, pela fé, a verdade objetiva, ou tudo o que somos em Cristo, tanto mais profunda, prática e real será a obra subjetiva em nós, e maior será a manifestação do efeito moral na nossa vida e caráter.
Mas, graças aDeus, não temos que ser julgados pelos homens, mas por Ele Próprio: e misericordiosamente mostra-nos o nosso sumo sacerdote levando o nosso juízo sobre o seu coração diante do Senhor continuamente (versículo 30). Esta segurança dá paz profunda e sólida ao coração—uma pazque nada pode abalar. Podemos ter de confessar elamentar as nossas faltasedefeitosconstantes;anossa vista pode estar, por vezes, obscurecida de tal maneira por lágrimas de um verdadeiro arrependimento que não possa ver o brilho das pedras preciosas com os nossos nomes gravados, e todavia eles estãonelas. Deus os vê, e isto é suficiente. É glorificado pelo seu brilho; brilho que não é conseguido por nós, mas com que Ele nos dotou. Nada tínhamos senão trevas, tristeza, e deformidades; mas Deus deu-nos brilho, pureza e beleza. A Ele seja dado o louvor pelos séculos dos séculos!

O Cinto
O "cinto" é o símbolo bem conhecido do serviço; e Cristo é o Servo perfeito—o Servo dos desígnios divinos e das necessidades profundas e variadas do Seu povo. Com espírito de sincera dedicação, que nada podia impedir, Ele cingiu-se para a Sua obra; e quando a fé vê assim o Filho de Deus cingido julga, certamente, que nenhuma dificuldade é grande demais para Si. No símbolo que temos perante nós vemos que todas as virtudes, méritos, e glórias de Cristo, na Sua natureza divina e humana, entram plenamente no Seu caráter de servo. "E o cinto de obra esmerada, do seu éfode, que estará sobre ele, será da mesma obra, da mesma obra de ouro, e de pano azul e de púrpura, e de camesim e de linho fino torcido" (versículo 8). A fé disto deve satisfazer todas as necessidades da alma e os mais ardentes desejos do coração. Não vemos Cristo apenas como a vítima imolada no altar, mas também como o cingido Sumo Sacerdote sobre a casa de Deus. Bem pode, pois, o apóstolo inspirado dizer, "cheguemo-nos,... retenha¬mos... consideremo-nos uns aos outros" (Hb 10:19-24).

O Peitoral de Juízo. O Urim e o Tumim
"Também porás no peitoral do juízo Urim e Tumim", (luzes e perfeições) "para que estejam sobreocoraçãodeArão,quandoentrar diante do SENHOR; assim, Arão levará o juízo dos filhos de Israel sobre o seu coração, diante do SENHOR, continuamente" (versículo 30). Aprendemos em várias passagens da Escritura que o Urim estava relacionado com a comunicação da mente de Deus, quanto às diferen¬tes questões que se levantavam nos pormenores da história de Israel. Assim, por exemplo, na nomeação de Josué, lemos; "E se porá perante Eleazar, o sacerdote, o qual por ele consultará, segundo o juízo de Urim, perante o SENHOR" (Num. 27:21). "E de Levi disse: Teu Tumim e teu Urim (as tuas perfeições e luzes) são para o teu amado... ensinaram os teus juízos a Jacó e a tua lei a Israel" (Dt 33:8 -10). "E perguntou Saul ao SENHOR, porém o SENHOR lhe não respondeu, nem por sonhos, nem porUrim, nem por profetas" (1 Sm 28:6). "E otirsata lhes disse que não comessem das coisas sagradas, até que houvesse sacerdote com
Urim e com Tumim"(Ed 2:63). Vemos assim que o sumo sacerdote não só levava o juízo da congregação perante o Senhor, como comu¬nicava tambémo juízo do Senhor àcongregação—solenes, importan¬tes, e preciosas funções! É o que temos, com perfeição divina, no nosso "grande sumo sacerdote, ...que penetrou nos céus" (Hb 4:14). Leva continuamente o j uízo do Seu povo sobre o coração, e, por intermédio do Espírito Santo, comunica-nos o conselho de Deus a respeito dos pormenores mais insignificantes da nossa vida diária. Não temos necessidade de sonhos ou visões: se andarmos em Espírito, desfrutare¬mos toda a certeza que pode conceder o perfeito "Urim" sobre o coração do nosso Sumo Sacerdote.

O Manto do Éfode
"Também farás o manto do éfode todo de pano azul... e nas suas bordas farás romãs de pano azul, de púrpura e de carmesim, ao redor das suas bordas; e campainhas de ouro no meio delas, ao redor. Uma campainha de ouro e uma romã, outra campainha de ouro e outra romã haverá nas bordas do manto ao redor, e estará sobre Arão, quando ministrar, para que se ouça o seu sonido, quando entrar no satuário diante do SENHORA quando sair, para que não morra" (versículos 31 a35).
O manto azul do "éfode" exprime o caráter celestial do nosso Sumo Sacerdote, que penetrou nos céus, para além do alcance da visão humana; porém, pelo poder do Espírito Santo, há um testemunho da verdade de estar vivo na presença de Deus; e não apenas um testemu¬nho, mas fruto também. "Uma compainha de ouro e uma romã, outra campainha de ouroe outra romã". Tal é a ordem cheia de beleza. O verdadeiro testemunho da grande verdade que Jesus vive sempre para interceder por nós estará sempre ligado com fertilidade no Seu serviço. Oh, se ao menos pudéssemos compreender mais profunda¬mente estes mistérios preciosos e santos! (¹).
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(¹) É desnecessário advertir que existe uma propriedade divina e significativa em todas as figuras que nos são apresentadas na Palavra de Deus. Assim, por exemplo, a "romã", quando aberta verifica-se que consiste de um número de sementes contidas num líquido vermelho. Certamente, isto fala por si. Que a espiritualidade, e não a imaginação, faça o seu juízo.

A Lâmina de Ouro
"Também farás uma lâmina de ouro puro e nela gravarás, à maneira degravuras de selos.- SANTIDADEAO SENHOR. E atá-la-ás comum cordão de fio azul, de maneira que esteja na mitra; sobre a frente da mitra estará. E estará sobre a testa de Arão, para que Arão leve a iniquidade das coisas santas, que os filhos de Israel santificarem em todas as ofertas de suas coisas santas; e estará continuamente na sua testa, para que tenham aceitação perante o SENHOR" (versículos 36 a 38). Eis aqui uma verdade importante para a alma. A lâmina de ouro sobre a testa de Arão era figura da santidade do Senhor Jesus Cristo: "e estará CONTINUAMENTE NA SUA testa, para que TENHAM aceitação perante o SENHOR". Que descanso para o cora¬ção por entre as flutuações da nossa experiência! O nosso Sumo Sacerdote está sempre na presença de Deus por nós. Somos represen¬tados pore aceites n'Ele. A Sua santidade pertence-nos. Quanto mais profundamente conhecermos a nossa própria vileza e fraquezas, tanto mais experimentaremos a verdade humilhante que em nós não habita bem algum, e mais fervorosamente bendiremos o Deus de toda a graça por esta verdade consoladora: "estará continuamen¬te na sua testa, para que tenham aceitação perante o SENHOR".
Se o leitor for um daqueles que são frequentemente tentados e sobrecarregados com dúvidas e temores, com altos e baixos no seu estado espiritual, com tendências a contemplar o seu pobre coração, frio, inconstante e rebelde—se for tentado com incerteza excessiva e falta de santidade —, deve apoiar-se de todo o coração sobre esta verdade preciosa: que o seu Sumo Sacerdote representa-o diante do trono de Deus. Deve fixar os seus olhos na lâmina de ouro e ler, na inscrição gravada nela, a medida da sua aceitação eterna perante Deus. Que o Espírito Santo o ajude a provar a doçura peculiar e o poder mantenedor desta doutrina divina e celestial!

As Vestes dos Filhos de Arão
"Também farás túnicas aos filhos de Arão, e f ar-Ihes-ás cintos; também lhes farás tiaras, para glória e ornamento... faze-lhes também calções de linho, para cobrirem a carne nua... e estarão sobre Arão e sobre seus filhos, quando entrarem na tenda da congregação ou quando chegarem ao altar para ministrar no san¬tuário, para que não levem iniquidade e morram." Aqui, Arão e seus filhos representam em figura Cristo e a Igreja—são a expressão das qualidades intrínsecas, essenciais, pessoais e ternas de Cristo; en¬quanto que as "túnicas" e "tiaras" dos filhos de Arão representam aquelas graças de que está revestida a Igreja, em virtude da sua ligação com a Cabeça da família sacerdotal.
Podemos ver assim em tudo que acaba de passar perante os nossos olhos, neste capítulo, o cuidado misericordioso com que Jeová fez provisão para as necessidades do Seu povo, permitindo que eles vissem aquele que estava prestes a atuar a seu favor e a representá-nos na Sua presença vestido como os vestidos que correspondiam diretamente à condição do povo, tal qual Ele os conhecia. Nada que o coração pudesse desejar ou de pudesse ter necessidade foiesquecido. Podiam contemplar Arão dos pés à cabeça e ver que tudo estava completo. Desde a mitra santa na cabeça de Arão às companhias de ouro e romãs que bordavam o seu manto, tudo era como devia estar, porque tudo estava conforme o modelo que fora mostrado no monte —tudo era segundo o cálculo que o Senhor fazia das necessidades do Seu povo e das Suas próprias exigências.

Fios de Ouro Entretecidos
Mas existe ainda um ponto relacionado com as vestes de Arão que requer a atenção do leitor: e este é a forma como o ouro é introduzido na sua confecção. Este assunto acha-se no capítulo 39; contudo a sua interpretação cabe muito bem aqui. "E estenderam as lâminas de ouro, e as cortaram em fios, para entretecer entre o pano azul, e entre a púrpura, e entre o carmesim, e entre o linho fino da obra mais esmerada" (capítulo 39:3). Já fizemos notar que o "azul, a púrpura, o carmesim e o linho fino torcido" apresentam as várias fazes da humanidade de Cristo, e que o ouro representa a Sua natureza divina. Os fios de ouro estavam curiosamente introduzi¬dos nos demais materiais, de modo a estarem inseparavelmente unidos, e todavia perfeitamente distintas deles. A aplicação desta admirável imagem ao caráter do Senhor Jesus é cheia de interesse. Em diferentes cenas apresentadas nos relatos dos evangelhos, pode¬mos discernir facilmente esta rara e formosa união da humanidade e divindade, e, ao mesmo tempo, a distinção misteriosa.
Por exemplo, considerai Cristo no mar da Galiléia, no meio da tempestade. Ele "estava dormindo sobre uma almofada" (Mc 4:38). Que preciosa demonstração da sua humanidade! Porém, num mo¬mento eleva-Se da atitude de verdadeira humanidade à dignidade completa e majestade da divindade, e, como supremo Governador do universo, acalma a tempestade e impõe silêncio ao mar. Não se nota aqui nenhum esforço, nenhuma precipitação, nem preparação pré¬via para este momento. Com perfeita naturalidade, Ele passa da condição de humanidade positiva à esfera essencial da divindade. O repouso daquela não é mais natural que a atividade desta. Ele está perfeitamente no Seu elemento tanto numa como na outra.
Vede-O ainda no caso dos cobradores do tributo, segundo Mateus, 17. Como "Deus Altíssimo, possuidor dos céus e da terra", estende a Sua mão sobre os tesouros do oceano, e diz, "são meus"; e, havendo declarado que o oceano é Seu, "pois Ele o fez" (SI 95:5), volta-Se e, numa demonstração de perfeita humanidade, associa-Se ao seu pobre servo, por meio dessas palavras tocantes, "toma-o e dá-o por mim e por ti". Palavras cheias de graça! Sobretudo quando as consideramos em ligação com o milagre tão expressivo da divindade d'Aquele que assim se ligava, em infinita condescendência, com um pobre verme.
Mas vede-O, mais uma vez, junto da sepultura de Lázaro 0o 11). Comove-Se e chora, e essa emoção e essas lágrimas provêm das profundidades de uma humanidade perfeita—desse coração perfei¬tamente humano, que sentia, como nenhum outro coração podia sentir, o que era achar-se no meio da cena em que o pecado havia produzido tão terríveis frutos. Mas logo, como a Ressurreição e a Vida, como Aquele que segura em Suas mãos as chaves do inferno e da morte (Ap 1:18) clama: "Lázaro, sai para fora"; e à voz de poder de Jesus a morte e a sepultura abrem as suas portas e deixam sair o seu cativo.
O espírito do leitor poderá facilmente recordar outras cenas dos evangelhos que ilustram esta união dos fios de ouro com o "azul, a púrpura, o carmesim e o linho fino torcido"; quer dizer, da união da deidade com a humanidade, na Pessoa misteriosa do Filho de Deus. Não há nada de novo neste pensamento, frequentemente assinalado por aqueles que têm estudado com algum cuidado as Escrituras do Velho Testamento.
Porém, é sempre proveitoso pensar no bendito Senhor Jesus como Aquele que é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. O Espírito Santo uniu estas duas naturezas por meio de uma obra delicada e apresenta-as ao espírito regenerado do crente para serem admiradas e desfrutadas por ele.
Consideremos, agora, antes de terminarmos esta parte do Livro do Êxodo, o capítulo 29.

— CAPÍTULO 29 —

A CONSAGRAÇÃO
DO SARCEDOTE

A Lavagem com Água
Já frisámos que Arão e seus filhos representam Cristo e a Igrej a, porém nos primeiros versículos deste capítulo é dado o primeiro lugar a Arão. "Então, farás chegar Arão e seus filhos à porta da tenda da congregação e os lavarás com água" (versículo 4). A lavagem da água tornava Arão simbolicamente aquilo que Cristo é intrinseca¬mente, isto é: santo. A Igreja é santa em virtude de estar ligada a Cristo na vida de ressurreição. Ele é a definição perfeita daquilo que ela é perante Deus. O ato cerimonial da lavagem da água representa a ação da palavra de Deus (veja-se Ef 5:26).
"E por eles me santifico a mim mesmo, para que também eles sejam santificados na verdade" (Jo 17:19), disse o Senhor Jesus. Separou-Se para Deus no poder de uma perfeita obediência, orien-tando-Se em todas as coisas, como homem, pela Palavra, mediante o Espírito eterno, a fim de que todos aqueles que são d'Ele pudessem ser inteiramente separados pelo poder moral da verdade.

A Unção
"E tomarás o azeite da unção e o derramarás sobre a sua cabeça " (versículo 7). Nestas palavras temos o Espírito, mas é preciso notar que Arão foi ungido antes de o sangue ser derramado, porque nos é apresentado como figura de Cristo, que, em virtude daquilo que era em Sua Própria Pessoa, foi ungido com o Espírito Santo muito antes que fosse cumprida a obra da cruz. Em contrapartida, os filhos de Arão não foram ungidos senão depois de ser espargido o sangue, "degolarás o carneiro, e tomarás do seu sangue, e o porás sobre a ponta da orelha direita deArão,e sobre a ponta da orelha direita de seus filhos, como também sobre o dedo polegar da sua mão direita, e sobre o dedo polegar do seu pé direito: e o resto do sangue espalharás sobre o altar ao redor" (¹). "Então, tomarás do sangue que estará sobre os altar e do azeite da unção e o espargirás sobre Arão e sobre as suas vestes e sobre seus filhos, e sobre os as vestes de seus filhos com ele" (versículos 20 e 21). No que diz respeito à Igreja, o sangue da cruz é o fundamento de tudo. Ela não podia ser ungida com o Espírito Santo até que a sua Cabeça ressuscitada tivesse subido ao céu e depositado sobre o trono da Maj estade divina o relato do sacrifício que havia oferecido. "Deus ressuscitou a este Jesus, do que todos nós somos testemunhas. De sorte que, exaltado pela destra de Deus, e tendo recebido do Pai e promessa do Espírito Santo, derramou isto que vós agora vedes e ouvis" (At 2:32-33); compa-rem-se também Jo 7:39; At 19:1 - 6). Desde os dias de Abel que haviam sido regeneradas almas pelo Espírito Santo e experimenta¬do a Sua influência, sobre as quais operou e a quem qualificou para o serviço; porém a Igreja não podia ser ungida com o Espírito Santo até que o Seu Senhor tivesse entrado vitorioso no céu e recebesse para ela a promessa do Pai. A verdade desta doutrina é ensinada, da forma mais direta e completa, em todo o Novo Testamento; e a sua integridade estreita é mantida, em figura, no símbolo que temos perante nós, pelo fato claro que, embora Arão fosse ungido antes de o sangue haver sido derramado (versículo 7), contudo os seus filhos não o foram, e não podiam ser ungidos senão depois (versículo 21).
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(¹) O ouvido, as mãos e os pés são consagrados a Deus no poder da expiação efetuada e mediante a energia do Espírito Santo.

A Preeminência de Cristo
Porém, aprendemos alguma coisa mais com a ordem da unção neste capítulo, além da verdade importante acerca da obra do Espírito, e a posição que a Igreja ocupa. A preeminência do Filho é-nos também apresentada. "Amaste a justiça e aborreceste a inquidade; por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de alegria, mais do que a teus companheiros" (SI 45:7; Hb 1:9). É preciso que o povo de Deus mantenha sempre esta verdade nas suas convicções e experiências. Por certo, a graça infinita de Deus é manifestada no fato maravilhoso que pecadores culpados e dignos do inferno sejam chamados companheiros do Filho de Deus; mas nunca devemos esquecer, nem por um momento, o vocábulo "mais". Por mais íntima que seja a união—e é tão íntima quanto os desígnios eternos do amor divino a podiam fazer—, é, contudo, necessário que Cristo tenha em tudo a preeminência" (Cl 1:18). Não podia ser de outra maneira. Ele é Cabeça sobre todas as coisas — Cabeça da Igreja, Cabeça sobre a criação, Cabeça sobre os anjos, o Senhor do universo. Não existe um só astro de todos os que se movem no espaço que não Lhe pertença e não se mova sob a Sua orientação. Não existe um verme sequer que se arrasta sobre a terra, que não esteja sob os Seus olhos incansáveis. Ele está acima de todas as coisas; é toda a criatura "o primogénito de entre os mortos" "o princípio da criação de Deus" (Cl l:15-18;Ap 1:5). "Toda a família nos céus ena terra" (Ef 3:15) deve alinhar, na classe divina, sob Cristo. Tudo isto será reconhe¬cido com gratidão por todo o crente espiritual; sim, a sua própria articulação produz um estremecimento no coração do crente. Todos os que são guiados pelo Espírito regozijar-se-ão com cada nova manifestação das glórias pessoais do Filho; da mesma maneira que não poderão tolerar qualquer coisa que se levante contra elas. Que a Igreja se eleve às mais altas regiões e glória, será seu gozo ajoelhar aos pés d'Aquele que se baixou para a elevar, em virtude do Seu sacrifício, à união Consigo; o qual havendo plenamente correspondido a todas as exigências da justiça divina, pode satisfa¬zer todos os afetos divinos, unindo-a em um Consigo Mesmo, em toda a aceitação infinita com o Pai, na Sua glória eterna: "Não se envergonha de lhes chamar irmãos" (Hb 2:11).
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Nota: Evitei propositadamente tocar no assunto das ofertas em capítulo 29 visto que teremos ocasião de considerar as diferentes classes de sacrifícios, por sua ordem, nos nossos estudos sobre o Livro de Levítico, se o Senhor permitir.

— CAPÍTULO 30 —

O CULTO, A COMUNHÃO
E A ADORAÇÃO

O Altar de Cobre e o Altar de Ouro
Instituído o sacerdócio, como vimos nos dois capítulos prece¬dentes, somos introduzidos aqui na posição do verdadeiro culto e comunhão sacerdotal. A ordem é notável e instrutiva; e, além disso, corresponde exatamente com a ordem da experiência do crente. No altar de bronze, o crente vê as cinzas dos seus pecados; e vê-se imediatamente unido com Aquele que, embora pessoalmente puro e incontaminado, de forma que podia ser ungido sem sangue, tem-nos, contudo, associado Consigo na vida, em justiça e favor; e, por fim, o crente vê no altar de ouro a preciosidade de Cristo, como sendo a substância com a qual é alimentado o amor divino.
É sempre assim: é necessário que haja um altar de cobre e um sacerdote antes que possa haver um altar de ouro e incenso. Mui¬tíssimos filhos de Deus nunca passaram do altar de cobre; nunca entraram, em espírito, no poder e realidade do verdadeiro culto sacerdotal. Não se regozijam no pleno e perfeito sentimento divino de perdão e justiça; nunca conseguiram chegar ao altar de ouro. Esperam alcançá-lo quando morrerem; ao passo que já têm o privilégio de estar ali agora. A obra da cruz tirou do caminho tudo que podia representar um obstáculo a um culto livre e inteligente. A posição atual de todos os crentes verdadeiros é junto do altar de ouro do incenso.
Este altar é figura de uma posição de maravilhosa bem-aventurança. Ê ali que desfrutamos a realidade e eficácia da intercessão de Cristo. Havendo acabado com o ego e tudo quanto lhe diz respeito, ainda que esperássemos algumbem dele, temos de estar ocupados com aquilo que Cristo é perante Deus. Nada encontraremos no ego senão corrupção; todas as suas manifestações são corrompidas; já foi condenado e posto de parte pelo juízo de Deus, e nem só um fio ou partícula dele se pode encontrar no incenso ou no fogo do altar de ouro puro. Isso seria impossível. Fomos introduzidos no santuário "pelo sangue de Jesus", santuário de serviço e culto sacerdotal, no qual não existe nem sequer um vestígio de pecado. Vemos a mesa pura, o castiçal puro e o altar puro; mas não existe nada que nos recorde o ego e a sua miséria. Se fosse possível que alguma coisa do ego se apresentasse à nossa vista, isso só serviria para destruir o nos so culto, contaminar o nosso alimento sacerdotal e ofuscara nossa luz. A natureza não pode ter lugar no santuário de Deus: foi consumida e reduzida a cinzas com tudo quanto lhe pertence; e agora as nossas almas são chamadas para gozar o bom cheiro de Cristo, subindo como perfume agradável a Deus: é nisto que Deus Se deleita. Tudo o que apresenta Cristo na Sua própria excelência é agradável a Deus. Até a mais débil expressão ou manifestação de Cristo, na vida ou adoração de um dos Seus santos, é cheiro agradável, no qual Deus acha o Seu prazer.
Enfim, temos muitíssimas vezes de estar ocupados com as nossas faltas e fraquezas. Se os efeitos do pecado, que habita em nós, se manifestam, temos de tratar com Deus acerca deles, pois o Senhor não pode concordar com o pecado. Pode perdoar o pecado e purif icar-nos; pode restaurar as nossas almas pelo ministério precioso do nosso grande Sumo Sacerdote; porém não pode associar-se a um simples pensa¬mento pecaminoso. Um pensamento ligeiro ou louco bem como uma ideia impura ou cobiçosa, são o bastante para perturbar a comunhão do crente e interromper o seu culto. Se um tal pensa¬mento se levanta, deve ser confessado e julgado antes de podermos desfrutar outra vez os gozos sublimes do santuário. Um coração em que opera a concupiscência não tem parte nas ocupações do santuário. Quando nos encontramos na nossa própria condição sacerdotal, a natureza é como se não tivesse existência; é então que nos podemos alimentar de Cristo. Podemos provar o prazer divino de estarmos inteiramente livres de nós próprios e completamente absorvidos por Cristo.
Mas tudo isto só pode ser produzido pelo poder do Espírito. É inútil procurar excitar os sentimentos naturais de devoção pelos diferentes instrumentos da religião sistemática. É necessário que haja fogo puro e incenso puro (comparem-se Lv 10:1 com 16:12). Todos os esforços para adorar a Deus por meio das faculdades profanas da natureza estão incluídos na caregoria de "fogo estra¬nho". Deus é o verdadeiro objeto de adoração; Cristo é o f undamen-to e a substância de adoração; e o Espírito Santo é o seu poder.
Propriamente falando, portanto, assim o altar de cobre nos apre¬senta Cristo no valor do Seu sacrifício, o altar de ouro mostra-nos Cristo no valor da Sua intercessão. Este fato dará ao leitor uma melhor compreensão do motivo por que a ocuapação sacerdotal é introduzida entre os dois altares. Existe, como podia esperar-se, uma relação íntima entre os dois altares, pois que a intercessão de Cristo está fundada sobre o Seu sacrifício.
"E uma vez no ano Arão fará expiação sobre as pontas do altar, com o sangue do sacrifício das expiações; uma vez no ano fará expiação sobre ele, pelas vossas gerações; santíssimo é ao SENHOR" (versículo 10). Tudo repousa sobre o fundamento inabalável do SANGUE ESPARGIDO. "Quase todas as coisas, segundo a lei, se purificam com sangue; e sem derramamento de sangue não há remissão. De sorte que era bem necessário que as figuras das coisas que estão no céu assim se purificassem; mas, as próprias coisas celestiais, com sacrifícios melhores do que estes. Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém, no mesmo céu, para agora comparecer, por nós, perante a face de Deus" (Hb 9:22-24).

O Meio Siclo de Resgate
Os versículos 11 a 16, inclusive, tratam do dinheiro das expiações para a congregação. Todos tinham de pagar da mesma maneira. "O rico não aumentará, e o pobre não diminuirá da metade do siclo, quando derem a oferta ao SENHOR, para fazer expiação por vossas almas". Na questão doresgate todos são postos ao mesmo nível. Pode haver uma grande diferença em conhecimento, de experiência, de aptidão, de progresso, de zelo e de dedicação, porém o fundamento de expiação é igual para todos. O grande apóstolo dos gentios e o mais débil cordeiro do rebanho de Cristo estão no mesmo nível no que se refere à expiação. É uma verdade muito simples e feliz ao mesmo tempo. Nem todos podem ser igualmente fervorosos e abundar em frutos; porém o fundamento sólido e eterno do repouso do crente é "o precioso sangue de Cristo" (1 Pe 1:19), e não a dedicação ou abundância de frutos. Quanto mais compenetrados estivermos da verdade e poder destas coisas tanto mais frutos daremos.
Bendito seja Deus, sabemos que todos os Seus direitos foram cumpridos e os nossos votos satisfeitos por Aquele que era ao mesmo tempo o representante dos Seus direitos e o Expoente da Sua graça, o mesmo que consumou a obra de expiação sobre a cruz e está agora à destra de Deus. Nisto existe doce descanso para o coração e a consciência. Aexpiação é a primeira coisa que alcançamos, e nunca mais a perdemos de vista. Por muito extenso que se j a o curso da nossa inteligência, por muito rica que seja a nossa experiência, por muito elevado que seja o dom da nossa piedade, teremos sempre de nos retirar para a doutrina simples, divina, inalterável e fortalecedora doutrina do O SANGUE. Assim tem sido sempre na história do povo de Deus o assim é e assim será em todos os tempos. Os mais dotados e instruídos servos de Cristo têm regressado sempre com regozijo a "esta única fonte de delícias", na qual os seus espíritos sequiosos beberam quando conheceram o Senhor; e o cântico eterno da Igreja, na glória, será: "Aquele que nos ama e em seu sangue nos lavou dos nossos pecados" (Apl:5). As cortes do céu ressoarão para sempre com a doutrina gloriosa do sangue.

A Pia de Cobre
Nos versículos 17 a 21 temos a "pia de cobre com a sua base" — o vaso da purificação e a sua base. Estas duas coisas são sempre mencionadas conjuntamente (veja-se capítulos 30:28; 38:8; 40:11). Era nesta pia que os sacerdotes lavavam as mãos e os pés, e desta forma mantinham aquela pureza que era essencial ao cumprimen¬to das suas funções sacerdotais. Não significava, de modo nenhum, uma nova questão do sangue; mas simplesmente um ato mediante o qual se mantinham em aptidão para o serviço sacerdotal e o culto.
"E Arão e seus filhos nela lavarão as suas mãos e os seus pés. Quando entrarem na tenda da congregação, lavar-se-ão com água, para que não morram, ou quando se chegarem ao altar para minis¬trar, para acender a oferta queimada ao SENHOR" (versículo 20). Não pode haver verdadeira comunhão com Deus se a santidade pessoal não for diligentemente mantida. "Se dissermos que temos comu¬nhão com ele e andarmos em trevas, mentimos e não praticamos a verdade" (1 Jo 1:6). Esta santidade pessoal só pode proceder da ação da Palavra de Deus nas nossas obras e nos nossos caminhos:"... pela palavra dos teus lábios me guardei das veredas do destruidor" (Sl 17:4). O nosso enfraquecimento constante no ministério sacerdo¬tal pode ser causa de negligenciarmos o uso conveniente da pia de cobre. Se os nossos caminhos não são submetidos à noção purifica¬dora da Palavra de Deus — se continuarmos em busca ou na prática de alguma coisa que, segundo o testemunho da nossa própria consciência, é claramente condenada pela Palavra de Deus, o nosso caráter sacerdotal carecerá certamente de poder. A perseverança deliberada no mal e o verdadeiro culto sacerdotal são de todo incompatíveis. "Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade" (Jo 17:17). Se houver em nós impureza, não podemos gozar a presença de Deus. O efeito da Sua presença será então convencer-nos do mal pela luz santa da Sua Palavra. Porém, quando, mediante a graça, sabemos purificar os nossos caminhos, acautelando-nos segundo a Palavra de Deus, então estamos moralmente em estado de gozar a Sua presença.
O leitor perceberá imediatamente que se abre aqui um vasto campo de verdade prática e como a doutrina da pia de cobre é largamente apresentada no Novo Testamento. Oh! que todos aqueles que têm o privilégio de pôr os pés nos átrios do santuário com vestidos sacerdotais e de se aproximarem do altar de Deus, par exercer o sacerdócio, mantenham as mãos e os pés limpos pelo uso da verdadeira pia de cobre!
Talvez seja interessante notar que a pia de cobre com a Sua base era feita "dos espelhos das mulheres que se ajuntaram, ajuntando-se à porta da tenda da congregação" (capítulo 38:8). Este fato é cheio de significado. Estamos sempre prontos a ser como o homem que "contempla ao espelho o seu rosto natural; porque se contempla a si mesmo, e foi-se, e logo se esqueceu de como era" (Tg 1:28). O espelho da natureza nunca poderá dar-nos uma vista clara e perma¬nente da nossa verdadeira condição. "Aquele, porém, que atenta bem para a lei perfeita da liberdade e nisso persevera, não sendo ouvinte esquecido, mas fazedor da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito" (Tg 1:25). Aquele que recorre continuamente à Palavra de Deus e a deixa falar ao seu coração e à sua consciência será mantido na atividade santa da vida divina.

Um Grande Sumo Sacerdote
A eficácia do ministério sacerdotal de Cristo está intimamente ligada com a ação penetrante e purificadora da Palavra de Deus. "Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até a divisão da alma, e do espírito, e das juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamen¬tos e intenções do coração. E não há criatura alguma encoberta diante dele; antes, todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele com quem temos de tratar." E o apóstolo inspirado acres¬centa imediatamente; "Visto que temos um grande sumo sacerdo¬te, Jesus, Filho de Deus, que penetrou nos céus, retenhamos firme¬mente a nossa confissão. Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado. Cheguemos, pois, com confiança, ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno" (Hb 4:12-16).
Quanto mais vivamente sentirmos o fio da palavra de Deus, tanto mais apreciaremos o ministério misericordioso e gracioso do nosso Sumo Sacerdote. Estasduas coisas andam juntas. São os companheiros inseparáveis da senda do cristão. O Sumo Sacerdote simpatiza com as fraquezas que a Palavra de Deus descobre e expõe: Ele é um Sumo
Sacerdote "fiel" e "misericordioso". Por isso, só nos podemos aproxi¬mar do altar na medida em que fazemos uso da pia de cobre. O culto deve ser sempre oferecido no poder da santidade. E necessário perder¬mos de vista a natureza, tal qual é refletida num espelho, e estarmos ocupados inteiramente com Cristo, conforme no-Lo apresenta a Palavra de Deus. É só desta forma que "as mãos e os pés", as obras e os nossos caminhos são purificados, segundo a purificação do santuário.

A Santa Unção
Os versículos 22 e 23 tratam "do azeite da santa unção", com a qual eram ungidos os sacerdotes com todos os utensílios do santuário.
Nesta unção discernimos uma figura das várias graças do Espírito Santo, as quais se acharam em Cristo em toda a sua plenitude divina. "Todos os teus vestidos cheiram a mira, a aloés e a cássia, desde os palácios de marfim de onde te alegram" (SI 45:8). "Como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com virtude" (At 10:38). Todas as graças do Espírito Santo, em sua perfeita fragrância, se concentraram em Cristo; e é somente d'Ele que podem emanar. Quanto à Sua humanidade, foi concebido do Espírito Santo; e, antes de entrar no Seu ministério público, foi ungido com o Espírito Santo; e, finalmente, havendo tomado o Seu lugar nas alturas, derramou sobre o Seu corpo, a Igreja, os dons preciosos do Espírito, em testemu¬nho da redenção efetuada (veja-se Mt 1.20; 3:16-17; Lc 4:18-19; At 2:33; 10:45-46; Ef 4:8-13).
É como aqueles que estão associados com este bendito e eterna¬mente glorificado Senhor que os crentes são feitos participantes dos dons e graças do Espírito Santo; e, além disso, é na medida em que andam em intimidade com Ele que gozam ou emitem a Sua fragrância.
O homem não regenerado não conhece estas coisas. "Não se ungirá com ele a carne do homem" (versículo 32). As graças do Espírito nunca poderão ser ligadas com a carne, porque o Espírito Santo não pode reconhecer a natureza. Nem um só dos frutos do Espírito foi jamais produzido no solo estéril da natureza. E neces¬sário nascer de novo (Jo 3:7). E só como unidos com o novo homem, como sendo parte da nova criação, que podemos conhecer alguma coisa dos frutos do Espírito Santo.
É inútil procurar imitar esses frutos e virtudes. Os mais belos frutos que jamais cresceram no campo da natureza, no seu mais alto grau de cultivo — os traços mais amáveis que a natureza pode apresentar— devem ser inteiramente rejeitados no santuário de Deus. "Não se ungirá com ele a carne do homem, nem fareis outro semelhante conforme a sua composição: santo é,e será santo para vós. O homem que compuser tal perfume como este, ou que dele puser sobre um estranho, será extirpado dos seus povos". Não deve haver imitação da obra do Espírito: tudo tem que ser do Espírito: inteiramente e realmente do Espírito. Demais, aquilo que é do Espírito não deve ser atribuído ao homem:"... o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritu¬almente" (1 Co 2:14).
Num dos cânticos dos degraus há uma alusão magnífica a este azeite da unção. "Oh! quão bom e quão suave é", diz o salmista, "que os irmãos vivam em união! É como o óleo precioso sobre a cabeça, que desce sobre a barba, a barba de Arão, e que desce à orla das suas vestes" (Sl 133:1- 2). Os próprios vestidos do chefe da casa sacerdo¬tal, depois de ele haver sido ungido com o azeite da santa unção, devem mostrar os seus preciosos efeitos. Que oleitor possa experi¬mentar o poder desta unção, e conhecer o que é ter "a unção do Santo" e ser selado com o Espírito Santo da promessa! (lJo2:20;Ef 1:13). Nada tem valor, segundo a apreciação de Deus, salvo aquilo que está ligado com Cristo, e tudo aquilo que estiver assim ligado com Ele pode receber a santa unção.

O Perfume bemTemperado, Puro e Santo
No último parágrafo deste capítulo, tão rico em ensinos, temos o "perfume temperado, santo e puro". Este perfume precioso apre-senta-hos as perfeições incomensuráveis e ilimitadas de Cristo. Não é prescrita a quantidade de cada ingrediente, porque as virtudes de Cristo, as belezas e perfeições que se acham concentradas na Sua adorável Pessoa, são ilimitadas. Só a mente infinita de Deus pode medir as perfeições infindas d'Aquele em quem habita a plenitude da Divindade; e durante o curso de toda a eternidade essas gloriosas perfeições continuarão a desenrolar-se à vista dos santos e anjos prostrados em adoração. De vez em quando, à medida que novos raios de luz emanam desse Sol de glória divina, os átrios do céu, nas alturas, e os vastos campos da criaçãoabaixo dos céus, ressoarão com vibrantes Aleluias Aquele que era, e que é e que sempre será o objeto de louvor de todas as classes de entes criados com inteligência.
Porém não só não era prescrita a quantidade dos ingredientes que entravam na composição do incenso, como é dito que de cada um será igual o peso. Cada aspecto de beleza moral achou em Jesus o seu lugar e a sua justa proporção. Nenhuma quantidade se interpunha ou se chocava com a outra; tudo era "temperado, puro e santo" e exalava um odor tão fragrante que ninguém senão Deus podia apreciá-lo.
"E dele, moendo, o pisarás, e dele porás diante doTestemunho, na tenda da congregação, onde eu virei a ti; coisa santíssima vos será". Existe um significado profundo e extraordinário na expressão "o pisarás". Ensina-nos que cada simples movimento na vida de Cristo, cada uma das mais pequenas circunstâncias, cada ação, cada palavra, cada olhar, cada gesto, cada rasgo, cada feição do Seu rosto, esparge um odor produzido por proporção igual—o peso de todas as virtudes que compunham o Seu caráter era igual. Quanto mais pisado era o perfume, tanto mais se manifestava a sua rara e esquisita composição.
"...O incenso que farás conforme a composição deste, não o fareis para vós mesmos; santo será para o SENHOR. O homem que fizer tal como este para cheirar será extirpado do seu povo". Este perfume fragrante estava destinado exclusivamente para o Senhor. O seu lugar estava "diante do testemunho". Existe em Jesus alguma coisa que só Deus pode apreciar. De certo, todo o coração crente pode aproximar-se da Sua incomparável Pessoa e achar inteira satisfação para os seus mais ardentes e profundos desejos; contudo, depois de todos os remidos terem esgotado a medida da sua compreensão, depois de os anjos terem contemplado em êxtase as glórias imaculadas do homem Cristo Jesus, tão ardentemente quanto a sua visão lhes permite, existe n'Ele qualquer coisa que só Deus pode profundar e apreciar. Nenhuma visão humana ou angélica poderia jamais discernir devidamente cada partícula desse perfume primo¬rosamente " pisados". A terra tampouco podia oferecer uma esfera própria à manifestação do seu divino e celestial poder.

Resumo
Assim, pois, chegámos, no nosso rápido estudo, ao fim de uma parte distinta do livro do Êxodo. Começamos pela "arca do concer¬to" até que chegámos ao "altar do cobre"; retrocedemos do altar de cobre e chegámos à "santa unção"; e oh! que divagação esta, se tãb somente for feita à luz infalível do Espírito Santo, em vez da companhia vacilante da luz da imaginação humana!
Que divagação, contanto que seja feita não por entre as sombras de uma dispensação que acabou, mas no meio das glórias e das poderosas atrações do Filho de Deus, representadas por estas coisas! Se o leitor ainda não fez esta divagação, verá mais do que nunca o seu afeto atraído para Cristo se a fizer; terá uma maior concepção da Sua glória, da Sua beleza, da Sua excelência e do Seu poder para sanar a consciência e satisfazer o coração sedento; os seus olhos estarão fechados para as atrações do mundo e os ouvidos não prestarão atenção às pretensões e promessas da terra. Em suma, estará pronto a pronunciar o amém fervoroso às palavras do após¬tolo (1 Co 16:22), quando disse: "SE ALGUÉM NÃO AMA AO SENHOR JESUS CRISTO SEJA ANÁTEMA; MARANATA" (¹).
__________________
(¹) É interessante notar o lugar que ocupa este anátema aterrador. Acha-se no final de uma longa epístola, no decorrer da qual o apóstolo teve de reprimir alguns pecados dos mais grosseiros e vários erros de doutrina. Quão solene e significativo é, portanto, o fato de que quando anuncia o seu anátema não o lança contra aqueles que haviam introduzido esses erros e pecados, mas sim contra todo aquele que não ama ao Senhor Jesus Cristo. Por que é isto assim' É acaso porque o Espírito de Deus faz pouco caso dos erros ou pecados' Seguramente que não; toda a epístola nos revela os Seus pensamentos quanto a estes males. A verdade é que quando o coração está cheio de amor para com o Senhor Jesus Cristo, existe uma salvaguarda positiva contra toda a espécie de falsa doutrina e má conduta. Se alguém não ama a Cristo não se pode calcular quais as ideias que possa adoptar ou o caminho que possa seguir. Logo, a forma do anátema e o lugar que ocupa na epístola.

— CAPÍTULO 31 —

O SERVIÇO

Bezalel e Aoliabe
Os primeiros versículos deste breve capítulo recordam a chama¬da divina e os qualificativos de "Bezalel" e"Aoliabe" para fazerem o trabalho da congregação. "Depois, falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Eis que eu tenho chamado por nome a Bezalel, o filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá. E o enchi do Espírito de Deus, de sabedoria, e de entendimento, e de ciência em todo o artifício... e eis que eu tenho posto com ele a Aoliabe, o filho de Aisamaque, da tribo de Dã, e tenho dado sabedoria ao coração de todo aquele que é sábio de coração, para que façam tudo que eu tenho ordenado". Quer seja para a obra do tabernáculo, na antiguidade, ou para "a obra do ministério", agora, é necessário que aqueles que são empregados nela sejam divinamente escolhidos, divinamente chamados, divi¬namente qualificados e divinamente nomeados; e tudo deve ser feito segundo o mandamento de Deus. Não estava dentro das atribuições do homem selecionar, chamar, qualificar ou nomear os obreiros para a obra do tabernáculo; nem tampouco o pode fazer para a obra do ministério. Demais, ninguém podia presumir de se nomear a si próprio para a obra do tabernáculo; nem tampouco ninguém pode agora nomear-se a si próprio para a obra do ministé¬rio. Era tudo, é e deve ser absolutamente da competência divina. Pode haver quem corra por seu próprio impulso ou quem seja enviado por colegas; mas não se esqueça que todos aqueles que correm sem serem enviados por Deus serão mais cedo ou mais tarde cobertos de vergonha e confusão. Tal é a sã doutrina que nos é sugerida pelas palavras "eu tenho chamado", "eu tenho posto", "eu tenho dado", "eu tenho ordenado". As palavras de João Batista, "o homem não pode receber coisa alguma senão lhe for dada do céu", serão sempre verdadeiras. O homem tem, pois, muito pouco em que se vangloriar, menos ainda de que invejar ao seu próximo.
Existe uma lição útil a tirar da comparação deste capítulo com o capítulo 4 de Génesis: "Tubalcaim, mestre de toda a obra de cobre e de ferro" (versículo 22). Os descendentes de Caim eram dotados de talento profano para fazer de uma terra maldita e cheia de gemidos um lugar agradável sem a presença de Deus. "Bezalel" e "Aoliabe" pelo contrário foram dotados com perícia divina para embelezar um santuário que devia ser santificado e abençoado pela presença divina e a glória do Deus de Israel.
Gostaria de pedir ao leitor que f izesse à sua própria consciência a seguinte pergunta: Consagro eu o que quer que possuo de perícia ou energia aos interesses da Igreja, que é o lugar de habitação de Deus, ou ao embelezamento de um mundo ímpio e sem Cristo1? Não diga em seu coração "não sou divinamente chamado ou dotado para a obra do ministério". Note-se que embora todos os israelitas não fossem Bezaleles ou Aoliabes todos podiam servir os interesses do santuário. Existia uma porta aberta para todos poderem comu¬nicar. E assim é agora. Cada um tem um lugar para ocupar, um ministério a cumprir, uma responsabilidade a desempenhar; e tanto o leitor como eu estamos, neste próprio momento, promo¬vendo os interesses da Casa de Deus — O Corpo de Cristo, a Igreja — ou cooperando nos planos ímpios de um mundo que ainda está manchado com o sangue de Cristo e o sangue de todos os santos mártires. Oh! ponderemos profundamente estas coisas, na presen¬ça d'Aquele que esquadrinha os corações, a Quem ninguém pode enganar e de Quem todos são conhecidos.

O Sábado é o Dia do Senhor
Este capítulo termina com uma alusão à instituição do sábado. Em capítulo 16 fez-se referência ao sábado em relação com o maná; foi expressamente ordenado em capítulo 20, quando o povo foi formalmente posto sob a lei; e aqui encontramo-lo outra vez em relação com o estabelecimento do tabernáculo. Sempre que a nação de Israel é apresentada em qualquer posição especial ou reconhecida como povo colocado sob uma responsabilidade especial, então o sábado é introduzido. Consideremos atentamente o dia e o modo em que o sábado devia ser observado, assim como o fim com que foi instituído em Israel. "Portanto, guardareis o sábado, porque santo é para vós; aquele que o profanar certamente morrerá; porque qual¬quer que nele fizer alguma obra, aquela alma será extirpada do meio do seu povo. Seis dias se fará obra, porém o sétimo dia é o sábado do descanso, santo ao SENHOR; qualquer que no dia do sábado fizer obra, certamente morrerá". Isto é claro e categórico, quanto o pode ser qualquer coisa, e estabelece "o sétimo dia" e nenhum outro; proíbe positivamente, sob pena de morte, toda a espécie de trabalho neste dia. É impossível iludir o sentido claro destas palavras. E recorde-se que não existe sequer uma linha da Escritura Sagrada que prove que o sábado foi alterado ou que os princípios estritos da sua guarda hajam sido, no mínimo, moderados. Se existe alguma prova nas Escrituras em contrário, será bom que o leitor se certifique que ela existe de fato.
Mas, vejamos agora se os cristãos professos guardam de fato o sábado no dia e segundo a maneira que Deus ordenou. Seria perder tempo em provar que não o fazem. Bom, quais são as consequências de uma simples quebra do sábado? "Aquele que o fizer certamente morrerá; será extirpado".
Mas, dir-se-á, não estamos debaixo da lei, mas, sim, debaixo da graça. Bendito seja Deus por essa doce segurança! Estivéssemos nós debaixo da lei e não haveria ninguém em toda a Cristandade que não tivesse caído, desde longo tempo, sob o juízo, até mesmo só por causa da quebra do sábado. Porém, se estamos debaixo da graça, qual é o dia que nos pertencei E seguramente o primeiro dia da semana, "o dia do Senhor". Este dia é o dia da Igreja, o dia da ressurreição de Jesus, que, havendo passado o sábado na sepultura, ressuscitou vitorioso sobre todos os poderes das trevas, conduzindo assim o Seu povo da antiga criação e de tudo quanto lhe pertence para a nova geração, da qual Ele é a Cabeça, e da qual o primeiro dia da semana é a justa expressão.
Esta distinção merece ser examinada com oração à luz das Escrituras. Um simples nome pode ter um grande significado e pode também não significar nada. No caso que estamos tratando existe muito mais significado entre "o sábado" e "dia do Senhor" que muitos cristãos parece compreederem. É evidente que o primeiro dia da semana tem um lugar na Palavra de Deus que não é dado a nenhum outro dia. Nenhum outro dia é designado por este majes¬toso título, "o dia do Senhor". Bem sei que há pessoas que negam que em Apocalipse 1:10 se faz alusão ao primeiro dia da semana; porém, por minha parte estou completamente convencido de que a critica sã e sã exagesis garantem, e, ainda mais, exigem a aplicação dessa passagem não ao dia do advento de Cristo em glória, mas ao dia da Sua ressurreição de entre os mortos.
Mas, certamente, o dia do Senhor nunca é chamado o sábado. Muito longe disso, f ala-se destes dois dias, repetidas vezes, na sua própria clareza. Por isso, o leitor deve evitar os dois extremos. Em primeiro lugar deverá evitar o legalismo, que com tanta frequência se acha associado com o termo "sábado"; e, em segundolugar, deverá testificar contra toda a tentativa que tenha por fim desonrar o dia do Senhor ou rebaixá-lo ao nível de um dia ordinário. O crente está livre da maneira mais completa da observância de "dias e meses, e tempos e anos" (Gl 4:10). A sua união com Cristo ressuscitado libertou-o completamente de todas estas superstições e observâncias. Mas, por muito verdadeiro que seja tudo isto, "o primeiro dia da semana" ocupa um lugar especial no Novo Testamento. Que o cristão lhe dê esse lugar! É um doce e feliz pivilégio e não um jugo penoso.
O espaço não me permite entrar em mais pormenores sobre este assunto tão interessante. Aliás, já foi tratado nas páginas preceden¬tes deste volume. Quero terminar os meus comentários frisando um ou dois pontos particulares acerca do contraste entre "o sábado" e o "dia do Senhor".
1) O sábado era "o sétimo dia": o dia do Senhor éo primeiro.
2) O sábado era uma experiência da condição de Israel; o dia do Senhor é aprova da aceitação da Igreja inteiramente numa base incondicional.
3) O sábado pertencia à antiga criação; o dia do Senhor pertence à nova criação.
4) O sábado era um dia de repouso corporal para o judeu; o dia do Senhor é um dia de repouso espiritual para o cristão.
5) Se um judeu trabalhasse no sábado devia ser condenado à morte jseocristão não trabalhar no dia do Senhor dá uma fraca prova de vida. Quer dizer, se não trabalhar em proveito das almas, para a extensão da glória de Cristo e a disseminação da verdade. De fato, o cristão consagrado, que possui algum dom, encontra-se geral¬mente mais fatigado ao fim do dia do Senhor do que em qualquer outro dia da semana; pois como poderá ele descansar enquanto as almas perecem ao seu redor?
6) O judeu devia ficar, segundo a lei, na sua tenda no dia de sábado; o cristão é levado pelo espírito do evangelho a sair para assistir à assembleia pública ou para anunciar o evangelho aos pecadores perdidos.
Que o Senhor nos conceda podermos descansar com mais naturalidade no nome do Senhor Jesus Cristo e trabalhar mais vigorosamente por Ele! Deveríamos confiar com o Espírito de uma criança e trabalhar com a energia de um homem

— CAPÍTULO 32 —

APOSTASIA

Vamos agora contemplar alguma coisa diferente daquilo que tem até aqui ocupado a nossa atenção. "As figuras das coisas que estão no céu" (Heb. 9:23) passaram perante os nossos olhos — Cristo em Sua gloriosa Pessoa, em Seus deveres de misericórdia e em Sua obra perfeita, tal como são representados no tabernáculo e nos seus utensílios místicos. Havemos estado em espírito no monte e ouvido as próprias palavras de Deus, as doces declarações dos pensamentos celestiais, afeição e propósitos, dos quais Jesus é "o Alfa e o Omega, o princípio e o fim, o primeiro e o último".

"Faze-nos Deuses"
Mas agora somos convidados a descer outra vez à terra para contemplar a ruína que o homem faz de tudo em que põe a sua mão.
"Mas, vendo o povo que Moisés tardava em descer do monte, ajuntou-se o povo a Arão, e disseram-lhe: Levanta-te, faze-nos deuses que vão adiante de nós; porque enquanto a este Moisés, a este homem que nos tirou da terra do Egito, não sabemos o que lhe sucedeu" (versículo 1). Que degradação se manifesta aqui! Faze-nos deuses! Abandonavam Jeová para se porem debaixo da tutela de deuses feitos por mãos de homens. Nuvens escuras e névoas espessas cobriam o monte; eles estavam fartos de esperar por aquele que se havia ausentado e de se apoiarem num braço invisível, embora real. Imaginaram que um deus feito com "um buril" valia mais que o Senhor; preferiam um bezerro que podiam ver em vez do Deus invisível mas presente em toda a parte — uma falsificação visível à realidade invisível!
Desgraçadamente, sempre, assim tem sucedido na história do homem. O coração humano deseja alguma coisa que se possa ver— aquilo que responda e satisfaça os sentidos. Só a fé pode ficar firme "como vendo o invisível" (Hb 11:27). Assim, em todos os tempos, os homens têm tido a tendência para levantar imitações das reali¬dades divinas e de se apoiarem nelas. Vemos assim como as falsifi¬cações da religião se têm multiplicado ante os nossos olhos. Aquelas coisas que sabemos, por meio da autoridade da Palavra de Deus, serem realidades divinas e celestiais têm sido transformadas em imitações humanas e terrenas pela Igreja professa. Cansada de se apoiar sobre um braço invisível, de confiar num sacrifício invisível, de recorrer a um sacerdote invisível, de esperar a direção de um chefe invisível, tem-se ocupado em "fazer" estas coisas; e, desta forma, através dos séculos, tem estado ocupada, de "buril" na mão, talhan¬do e gravando uma coisa após outra, de sorte que agora já não achamos mais analogia entre muita coisa que vemos em torno de nós e o que lemos na Palavra de Deus do que aquela que existe entre um bezerro "fundido" e o Deus de Israel.
"Faze-nos deuses! Que pensamento! O homem convidado a fazer deuses e o povo disposto a pôr a sua confiança neles! Prezado leitor, olhemos no íntimo e em torno de nós e vejamos senão descobrimos algo de semelhante. Lemos a respeito da história de Israel que todas estas coisas lhes sobrevieram como figuras, "e estão escritas para aviso nosso, para quem já são chegados os fins dos séculos" (ICo 10:11). Procuremos, pois, aproveitar o "aviso". Acor¬demos que ainda que não façamos precisamente "um bezerro de fundição" nos prostramos diante dele. O pecado de Israel é, sem dúvida, um "tipo" de alguma coisa em que corremos o risco de cair. Sempre que, em nosso coração, deixamos de nos apoiar exclusiva¬mente em Deus, quer seja no que se refere ao assunto da salvação, quer no tocante às necessidades da nossa vida, estamos dizendo, em princípio, "faze-nos deuses". É desnecessário dizer que, em nós mesmos, não somos de nenhuma maneira melhores que Arão ou os filhos de Israel; e se eles honraram um bezerro em lugar do Senhor, nós corremos o risco de atuar segundo o mesmo princípio e de manifestar o mesmo espírito. A nossa única salvaguarda é estarmos muito tempo na presença de Deus. Moisés sabia que "o bezerro de fundição" não era Jeová, e portanto não o reconheceu. Porém, quando nos afastamos da presença divina é impossível prever os erros crassos em que podemos cair e todo o mal em que podemos ser arrastados.

As Realidades da Fé
Nós somos chamados a viver pela fé; nada podemos ver pela vista dos sentidos. Jesus subiu às alturas e é-nos dito para esperarmos pacientemente pelo Seu aparecimento. A Palavra de Deus, aplicada ao coração na energia do Espírito Santo, é o fundamento de confi¬ança em todas as coisas, temporais e espirituais, presentes e futuras. Deus fala-nos do sacrifício cumprido por Cristo; nós cremos pela graça e pomos as nossas almas sob a eficácia deste sacrifício, e sabemos que nunca seremos confundidos.
Fala-nos de um sumo sacerdote, que penetrou nos céus, Jesus, o Filho de Deus, cuja intercessão é toda poderosa; nós, pela graça, cremos e apoiamo-nos confiadamente sobre o Seu poder e sabemos que seremos salvos para todo o sempre. Fala-nos do Chefe vivo com Quem estamos unidos no poder da vida de ressurreição, e de Quem nenhuma influência angélica, humana ou diabólica nos poderá separar e, pela graça, cremos e apoiamo-nos a esse Chefe bendito com fé simples e sabemos que nunca havemos de perecer. Fala-nos do aparecimento glorioso do Filho, vindo dos céus; nós, pela graça, cremos e procuramos experimentar o poder purificador desta "es¬perança bendita" (Tt 2:13); e sabemos que não sofreremos nenhum desengano. Fala-nos de uma herança incorruptível, incontaminável, e que não se pode murchar, guardada nos céus para nós, e que estamos guardados na virtude de Deus (1 Pe 1:4-5); de posse da qual herança entraremos a seu devido tempo; e, pela graça, cremos e sabemos que não seremos confundidos. Diz-nos que os cabelos da nossa cabeça estão todos contados e que nada nos faltará; e mediante a graça cremos e gozamos uma doce tranquilidade de coração.
E assim é, ou, pelo menos, assim quisera Deus que fosse. Porém o inimigo está sempre ativo, buscando fazer com que estas realida¬des divinas sejam desprezadas por nós — Procura induzir-nos a pegar no "buril" da incredulidade e fazermos os nossos próprios deuses. Vigiemoscontraele; oremos para sermos guardados dele; testifiquemos contra ele; atuemos contra ele; e desta forma ele será confundido, Deus será glorificado e nós próprios seremos abundan¬temente abençoados.

O Bezerro de Fundição
Quanto a Israel, neste capítulo, a sua rejeição deDeus foi a mais completa. "EArão lhes disse: Arrancai os pendentes de ouro, que estão nas orelhas de vossas mulheres, e de vossos filhos, e de vossas filhas e trazei-mos... e ele os tomou das suas mãos, e formou o ouro comum buril, e fez dele um bezerro de fundição. Então, disseram: Estes são teus deuses, ólsrael, que te tiraram da terra do Egito. EArão, vendo isto, edificou um altar diante dele; e Arão apregoou, e disse: Amanhã será festa ao SENHOR" (versículos 2 a 5). Isto era pôr Deus de parte e substituí-Lo por um bezerro. Quando puderam procla¬mar que um bezerro os tinha tirado do Egito, abandonaram, eviden¬temente, toda a ideia da presença e do caráter do verdadeiro Deus. "Depressa" se desviaram do caminho que Deus lhes tinha ordenado, para cometerem um erro tão grosseiro e espantoso! E Arão, o irmão e companheiro de Moisés no seu cargo, conduziu-os neste extravio; e pôde dizer diante de um bezerro: "Amanhã será festa ao SENHOR"! Como isto é triste! Quão humilhante! Deus destituído por um ídolo! Um objeto "esculpido por artifício e imaginação dos ho¬mens" foi posto em lugar do "Senhor de toda a terra"!

A Ira do SENHOR e a Intercessão de Moisés
Tudo isto implicava renúncia deliberada, da parte de Israel, à sua relação com o Senhor. Haviam abandonado o Senhor; e, por conse¬quência, vemos que Ele os considerou no terreno que escolheram. "Então, disse o SENHOR a Moisés: Vai, desce; porque o teu povo, que fizeste subir do Egito, se tem corrompido. E depressa se tem desviado do caminho que eu lhes tinha ordenado... Tenho visto a este povo, e eis que é povo obstinado. Agora, pois, deixa-me, que o meu furor se acenda contra eles, e os consuma: e eu farei de ti uma grande nação" (versículos 7a 10). Aqui estava uma porta aberta para Moisés; e aqui ele manifesta uma virtude pouco vulgar e semelhança de espírito com aquele Profeta semelhante a si que o Senhor devia suscitar. Moisés recusa ser ou ter qualquer coisa sem o povo. Argumenta com Deus com fundamento na Sua própria glória, e repõe o povo sobre Ele com estas palavras tocantes: "O SENHOR, porque se acende o teu furor contra o teu povo, que tu tiraste da terra do Egito com grande força e com forte mão?-Por que hão de falar os egípcios, dizendo: Para mal os tirou, para matá-los nos montes e para destruí-los da face da terral Torna-te da ira do teu furor, earrepende-te deste mal contra otcu povo. Lembra-te de Abraão, de Isaque, e de Israel, teus servos, aos quais por ti mesmo tens jurado, e lhes disseste: Multiplicarei a vossa semente como as estrelas do céus e darei à vossa semente toda esta terra, de que tenho dito, para que a possuam por herança eternamente" (versículos 11 a 13).
Isto era uma defesa poderosa. Aglória de Deus, a justificação do Seu santo nome, o cumprimento do Seu juramento: tais são os argumentos em que Moisés se firma para rogar ao Senhor para aplacar a Sua ira. Não podia achar na conduta ou caráter de Israel argumento de defesa; mas achou-o no Próprio Deus.

As Tábuas da Lei Quebradas
O Senhor havia dito a Moisés: "O teu povo, que fizeste subir; porém Moisés responde ao Senhor, "o teu povo, que tu tiraste...". Era o povo do Senhor, apesar de tudo; e o Seu nome, a Sua glória, e o Seu juramento estavam ligados com o seu destino. Logo que o Senhor Se liga com um povo, o Seu caráter é emprenhado e a fé esperará sempre n'Ele sobre este sólido fundamento. Moisés esquece-se completamente de si. A sua alma está inteiramente ocupada com pensamentos acerca da glória do Senhor e do Seu povo. Ditoso servo!
Como há tão poucos como ele! E quando o contemplamos nesta cena, percebemos que está infinitamente abaixo do bendito Mestre. A diferença entre eles é infinita! Moisés desceu do monte. "E vendo o bezerro e as danças, acendeu-se o furor de Moisés e arremessou as tábuas das suas mãos e quebrou-as ao pé do monte" (versículo 19). O concerto fora violado e os seus acordos foram feitos em bocados; e, então, havendo, em justa indignação, executado o juízo, "disse ao povo: Vós pecastes grande pecado; agora, porém, subirei ao SENHOR; porventura, farei propiciação por vosso pecado".

Cristo, nosso Mediador
Quão diferente é tudo isto do que vemos em Cristo! Veio do seio do Pai não com as tábuas daleiemSuas mãos, mas com a lei em Seu coração: não veio para conhecer a condição do povo, mas com perfeito conhecimento do que essa condição era. Demais, em vez destruir os acordos do concerto e executar o juízo, engrandeceu a lei e honrou-a e levou sobre a Sua adorável Pessoa, na cruz, o juízo do Seu povo; e, havendo cumprido tudo, voltou para o céu, não com um "porventura farei propiciação por vossos pecados", mas para depositar sobre o trono da Majestade nas alturas os acordos impe¬recíveis de uma expiação realizada. Isto constitui uma diferença imensa e verdadeiramente gloriosa.
Graças a Deus, não temos necessidade de seguir com ansiedade o nosso Mediador para saber se cumprirá a nossa redenção e se apaziguará a justiça ofendida. Não, Ele já fez tudo. A Sua presença nas alturas declara que toda a obra foi consumada. Nos limites deste mundo, prestes a partir, e com toda a calma de um vencedor consciente da vitória—embora tivesse ainda que atravessar a cena mais sombria — ,pôde dizer "Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra que me deste a fazer" (Jo 17:4). Bendito Salvador! Bem podemos adorar-Te triunfar com o lugar de glória e honra com que a justiça eterna Te coroou. O lugar mais elevado no céu pertence-Te, e os Teus santos esperam apenas o tempo em que "ao nome de Jesus se dobre todo o joelho.. .e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai" (Fl 2:10-11). Deus e o Governo Moral

Deus e o Governo Moral
No fim deste capítulo o Senhor proclama os Seus direitos no governo moral nas seguintes palavras: "Aquele que pecar contra mim, a este riscarei eu do meu livro. Vai, pois, agora, conduze este povo para onde te tenho dito; eis que o meu anjo irá adiante de ti; porém, no dia da minha visitação, visitarei, neles, o seu pecado". Eis aqui Deus no governo, não Deus no evangelho. Aqui Deus fala de riscar opecador; no evangelho vê-Se tirando opecado. A diferença é grande!
O povo deve ser conduzido, por intermédio de Moisés, pela mão de um anjo. Este estado de coisas era bem diferente daquele que havia existido desde o Egito ao Sinai. Israel perdera todo o direito baseado na lei, e por isso só restava a Deus retroceder à Sua soberania e dizer: "... terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia."

- CAPÍTULO 33 –

MEDIAÇÃO
E RESTAURAÇÃO

A Tenda da Congregação
O Senhor recusa acompanhar o seu povo à terra prometida: ".. .eu não subirei no meio de ti, porquanto és povo obstinado, para que não te consuma eu no caminho" (versículo 3). No princípio deste livro, o Senhor pôde dizer: "Tenho visto atentamente a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores, porque conheci as suas dores". Porém, agora tem que dizer: "Tenho visto a este povo, e eis que é povo obstinado". Um povo afligido é objetivo da graça, mas um povo obstinado é necessário que sej a humilhado. O clamor de Israel oprimido havia obtido resposta por meio da manifestação da graça; mas o cântico idólatra de Israel deve ser atendido pela voz de severa admoestação.
"Povo obstinado és; se um momento subir no meio de ti, de consumirei; porém agora tira de ti os teus atavios, para que eu saiba o que te hei-de fazer"(versículo 5). É só quando somos despojados dos atavios da nossa natureza que Deus pode tratar conosco. Um pecador despido pode ser revestido; porém um pecador coberto de ornamentos deve ser despido. É necessário que sejamos despojados de tudo que pertence ao ego, antes de podermos ser revestidos daquilo que pertence a Deus.
"Então, os filhos de Israel se despojaram dos seus atavios, ao pé do monte Horebe". Ali estavam, ao pé deste memorável monte, a sua festa e os seus cânticos haviam sido trocados por amargas lamentações, os seus atavios postos de parte, as tábuas da lei em pedaços. Tal era a sua condição quando Moisés se dispôs a agir imediatamente de acordo com o seu estado. Agora já não podia reconhecer o povo no seu caráter corpóreo. A assembleia havia-se contaminado inteiramente levantando um ídolo de sua própria fabricação em lugar de Deus — um bezerro em lugar do Senhor.
"E tomou Moisés a tenda, e a estendeu para si fora do arraial, desviada longe do arraial, e chamou-lhe a tenda da congregação." Assim o campo foi rejeitado como o lugar da presença divina. Deus já não estava ali, nem podia estar por mais tempo, porque havia sido deposto por uma invenção humana. Um novo centro de reunião foi, pois, estabelecido. "E aconteceu que todo aquele que buscava o SENHOR, saiu à tenda da congregação que estava fora do arraial ".
Eis aqui um princípio precioso da verdade que a mente espiritual facilmente compreenderá. O lugar que Cristo ocupa agora é "fora do arraial" (Hb 13:13), e nós somos convidados a ir ao Seu encontro, "fora do arraial". É necessária muita sujeição à Palavra de Deus para se poder saber exatamente o que significa realmente o arraial, e muito poder espiritual para se poder sair dele; e muito mais ainda para se poder, quando se está "longe", atuar a favor dos que estão dentro do arraial no poder combinado da santidade e da graça — a santidade que nos separa da contaminação do arraial e a graça que nos habita a atuar a favor daqueles que estão dentro dele.
"E falava o SENHOR a Moisés face a face, como qualquer fala com o seu amigo; depois, tornava ao arraial, mas o moço Josué, filho de Num, seu servidor, nunca se apartava do meio da tenda". Moisés manifesta maior energia espiritual que o seu servo Josué. E muito mais fácil tomar uma posição de separação do campo do que proceder acertadamente par com aqueles que estão dentro dele.

O Senhor Diz: Irá a Minha Presença...
"E disse Moisés ao SENHOR: Eis que tu me dizes: Faze subir a este povo, porém não me fazes saber a quem hás de enviar comigo; e tu disseste: Conheço-te por teu nome; também achaste graça aos meus olhos". Moisés solicita a companhia do Senhor como prova de o povo haver achadograf a aos Seus olhos. Se fosse apenas uma questão de justiça, o Senhor só podia consumir o povo, estando no seu meio, porque era um "povo obstinado". Porém, fala de graça em relação com o Mediador e a própria obstinação do povo torna-se um argumento para pedir a Sua presença: "Senhor, se agora tenho achado graça aos teus olhos, vá agora o Senhor no meio de nós, poraue este povo é obstinado; porém, perdoa a nossa iniquidade e o nosso pecado, e toma-nos pela tua herança" (capítulo 34:9). Eis uma oração não apenas bela mas tocante. O "povo obstinado" pedia a graça ilimitada e a paciência inexaurível de Deus. Só Ele podia suportá-lo.
"Disse, pois: Irá a minha presença contigo para te fazer descan¬sar". Parte preciosa! Bendita esperança! A presença de Deus conosco durante a travessia do deserto e no fim descanso eterno! Graça para suprir as nossas necessidades presentes e a glória como a nossa sorte vindoura! Os nossos corações podem bem exclamar: "É bastante, Senhor!"


— CAPÍTULO 34 —

O MONTE HOREBE
E O EVANGELHO

Em capítulo 34 Deus dá as segundas tábuas da lei, não para serem quebradas, mas para serem guardadas na arca, em cima da qual, como já fizemos notar, Jeová ia tomar o Seu lugar como Senhor de toda a terra no governo moral. "Então, ele lavrou duas tábuas de pedra, como as primeiras; e levantou-se Moisés pela manhã de madrugada, e subiu ao monte Sinai, como o SENHOR lhe tinha ordenado; e tomou as duas tábuas de pedra na sua mão. E o SENHOR desceu numa nuvem e se pôs junto a ele; e ele apregoou o nome do SENHOR. Passando, pois, o SENHOR perante a sua face, clamou: JEOVÁ, o SENHOR, Deus misericordioso e piedoso, tardio em iras e grande em beneficência e verdade; que guarda a beneficiência em milhares; que perdoa a iniquidade, e a transgressão, e o pecado; que ao culpado não tem por inocente; que visita a iniquidade dos pais sobre os filhos e sobre os filhos até à terceira e quarta geração" (versículos 4 a 7). Lembremo-nos que Deus é visto aqui no Seu governo moral do mundo e não como é visto na cruz — não como brilha na face de Jesus Cristo —, não como é proclamado no evangelho da Sua graça. Eis uma exibição de Deus no evangelho: "E tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo, por Jesus Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, isto é, Deus estava em Cristo recon¬ciliando consigo o mundo, NÃO LHES IMPUTANDO os seus pecados e pôs em nósapalavra da reconciliação" (2 Co 5:18-19). Não ter "ao culpado por inocente" e não "imputar o pecado" são termos que nos apresentam duas ideias de Deus totalmente diferentes. Visitar "a iniquidade" e tirá-la não é certamente a mesma coisa. A primeira é Deus agindo em Seu governo; a segunda é Deus no evangelho. Em capítulo 3 da 2a epístola aos Coríntios, o apóstolo põe em contraste o "ministério" mencionado em Êxodo, capítulo 34, como "o ministério" do evangelho. O leitor fará bem em estudar esse capítulo com atenção. Aprenderá com essa lição que todo aquele que considera o ponto de vista do caráter de Deus dado a Moisés, no Monte Horebe, como explicando o evangelho, deve ter realmente uma compreensão muito imperfeita do que é o evange¬lho. Eu não posso descobrir os segredos profundos do coração do Pai nem na criação, nem mesmo no governo moral. O filho pródigo poderia ter achado o seu lugar nos braços d'Aquele que Se revelou no Monte Sinais João poderia ter inclinado a sua cabaça no coração desse Senhora Seguramente que não. Porém, Deus revelou-Se na face de Jesus Cristo; Ele nos revelou, com harmonia divina, todos os Seus atributos na obra da cruz. Foi ali que "a misericórdia e a verdade se encontraram, a justiça e a paz se beijaram" (SI 85:10). O pecado é completamente tirado e o pecador que crê perfeitamente justificado "PELO SANGUEDA CRUZ".
Quando vemos Deus assim revelado, temos apenas, à semelhan¬ça de Moisés, de inclinar a cabeça à terra e adorar — atitude que convém a um pecador perdoado e recebido na presença de Deus!

— CAPÍTULOS 35 a 40 —

A CONSTRUÇÃO
DO TABERNÁCULO

O Desprendimento Voluntário
Estes capítulos contêm uma recapitulação de diversas partes do tabernáculo e seu mobiliário; e visto que já expliquei o que creio ser o significado das partes mais proeminentes, é desnecessário acres¬centar mais.
Existem, contudo, duas coisas nesta parte do livro das quais podemos tirar instruções muitos úteis, a saber, em primeiro lugar os sacrifícios voluntários do povo; e, em segundo, a obediência implí¬cita do povo a respeito da obra do tabernáculo do testemunho.
"Então, toda a congregação dos filhos de Israel saiu de diante de Moisés, e veio todo homem, a quem o seu coração moveu, e todo aquele cujo espírito voluntariamente o impeliu, e trouxeram a of ertaalçada ao SENHOR, para a obra da tenda da congregação, e para todo o seu serviço, e para as vestes santas. E, assim, vieram homens e mulheres, todos dispostos de coração; trouxeram fivelas, e pen¬dentes, e anéis, e braceletes, e todo vaso de ouro; e todo homem oferecia oferta de ouro ao SENHOR, e todo homem que se achou com pano azul, e púrpura, e carmesim, e linho fino, e pêlos de cabras, e peles de carneiro tintas de vermelho, e peles de texugos, os trazia; todo aquele que oferecia oferta alçada de prata ou de metal, a trazia; por oferta alçada ao SENHOR; e todo aquele que se achava com madeira de cetim, a trazia para toda a obra do serviço. E todas a mulheres sábias de coração fiavam com as mãos, e traziam o fiado, o pano azul, a púrpura, o carmesim e o linho fino. E todas as mulheres, cujo coração se moveu em sabedoria, fiavam os pêlos das cabras. E os príncipes traziam pedras sardónicas, e pedras de engaste para oéfode epara o peitoral, e especiarias, e azeite para a luminária, e para o óleo da unção, e para o incenso aromático. Todo homem e mulher, cujo coração voluntariamente se moveu a trazer alguma coisa para toda a obra que o SENHOR ordenara se fizesse pela mão de Moisés" (capítulo 35:20 a 29). E mais adiante lemos: "E vieram todos os sábios que faziam toda a obra do santuário, cada um da obra que fazia, e falaram a Moisés, dizendo: O povo traz muito mais do que basta para o serviço da obra que o SENHOR ordenou se fizesse... porque tinham material bastante para toda a obra que havia de fazer-se" (capítulo 36:4 a 7).
Que quadro encantador da dedicação à obra do santuário! Não foram precisos esforços, apelos ou argumentos solenes par cons¬tranger os corações do povo a darem. Oh! não: os corações foram voluntariamente movidos. Este era o próprio princípio. A corrente de sacrifícios voluntários vinha dos corações: "Príncipes", "ho¬mens", "mulheres", todos sentiam que era para eles um doce privilégio darem ao Senhor, não com um coração estreito ou mão mesquinha, mas de um modo principesco trouxeram "muito mais do que bastava."

A Obediência Implícita
Em segundo lugar, quanto à obediência do povo está escrito: "Conforme tudo o que o SENHOR ordenara a Moisés, assim fizeram os filhos de Israel toda a obra. Viu, pois, Moisés toda a obra, e eis que a tinham feito; como o SENHOR ordenara, assim a fizeram; então, Moisés os abençoou" (capítulo 39:42 a 43). O Senhor havia dado instruções minuciosas relativas a toda a obra do tabernáculo. Cada estaca, cada base, cada colchete, cada cordão estavam exatamente nos seus lugares. Não houve lugar disponível para os recursos, a razão ou o sentido comum do homem. O Senhor não delineou um plano deixando ao homem a tarefa de o completar; nem deixou nenhuma margem para o homem fazer introduzir as usas combi¬nações. De modo nenhum. "Atenta, pois, que o faças conforme ao modelo que te foi mostrado no monte (Êx 25:40, 26:30; Hb8:5).
Este mandato não deixava lugar para invenções humanas. Se fosse permitido ao homem fazer uma simples estaca, essa estaca estaria, seguramente, fora de lugar, no parecer de Deus. Podemos ver em capítulo 32 o que "o buril" do homem produz. Graças a Deus, o buril não teve lugar no tabernáculo. Neste caso eles fizeram precisamente o que lhes fora dito—nada mais, nada menos. Eis aqui uma lição proveitosa para a igreja professa! Existem muitas coisas na história de Israel que devemos procurar seriamente evitar: as suas murmurações de impaciência, os seus votos de legalismo, e a sua idolatria; porém na sua devoção e na sua obediência podemos imitá-los. Que a nossa devoção seja mais sincera e a nossa obediência mais implícita. Podemos afirmar com toda a segurança que se tudo não tivesse sido feito conforme ao modelo mostrado "no monte" não poderíamos ler, no final do livro, que "então, a nuvem cobriu a tenda da congregação, e a glória do SENHOR encheu o tabernáculo, de maneira que Moisés não podia entrar na tenda da congregação, porquanto a nuvem ficava sobre ela, e a glória do SENHOR enchia o tabernáculo" (capítulo 40:34-35). O tabernáculo era, para todos os efeitos, conforme ao modelo divino, e, portanto, podia ser cheio da glória divina.
Existem tomos de instruções nesta verdade. Estamos sempre prontos a considerar a Palavra de Deus insuficiente até para os mínimos pormenores ao culto e serviço de Deus. Mas isto é um grande erro, erro que tem sido a origem de abundantes males e erros na igreja professa. A Palavra de Deus é suficiente para todas as coisas, quer seja no que se refere à salvação e conduta pessoal, quer no tocanteàordemegovernodaAssembléia. "Toda Escritura,divina¬mente inspirada é proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça, para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente instruído para toda boa obra" (2 Tm 3:16-17). Estas palavras resolvem toda a questão. Se a Palavra de Deus prepara umb.omemperfeitamente"p>aratoda boaobra", segue-se,necessa¬riamente, que tudo o que não se acha nas suas páginas não pode ser uma boa obra. Demais, recordemos que a glória divina não pode ligar-se com aquilo que não for conforme ao modelo divino.

CONCLUSÃO

Prezado leitor, acabamos de percorrer juntos as páginas deste livro precioso. Tenho a confiança que temos recolhido algum fruto do nosso estudo. Confio que temos recolhido alguns pensamentos edificantes acerca de Jesus e do Seu sacrifício, à medida que avan¬çamos. É verdade que os nossos pensamentos mais elevados não podem ser mais que mesquinhos, e que o que percebemos de mais profundo é muito superficial comparado com a intenção de Deus em todo este livro. É agradável recordarmos que, pela graça, estamos no caminho que conduz àquela glória em que conheceremos como somos conhecidos; e onde os nossos corações se deleitarão com o resplendor do semblante d'Aquele que é o princípio e o fim de todos os caminhos de Deus, quer seja na criação, na providência ou na redenção. Encomendo-o, pois, ao Senhor em corpo, alma e espírito, orando para que possa compreendera profunda bem-aventurança de ter a sua parte em Cristo, e para que seja guardado na esperança da Sua vinda gloriosa. Amén.

FIM

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