quinta-feira, 13 de agosto de 2009

DICIONÁRIO FILOSÓFICO

ABRAÃO
Abraão é um desses nomes célebres na Ásia Menor e na Arábia, como Tot entre os egípcios, o primeiro Zoroastro na Pérsia, Hércules na Grécia, Orfeu na Trácia, Odin nas nações setentrionais e tantos outros mais conhecidos por sua celebridade do que por uma história bem comprovada. Não falo aqui senão da história profana, pois quanto à dos judeus, nossos mestres e nossos inimigos, em quem cremos e que detestamos, tendo sido a história desse povo visivelmente escrita pelo próprio Espírito Santo, temos por ela os sentimentos que devemos ter. Dirijo-me apenas aos árabes; que se gabam de descender de Abraão por Ismael; que acreditam ter sido esse patriarca o fundador de Meca, onde teria morrido. O fato é que a raça de Ismael foi infinitamente mais favorecida por Deus do que a raça de Jacó. Uma e outra, é verdade, produziram ladrões. Mas os ladrões árabes foram incomparavelmente superiores aos ladrões judaicos. Os descendentes de Jacó não conquistaram mais que uma faixa de terra insignificante, que perderam. Os descendentes de Ismael avassalaram parte da Ásia, parte da África e parte da Europa, edificaram um império mais vasto que o império dos romanos e enxotaram os judeus de suas cavernas – que estes chamavam terra da promissão.
Bem difícil seria, à luz da história moderna, ter sido Abraão pai de duas nações tão diferentes. Dizem que nasceu na Caldéia, filho de pobre oleiro que ganhava a vida fazendo pequenos ídolos de barro. É pouco verossímil que esse filho de oleiro se haja abalançado a ir fundar Meca a trezentas léguas de distância, de baixo do trópico, tendo de vingar desertos intransitáveis. Se foi um conquistador, certamente ter-se-á dirigido ao belo pais da Assíria. Se, como o despintam, não passou de um pobre diabo, então não terá fundado reinos senão na própria terra
Reza o Gênesis que tinha Abraão setenta e cinco anos ao emigrar do país de Harã, após a morte de seu pai Tareu o oleiro. O mesmo Gênesis, porém, diz que Tareu, tendo gerado Abraão aos setenta anos, viveu até a idade de duzentos e cinco anos, e que Abraão só saiu de Harã depois da morte do pai. Portanto é claro, segundo o próprio Gênesis, que Abraão contava cento e trinta e cinco anos quando deixou a Mesopotâmia. Saiu de um pais idólatra para outro país idólatra: Siquêm, na Palestina. Por que? Por que deixou as férteis margens do Eufrates por terras tão remotas, estéreis e pedregosas? A língua caldaica devia ser muito diferente da língua de Siquêm. Não se tratava de lugar de comércio. Siquêm dista da Caldéia mais de cem léguas. É preciso transpor desertos para lá chegar. Mas Deus queria que Abraão realizasse essa viagem. Queria mostrar-lhe a terra que séculos depois haviam de habitar seus pósteros. Custa ao espírito humano compreender os motivos de tal peregrinação.
Mal arriba ao montanhoso rincão de Siquêm, obriga-o a fome a abandoná-lo. Vai para o Egito em companhia de sua mulher, à procura de com que viver. Duzentas léguas medeiam de Siquêm e Menfis. Será natural ir buscar trigo tão longe? Num país de que nem se sabe a língua? Estranhas viagens empreendidas à idade de quase cento e quarenta anos.
Traz a Menfis sua mulher Sara. Sara era extremamente jovem em comparação com ele, pois não contava mais que sessenta e cinco anos. Como fosse muito bonita, Abraão resolveu tirar proveito de sua beleza. “Façamos de conta que você é minha irmã,” – disse-lhe – “a fim de que me acolham com benevolência”. “Façamos de conta que é minha filha” – devia dizer. O rei enamora-se da jovem Sara e presenteia o pretenso irmão com muitas ovelhas, bois, burros, mulas, camelos e servos. O que prova – que já então era o Egito um reino poderoso e civilizado – por conseguinte antigo – e que se recompensavam magnificamente os irmãos que vinham oferecer as irmãs aos reis de Menfis.
Tinha a jovem Sara noventa anos, segundo a Escritura, quando Deus lhe prometeu que Abraão, que então tinha cento e sessenta, lhe daria um filho.
Abraão, que gostava de vigiar, tomou o caminho do hórrido deserto de Cades, acompanhado da mulher grávida, sempre jovem e bonita. Como acontecera com o rei egípcio, enamorou-se também de Sara um rei do deserto – O pai dos crentes pregou a mesma mentira que no Egito: fez passar a esposa por irmã. O que mais uma vez lhe valeu ovelhas, bois e servos. Pode-se dizer que, graças a sua mulher, Abraão se tornou riquíssimo.
Os comentaristas escreveram um número prodigioso de volumes para justificar o procedimento de Abraão e conciliar a cronologia. Cumpre-me, pois, a eles remeter o leitor. São todos espíritos finos e sutis, excelentes metafísicos, senhores sem preconceito e profundamente avessos à pedanteria.


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ALMA
Seria maravilhoso ver a própria alma. Conhece-te a ti mesmo (1) é excelente preceito, mas só a Deus é dado pô-lo em prática. Quem mais pode conhecer a própria essência?
Alma chamamos ao que anima. É tudo o que dela sabemos: a inteligência humana tem limites. Três quartos do gênero humano não vão alêm, nem se preocupam com o ser pensante. O outro quarto indaga. Ninguém obteve nem obterá resposta.
Pobre filósofo! Vês uma planta que vegeta, e dizes vegetação, ou alma vegetativa. Notas que os corpos têm e comunicam movimento, e dizes força. Vês teu cão de caça aprender contigo teu ofício, e crias instinto, alma sensitiva. Tens idéias combinadas, e dizes espírito.
Mas que entendes tu por estas palavras? Aquela flor vegeta. Existirá porém um ser material – vegetação? Aquele corpo impele outro. Porém encerra ele em si um ente distinto – força? Aquele cão traz-te uma perdiz. Existirá porém um ser chamado instinto? Não te ririas de um raciocinador (teria sido preceptor de Alexandre) que te dissesse Todos os animais vivem; logo, encerram uma forma substancial – a vida?
Se uma tulipa pudesse falar e dissesse: Minha vegetação e eu somos dois seres juntos formando um só, não te ririas da tulipa?
Vejamos primeiro o que sabes, e do que estás certo. Que andas com os pés. Que digeres com o estômago. Que sentes com todo o corpo. Que pensas com a cabeça.
Pois bem. Pode a tua razão só por só dar-te luzes suficientes para concluíres, sem um recurso sobrenatural, que tens uma alma?
Os primeiros filósofos, quer caldeus, quer egípcios, disseram: Forçoso é haver em nós algo que produza o pensamento; esse algo deve ser extremamente sutil: sopro, fogo, éter, substrato, um tênue simulacro, uma enteléquia, um número, uma harmonia. Finalmente, segundo o divino Platão, é um composto do mesmo e do outro. São átomos que pensam em nós, disse Epicuro depois de Demócrito. Mas, meu amigo, como pensa o átomo? Confessa que nem o imaginas.
Aceita-se seja a alma um ser imaterial. Mas vós não concebeis o que seja esse ente imaterial.
— Não, – respondem os sábios – porém conhecemos sua natureza: pensar.
— Como o sabeis?
— Porque ela pensa.
— Oh sábios! Muito receio que sejais tão ignorantes quanto Epicuro. A natureza de uma pedra é cair porque ela cai. Pergunto-vos: que a faz cair?
— Sabemos que uma pedra não tem alma.
— De acordo.
— Sabemos que uma negação, uma afirmação não são divisíveis, não são partes da matéria.
— Da mesma opinião. Mas a matéria, que aliás desconhecemos, tem qualidades não materiais, não divisíveis. Possui gravitação para um centro, que Deus lhe deu. Essa gravitação não é formada de partes, não é divisível. A força motriz dos corpos não é ente composto de partes. A vegetação dos corpos organizados, sua vida, seu instinto, não são seres à parte, seres divisíveis. Não podeis cortar em duas a vegetação de uma rosa, a vida de um cavalo, o instinto de um cão, da mesma forma como não podeis cindir em duas uma sensação, uma negação, uma afirmação. Portanto vosso grande argumento inferido da indivisibilidade do pensamento absolutamente nada prova.
Que chamais então vossa alma? Que idéia tendes dela? Por vós mesmos, sem revelação, não podeis admitir em vós senão um poder de vós desconhecido de sentir, de pensar.
Agora dizei-me sinceramente: é esse poder de sentir e pensar o mesmo que vos faz digerir e andar? Confessais que não. Porque debalde ordenaria vosso entendimento a vosso estômago doente: Digere! Ele não digeriria. Debalde vosso ser imaterial intimaria a vossos pés gotosos: Caminhem! Eles não caminhariam.
Com razão observaram os gregos não ter o pensamento quase nenhuma influência no funcionamento dos órgãos. Admitiam para os órgãos uma alma animal. Para o pensamento uma alma mais tênue, mais sutil: um nous.
Mas eis a alma do pensamento que em milhares de ocasiões governa a alma animal. Ordena a alma pensante às mães que apreendam: as mãos apreendem. Porém não pode ordenar ao coração que bata. Ao sangue que circule. Que se forme o quilo. Tudo isso se faz independentemente dela. Aí estão as vossas duas almas metidas em maus lençóis e feitas péssimas donas de casa.
Claro que a primeira alma não existe. Não passa do movimento dos órgãos. Em guarda, homem! Tua fraca razão não é capaz de provar a existência da outra também. Não podes concebê-la senão pela fé. Tu Nasces. Vives. Ages. Pensas. Velas. Dormes. Sem saber como. Deus conferiu-te a faculdade de pensar como tudo o mais. E se não viesse ensinar-te nas idades assinaladas pela sua providência que tens uma alma imaterial e imortal, dela não terias prova alguma.
Relanceemos os interessantes sistemas arquitetados pela tua filosofia em torno dessas almas.
Um diz que a alma humana é parte da substância do próprio Deus. Outro que é parte do todo infinito. Terceiro que foi criada ab eterno. Quarto que foi feita e não criada. Outros afirmam que Deus as fabrica à proporção necessária, e que chegam no instante da cópula. Alojam-se nos animálculos seminais, exclama este. Não, diz aquele, vão habitar as trompas de Fallopio. Todos vós estais errados, intervêm aqueloutro: a alma espera seis semanas até que esteja formado o feto; então se acomoda na glândula pineal; se, porém, encontra um germe maligno, volta, a espera de melhor ocasião. A última opinião é que sua morada é no corpo caloso. É o local que lhe atribui La Peyronie. Era preciso ser primeiro cirurgião do rei de França para dispor assim do alojamento da alma. Pena é que o corpo caloso do ar. La Peyronie não tenha tido a mesma fortuna que o dono.
Diz Santo Tomás (questão septuagésima quinta e subseqüentes) que a alma é uma forma subsistante per se. Que está em todas as coisas. Que sua essência difere de sua potência. Que há três almas vegetativas: nutritiva, aumentativa, generativa. Que a memória das coisas espirituais é espiritual. Que a memória das coisas corporais é corporal. Que a alma racional é uma forma imaterial quanto às operações e material quanto ao ser. Sto. Tomás escreveu duas mil páginas dessa força e dessa clareza. É o pai da escola.
Não é menor o número de sistemas forjados sobre a maneira de sentir da alma depois de desertar do corpo por meio de que sente. Como ouvirá sem ouvidos. Como olfatará sem nariz. Como tocará sem mãos. Que corpo retomará de futuro: o que tinha aos doze ou aos oitenta anos? Como o eu, a identidade da mesma pessoa subsistirá. Como a alma de um indivíduo tornado cretino à idade de quinze anos e que cretino tenha morrido aos setenta anos retomará o fio das idéias interrompido na puberdade. Por que milagre uma alma que haja perdido uma perna na Europa e um braço na América reencontrará essa perna e esse braço. (Que, tendo se transformado em legumes, terão virado sangue de algum outro animal).
Singular é não haver nas leis do povo de Deus palavra sequer a respeito da espiritualidade e imortalidade da alma. Nem no Decálogo, nem no Levítico nem no Deuteronômio.
Em passo algum – e sobre isto não paira a menor dúvida – Moisés promete aos judeus recompensas e castigos em outra vida. Nem lhes fala da imortalidade da alma. Não lhes acena com céu nem os ameaça com inferno. Tudo é temporal.
Antes de morrer diz-lhes no Deuteronômio: “Se depois de terdes filhos e netos vós prevaricardes, sereis exterminados no país e reduzidos a número ínfimo entre as nações.
“Eu sou um deus cioso que pune a iniqüidade dos pais até terceira e quarta geração.
“Honrai pai e mãe para que vivais longo tempo.
“Nunca vos faltará o que comer.
“Se seguirdes deuses estrangeiros sereis destruídos...
“Se obedecerdes tereis chuva na primavera como no outono. Tereis frumento, óleo e vinho. Tereis feno para os vossos animais. Para que comais e vos farteis.
“Gravai estas palavras em vossos corações, em vossas mãos, aos vossos olhos. Escrevei-as em vossas portas. Para que vossos dias se multipliquem.
“Fazei o que vos ordeno sem tirar nem pôr.
“Se se erguer um profeta e vos predisser causas prodigiosas; se a predição for verdadeira e se cumprir; e se ele vos disser: Vamos! Sigamos deuses estrangeiros...- matai-o incontinenti. E que todo o povo vos acompanhe.
“Quando o Senhor vos entregar nações estrangeiras, degolai a todos. Não poupeis um só homem. Não tenhais piedade de ninguém.
“Não comais aves impuras como a águia, o grifo, o ixiao.
“Não comais animais que ruminem e que não tenham a unha fendida, como o camelo, a lebre, o porco espinho, etc.
“Observando todos os preceitos sereis abençoados na cidade como no campo. Abençoados serão os frutos do vosso ventre, da vossa terra, dos vossos animais...
“Se não observardes todos os mandamentos e todas as cerimônias, amaldiçoados sereis na cidade como no campo... Padecereis fome, pobreza. Morrereis de miséria, de frio, de penúria, de febre. Tereis ronha, rabugem, fístula. Tereis úlceras nos joelhos e na barriga das pernas.
“O estrangeiro vos emprestará a onzena, e vós não lhe emprestareis a onzena... Por não servirdes ao Senhor.
“E comereis o fruto do vosso ventre. A carne dos vossos – filhos, etc.”.
É manifesto nada haver em todas essas promessas e ameaças que não seja temporal. Nem uma palavra sobre imortalidade da alma. Nem uma palavra sobre vida futura.
Muitos comentadores ilustres foram de parecer que Moisés estava perfeitamente avisado destes dois grandes dogmas. Provam-no com palavras de Jacó, que julgando que seu filho fora devorado pelas feras, exclamou em sua dor: “Eu acompanharei meu filho à sepultura, in infernum, ao inferno”. Isto é: eu morrerei, já que meu filho morreu.
Provam-no ainda com trechos de Isaías e Ezequiel. Porém os hebreus a quem falava Moisés não podiam ter lido Ezequiel nem Isaías. Porque Ezequiel e Isaías só viveram muitos séculos depois.
Inútil discutir quanto aos sentimentos secretos de Moisés. O fato é que nas leis públicas ele nunca falou de vida futura. Todos os castigos, todos os prêmios, restringe-os ao presente. Se conhecia a vida vindoura, por que não expôs expressamente tão importante dogma? E se não a conheceu, qual o objeto de sua missão? É o que perguntam muitas personagens ilustres. E respondem que o Mestre de Moisés e de todos os homens se reservava o direito de explicar a bom tempo aos judeus uma doutrina que eles não estavam em condições de compreender quando no deserto.
Houvesse Moisés anunciado o dogma da imortalidade da alma, não o teria combatido uma grande escola de judeus. Não teria sido autorizada pelo estado a grande escola dos saduceus. Os saduceus não teriam ocupado os primeiros cargos. De seu seio não teriam saído grandes pontífices.
Parece que só depois da fundação de Alexandria os judeus se cindiriam em três seitas: fariseus, saduceus, essênios. Ensina o historiador fariseu José no livro 13 das Antigüidades que os fariseus acreditavam na metempsicose. Criam os saduceus que a alma se extinguia com o corpo. Para os essênios – é ainda José quem o afiança – a alma era imortal; segundo eles as almas, sob forma aérea, desciam do fastígio do firmamento violentamente atraídas pelos corpos. Após a morte as almas das pessoas boas iam morar além oceano, num país onde não fazia calor nem frio, não ventava nem chovia. Lugar de todo em todo oposto era o desterro das almas ruins. Tal a teologia dos judeus.
Aquele que devia ensinar todos os homens veio condenar essas três seitas. Sem ele, porém, jamais saberíamos coisa alguma da própria alma. Porque os filósofos nunca souberam nada certo e Moisés, único verdadeiro legislador do mundo antes do nosso, Moisés que falava com Deus face a face e não o via senão pelas costas, deixou os homens em profunda ignorância dessa magna questão. Há apenas mil e setecentos anos que estamos certos da existência e imortalidade da alma.
Cícero não tinha mais que dúvidas. Seus netos aprenderam a verdade com os primeiros galileus que arribaram a Roma.
Mas antes disso, e até depois disso em todo o resto da terra onde não penetraram os apóstolos, cada um devia dizer à própria alma: Que és tu? De onde vens? Que fazes? Para onde vais? Tu és não sei que, que pensa e que sente. Mas ainda que pensasses e sentisses cem bilhões de anos, nada saberias por tuas próprias luzes, sem o auxílio de Deus.
Homem! Deus outorgou-te o entendimento para bem procederes e não para penetrares a essência das coisas por ele criadas.


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AMIZADE
Contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. Sensíveis porque um monge, um solitário, pode não ser ruim e viver sem conhecer a amizade. Virtuosas porque os maus não adjungem mais que cúmplices. Os voluptuosos careiam companheiros de devassidão. Os interesseiros reúnem sócios. Os políticos congregam partidários. O comum dos homens ociosos mantêm relações. Os príncipes têm cortesãos. Só os virtuosos possuem amigos. Cétego era cúmplice de Catilina. Mecenas era cortesão de Otávio. Mas Cícero era amigo de Ático. Que estabelece esse convênio entre duas almas ternas e honestas? As obrigações são mais ou menos intensas consoante a sensibilidade de uma e de outra e o número de serviços prestados, etc.
O entusiasmo da amizade foi mais forte entre gregos e árabes que entre nós. São admiráveis as histórias que teceram esses povos em torno deste sentimento. Não temos iguais. Somos em tudo um pouco secos.
A amizade era objeto de religião e legislação entre os gregos. Os tebanos tinham o regimento dos amantes. Magnífico regimento! Houve quem o tomasse por um regimento de sodomitas. Engano: seria tomar o acessório pelo essencial. A amizade era prescrita na Grécia pela lei e pela religião. Infelizmente tolerava-se a pederastia. Aliás: toleravam-na os costumes. É preciso não imputar à lei abusos vergonhosos. Voltaremos ao assunto.


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AMOR
Amor omnibus idem (2). Cumpre recorrermos à imagem. O amor é a estopa da natureza bordada pela imaginação. Quereis ter uma idéia do amor? Vede os pardais do vosso jardim. Vede vossos pombos. Contemplai o touro que levam à novilha. Admirai aquele soberbo cavalo que dois de vossos camaradas conduzem à égua que passiva o espera e arreda a cauda para recebê-lo. Observai como seus olhos chamejam. Ouvi seus relinchos. Admirai aqueles saltos, aquelas curvetas, aquelas orelhas em pé, aquela boca que Se abre com ligeiras convulsões, aquelas narinas aflantes bafejando inflamadamente, aquelas crinas que se empinam e esvoaçam, o movimento imperioso com que se lança sobre o objeto que lhe destinou a natureza.
Mas não os invejeis. Pensai nas vantagens da espécie humana. Que contrabalançam força, beleza, ligeireza, impetuosidade todos os predicados de que a natureza dotou os irracionais.
Há animais que não conhecem o gozo. Carecem desse prazer os peixes escamados. A fêmea lança sobre a vasa milhões de ovas e o macho que as encontra fecunda-as com o sêmen sem preocupar-se com a dona.
A maioria dos animais que se acasalam não experimenta prazer por mais que um único sentido. Satisfeito o apetite está tudo acabado. Nenhum animal senão vós conhece os afagos. Todo o vosso corpo é sensível. Vossos lábios sobre tudo experimentam uma volúpia inexaurível – prazer exclusivo da vossa espécie. Enfim podeis amar em qualquer tempo, enquanto os animais só o podem em épocas determinadas. Se refletirdes nestas preeminências direis com, o conde de Rochester: “O amor, em um país de ateus, faria adorar a Divindade”
Como recebeu o dom de aperfeiçoar tudo o que lhe concedeu a natureza, o homem aperfeiçoou o amor. A higiene, o cuidado com o próprio corpo, tornando a pele mais delicada, aumentam o prazer do tato. O zelo da própria saúde faz mais sensíveis os órgãos da volúpia.
Todos os outros sentimentos de presto se amalgamam com o amor como metais em fusão com o ouro.
Vêem reforçá-lo a amizade, a estima. São outros elos de união os dotes do corpo e do espírito.

Nam facit ipsa suis interdum famina factis,
morigerisque modis, et mundo corpore cultu,
ut facile insuescat secum vir degere vitam.
(Lucrécio, liv. 4).

Principalmente o amor próprio estreita esses liames. Palmeamo-nos a própria escolha, e as ilusões em chusma são ornamentos dessa obra de que a natureza lançou os alicerces.
Eis o que possuís de superior aos animais. Se, porém, fruís prazeres que eles desconhecem, também quantos sofrimentos padeceis de que eles nem têm idéia! O que há de horrível para vós é haver a natureza em três quartos da terra envenenado os prazeres do amor e as fontes da vida com um mal tremendo, a que só o homem está sujeito e que lhe infecciona os órgãos da geração.
Esta peste não é como tantas outras doenças filhas de nossos excessos. Não foi a dissolução que a introduziu no mundo. As Frinéias, as Laíses, as Floras, as Messalinas não foram vítimas dela. Nasceu em ilhas onde os homens viviam na inocência e de lá propagou pelo mundo antigo.
Se alguma vez se pôde acusar a natureza de desamar a própria obra, de contradizer o próprio plano, de tramar contra os próprios fins, foi então. Não tínhamos o melhor dos mundos possíveis? Se César, Antônio, Otávio não foram vítimas desse mal, por que o foi Francisco I? Não, direis, tudo foi disposto da melhor forma possível. Quero crer. Mas é difícil.


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AMOR PRÓPRIO
Um mendigo dos arredores de Madri esmolava nobremente. Disse-lhe um transeunte:
— O sr. não tem vergonha de se dedicar a mister tão infame, quando podia trabalhar?
— Senhor, – respondeu o pedinte – estou lhe pedindo dinheiro e não conselhos. – E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas.
Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo não suportava reprimendas.
Viajando pela Índia, topou um missionário com um faquir carregado de cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e deixando-se chicotear em resgate dos pecados de seus patrícios hindus, que lhe davam algumas moedas do país.
— Que renúncia de si próprio! – dizia um dos espectadores.
— Renúncia de mim próprio? – retorquiu o faquir. – Ficai sabendo que não me deixo açoitar neste mundo senão para vos retribuir no outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro.
Tiveram pois plena razão os que disseram ser o amor de nós mesmos a base de todos as nossas ações – na Índia, na Espanha como em toda a terra habitável.
Supérfluo é provar aos homens que têm rosto. Supérfluo também seria demonstrar-lhes possuírem amor próprio. O amor próprio é o instrumento da nossa conservação. Assemelha-se ao instrumento da perpetuação da espécie. Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos – E cumpre ocultá-lo.


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AMOR SOCRÁTICO
Por que motivo um vício que se fosse geral extinguiria o gênero humano, atentado infame à natureza, é contudo tão natural ? Parece o último degrau da corrupção refletida – Entanto manieta de cotio adolescentes que nem sequer tiveram tempo de ser corrompidos. Entra corações tenros que não conhecem nem a ambição, nem a fraude, nem a sede de riqueza. É a juventude cega que, por instinto mal definido, se precipita na depravação apenas dobra a infância.
Bem cedo se manifesta a inclinação recíproca dos sexos. Mas, diga-se o que se disser das mulheres africanas e da Ásia meridional, essa inclinação é geralmente muito mais forte no homem que na mulher. É uma lei que a natureza ditou aos animais. É sempre o macho que ataca a fêmea.
Sentindo essa força que a natureza começa a insuflar-lhes e não encontrando o objeto natural do instinto, atiram-se os jovens machos da nossa espécie sobre o que melhor se lhe semelhe. Não raro, pela frescura da tez, pelo lustre das cores, pela doçura dos olhos, durante dois ou três anos um jovem parece-se a uma rapariga. Se o amamos, é porque a natureza se equivoca. Amamos nele o sexo a que evoca sua beleza. Até que, dissipando-se a semelhança, a natureza se corrige

Citraque juventam
oetatis breve ver et primos carpere flores(3)

Assaz sabido é ser esse equívoco da natureza muito mais comum nos climas suaves que nos gelos do norte. Porque nos climas mais doces o sangue é mais quente e mais freqüente a ocasião. Daí o que não se considera mais que uma fraqueza no jovem Alcibíades ser uma abominação num marinheiro holandês ou num vivandeiro moscovita.
Não posso admitir que, como se pretende, tenham os gregos autorizado semelhante licenciosidade. Cita-se o legislador Sólon por haver dito em dois maus versos:

Algum dia inda amarás
um glabro e belo rapaz.


Mas seria Sólon legislador quando escreveu essa ridícula parelha? Ainda era jovem. E quando o libertino se fez sábio, não iria incluir .tamanha infâmia nas leis da sua república. É como se se acusasse Teodoro de Besis de ter pregado o homossexualismo em sua igreja por haver, na juventude, dedicado versos ao jovem Cândido e dito:

Amplector hunc et illam.

Abusa-se do texto de Plutarco, que, em suas tagarelices no Diálogo do Amor, faz dizer a uma personagem que as mulheres não são dignas do amor verdadeiro. Outra personagem, porém, sustenta devidamente o partido das mulheres.
Certo é, tanto quanto o pode ser a ciência da antigüidade, que o amor socrático não era um amor infame. A palavra amor foi que enganou. O que se chamavam os amantes de um jovem era nem mais nem menos o que são hoje os infantes de companhia dos nossos príncipes, os jovens companheiros de educação de um menino distinto, participando dos mesmos estudos, dos mesmos exercícios militares – instituição guerreira e santa de que se abusou como das festas noturnas e das orgias.
A tropa dos amantes instituída por Laio era um corpo invencível de jovens guerreiros unidos pelo juramento de dar a vida uns pelos outros. Foi o que de mais belo possuiu a disciplina antiga.
Asseveram Sexto Empírico e outros que o homossexualismo tinha guarida nas leis da Pérsia. Que citem o texto da lei. Que mostrem o código dos persas. Mas ainda que o provem eu não acreditarei – Direi que é mentira. Porque não seria possível, não é da natureza humana elaborar uma lei que contradiz e ultraja a natureza. Lei que aniquilaria o gênero humano se fosse literalmente observada. Práticas vergonhosas toleradas pelas leis do país! Sexto Empírico, que duvidava de tudo, devia duvidar dessa jurisprudência. Se vivesse em nossos dias e visse dois ou três jesuítas abusarem de alguns escolares, teria direito de concluir ser tal depravação permitida pelas constituições de Inácio de Loiola?
Era tão comum o amor entre rapazes em Roma que ninguém pensava em puni-lo. Otávio Augusto, esse assassino devasso e poltrão que teve o desplante de exilar Ovídio, achou muito natural que Virgílio cantasse Aleixo e Horácio escrevesse odes a Ligurino. Não obstante, sempre subsistiu a lei Scantínia, preventiva da pederastia. Repô-la em vigor o imperador Filipe, que expulsou de Roma os meninos que se dedicavam ao ofício. Enfim não creio que em tempo algum nação civilizada haja lavrado leis contra os próprios costumes.


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ANJO
Enviado em grego. Baldio será acrescentar que os persas tinham peris, os hebreu malakhs, os gregos seus daimones. Mas talvez nos aclare saber que uma das primeiras idéias do homem foi interpor seres intermediários entre a Divindade e nós. São os demônios, os gênios ideados pela antigüidade. O homem sempre criou os deuses à sua imagem. Viam-se os príncipes transmitir suas ordens por mensageiros: então a Divindade também tinha seus correios. Mercúrio, Isis, eram mensageiros, arautos.
Os hebreus – povo conduzido pela própria Divindade – a princípio não deram nomes aos anjos que por fim Deus condescendia em enviar-lhes. Tomaram de empréstimo os nomes que lhes davam os caldeus, quando a nação judaica esteve cativa em Babilônia. Miguel e Gabriel são referidos pela primeira vez por Daniel, escravo entre aqueles povos. O judeu Tobias, que vivia em Nínive, conheceu o anjo Rafael, que viajou com seu filho para ajudá-lo a reaver certa soma que lhe devia o judeu Gabael.
Não se faz nas leis dos judeus, isto é, o Levítico e o Deuteronômio, a menor menção à existência dos anjos. Muito menos ao seu culto. Tão pouco criam em anjos os saduceus.
Nas histórias judaicas, porém, os anjos são a basto falados. Eram corporais e tinham asas nas costas, como imaginaram os antigos que tivesse Mercúrio nos calcanhares – Às vezes escondiam-nas sob as vestes. Como não teriam corpo se bebiam e comiam? Se os habitantes de Sodoma quiseram cometer o pecado da pederastia com os anjos que foram à casa de Ló?
Segundo Ben Memon, admitia a antiga tradição judaica dez graus, dez ordens de anjos – Primeira: cheios acodesh – puros, santos. Segunda: ofamim – rápidos Terceira: oralim – fortes. Quarta: chasmalim – flamas. Quinta: seraphim – centelhas. Sexta: malakhim – mensageiros, deputados. Sétima: eloim – deuses ou juizes. Oitava: ben eloim – filhos dos deuses. Nona: cherubim – imagens. Décima: ychim – animados.
Não consta nos livros de Moisés a história da queda dos anjos. Seu primeiro testemunho dá-no-lo o profeta Isaías, que, apostrofando o rei, exclama: “Que é feito do exator das tribos? Os pinheiros e cedros regozijam-se com sua queda. Como caíste do céu, ó Helel, estrela da manhã?” (4). Traduziu-se Helel pela palavra latina Lúcifer. Depois, em sentido alegórico, deu-se o nome de Lúcifer ao príncipe dos anjos que atiçaram a guerra no céu. Finalmente o termo, que significa fósforo e aurora, tornou-se nome do diabo.
A religião cristã funda-se na queda dos anjos. Os que se revoltaram foram precipitados das esferas que habitavam ao inferno, no centro da terra, e transmudaram-se em diabos. Um diabo transfigurado em serpente tentou Eva e desgraçou o gênero humano. Jesus veio resgatar os homens e vencer o diabo, que ainda nos tenta. Essa tradição fundamental, contudo, só a refere o livro apócrifo de Enoque. E ainda assim muito outra da tradição aceita.
Não trepida Santo Agostinho (carta centésima nona) em reportar tanto aos anjos bons como aos anjos maus corpos livres e ágeis. Reduziu o papa Gregório II a nove coros, nove hierarquias ou ordens os dez coros de anjos admitidos pelos judeus. São eles: serafins, querubins, tronos, dominações, virtudes, potências, arcanjos e finalmente os anjos, que emprestam o nome às oito outras hierarquias.
Tinham os judeus no templo dois querubins, cada um com duas cabeças – uma de boi e outra de águia – e seis asas. Representamo-los hoje sob a forma de uma cabeça solta com duas asinhas abaixo das orelhas.
Pintamos os anjos e os arcanjos sob a figura de jovens com um par de asas nas costas. Quanto a tronos e dominações, ainda ninguém se lembrou de retratá-los.
Diz Sto. Tomás (questão centésima oitava, artigo 2o.) estarem os tronos tão próximos de Deus quanto os serafins, pois é sobre eles que se acha sentada a Divindade. Scot contou um bilhão de anjos. Tendo o antigo mito dos gênios bons e maus passado do Oriente à Grécia e Roma, consagramo-lo admitindo para cada pessoa um anjo bom e outro mau. Um ajuda-a e o outro molesta-a do nascimento, à morte. Ainda não se estabeleceu, contudo, se esses anjos bons e maus mudam continuamente de posto ou são rendidos por outros. Consulte-se sobre o ponto a Suma de Sto. Tomás
Outro ponto que tem dado pano a muita controvérsia é o lugar onde se conjuntariam, os anjos – no ar, no vácuo ou nos astros? Não aprouve a Deus pôr-nos a par dessas questões.


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ANTROPÓFAGOS
Falamos do amor. É duro passar de pessoas que se beijam a pessoas que se comem. Não resta dúvida terem existido antropófagos. Encontramo-los na América, onde é possível que ainda os haja. Na antigüidade não foram os ciclopes os únicos a se alimentarem às vezes de carne humana. Conta Juvenal que entre os egípcios – esse povo tão sábio, tão famigerado por suas leis, esse povo tão piedoso que adorava crocodilos e cebolas – os tentiritas comeram certa vez um inimigo que lhes caiu nas mãos. Não o diz de outiva: estava no Egito, porto de Têntiro, quando se cometeu o crime quase aos seus olhos. E lembra, ao relatar o caso, os gascões e saguntinos, que outrora se alimentaram de carne dos próprios compatriotas.
Em 1725 trouxeram-se quatro selvagens do Mississipi a Fontainebleau – Tive a honra de falar-lhes. Havia entre eles uma dama do país, a quem perguntei se havia comido gente. Respondeu-me muito singelamente que sim. Fiquei um tanto escandalizado, e ela desculpou-se dizendo ser preferível comer o inimigo, depois de morto, a deixá-lo servir de pasto às feras; que demais o vencedor merecia a preferência. Nós outros, em batalha campal ou não, por fas ou por nefas matamos nossos vizinhos e. pela mais vil recompensa pomos em função o engenho da morte. Aqui é que está o horror. Aqui é que está o crime – Que importa que depois de morto se seja comido por um soldado, por um urubu ou por um cão?
Respeitamos mais os mortos que os vivos. Cumpria respeitar uns e outros. Bem fazem as nações que chamamos civilizadas em não meter no espeto os inimigos vencidos. Porque se fosse permitido comer os vizinhos, começariam a comer-se entre si os próprios compatriotas, o que seria grande desdouro para as virtudes sociais. Mas as nações que hoje são civilizadas não o foram sempre. Todas elas foram muito tempo selvagens. E com o sem número de revoluções de que tem sido palco o mundo, o gênero humano foi ora mais ora menos numeroso. Sucedeu com os homens o que hoje sucede com os elefantes, leões, tigres, cujas espécies minoraram consideravelmente. Quando uma região estava ainda escassamente povoada de seres humanos e as artes eram rudimentares, os homens se dedicavam à caça. O hábito de se alimentarem do que matavam facilmente levou-os a tratar os inimigos como tratavam os cervos e javalis. A superstição fez imolar vítimas humanas. A necessidade as fez comer.
Qual o crime maior: reunir-se religiosamente para cravar em honra da Divindade uma faca no coração de uma menina enfitada, ou comer um bandido morto em legítima defesa?
No entanto há muito mais exemplos de meninas e meninos sacrificados que de meninas e meninos comidos. Quase todas as nações conhecidas sacrificaram crianças. Os judeus imolavam-nas. É o que se chamava o anátema um verdadeiro sacrifício. Ordena-se no capítulo 27 do Levítico não se pouparem as almas viventes prometidas, porém em ponto algum se prescreve que sejam comidas. Isto era outro caso: tratava-se exclusivamente de uma ameaça. Como vimos, disse Moisés aos judeus que caso não observassem as cerimônias, não só teriam ronha, como as mães comeriam os próprios filhos. Positivamente no tempo de Ezequiel os judeus deviam comer carne humana, pois diz esse profeta no capítulo 39 que Deus os faria comer não apenas os cavalos dos seus inimigos, mas ainda os cavaleiros e os outros guerreiros. É positivo. De fato, por que não teriam os judeus sido antropófagos? Seria a última coisa a faltar ao povo de Deus para ser a mais abominável nação da terra.
Li nas anedotas da história da Inglaterra do tempo de Cromwell que uma sebeira de Dublin vendia excelentes candeias feitas com gordura de inglês. Certa vez queixou-se-lhe um de seus fregueses de que as candeias já não eram tão boas como antes. – Ah, – disse ela – é que este mês faltaram ingleses. – Pergunto eu: quem o mais culpado: quem passava os ingleses à faca ou a mulher que fazia velas com sua banha?


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APIS
Era o boi Apis adorado em Menfis como deus, como símbolo ou como boi? É de crer que os fanáticos nele vissem um deus, os cultos mero símbolo e que o vulgo ignorante adorasse o boi. Terá Cambises feito bem, quando conquistou o Egito, em matar esse boi com as próprias mãos? Por que não? Com isso fez ver aos imbecis que se podia passar seu deus à faca sem que a natureza se armasse para vingar o sacrilégio.
Incensaram-se muito os egípcios. Não sei de povo mais desprezível. Encarrapatou-se-lhes sempre no caráter e no governo um vício radical que os fez um povo de eternos e vis escravos. Que tenham, em épocas imemoriais, conquistado a terra. Na clareira dos tempos históricos, porém, avassalaram-nos quantos povos quiseram dar-se ao trabalho – assírios, persas, gregos, romanos, árabes, mamelucos, turcos, enfim, toda gente, salvo os cruzados, que não lhes conheciam a fraqueza. Foi a milícia dos mamelucos que venceu os franceses. Não há talvez mais que duas coisas sofríveis nessa nação: primeiro, que adorando um boi nunca constrangeram quem adorasse um macaco a mudar de religião; segundo, terem inventado a chocadeira artificial.
Gabam-se-lhes as pirâmides. Mas as pirâmides são monumentos de um povo de escravos. Foi preciso pôr de baixo de canga toda uma nação, sem o que essas vis massas não teriam sido levantadas. Que finalidade tinham? Conservar em uma pequena câmara a múmia de algum príncipe, de algum governador, de um intendente qualquer, porque ao cabo de mil anos sua alma devia reanimá-la. Mas se esperavam a ressurreição dos corpos, por que lhes extraiam os miolos antes de embalsamá-los? Será que os egípcios deviam ressuscitar sem cérebro?


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APOCALIPSE
Justino o Mártir, que escreveu pelo ano de 170(5) da nossa era, é quem primeiro fala no Apocalipse. Perfilha-o ao apóstolo João o Evangelista. Perguntando-lhe o judeu Trifão se não cria que Jerusalém devesse ser algum dia restaurada, respondeu Justino que sim, como o acreditavam todos os cristãos que pensavam com acerto. “Houve entre nós” – diz – “uma personagem de nome João, um dos doze apóstolos de Jesus, o qual predisse passarão os fiéis mil anos em Jerusalém”.
Foi opinião por muito tempo aceita pelos cristãos a de um reinado de mil anos. Esse período desfrutava de grande crédito entre os gentios. Passados mil anos retomavam os corpos as almas entre os egípcios. O mesmo espaço de tempo, et mille per annos, penavam as almas no purgatório de Virgílio. A nova Jerusalém de mil anos teria doze portas, em memória dos doze apóstolos. A forma seria quadrada. Comprimento, largura e altura seriam de doze mil estádios – quinhentas léguas – de maneira que as casas teriam também quinhentas léguas de alto. Haveria de ser bem desagradável morar no último andar. Mas enfim é o que diz o Apocalipse, capítulo 21.
Se foi Justino o primeiro em atribuir o Apocalipse a S. João, personalidades houve que lhe refugaram o testemunho, atendendo a que no mesmo diálogo com o judeu Trifão diz ele que, consoante o relato dos apóstolos, Jesus Cristo, descendo ao Jordão, ferveu-lhe e inflamou-lhe as águas. O que não consta em nenhum dos escritos dos apóstolos.
O mesmo S. Justino não hesita em citar os oráculos das sibilas. E pretende ter visto restos das celas em que, no tempo de Herodes, foram encerrados no farol de Alexandria os setenta e dois intérpretes. O testemunho de um homem que teve a má fortuna de ver tais celas parece indicar mas é que devia ser metido nelas.
Posteriormente Sto. Ireneu, que também acreditava no reinado de mil anos, diz ter sabido de um velho que o Apocalipse era de autoria de S. João(6). Mas já se reprochou a Sto. Ireneu o haver escrito não deverem existir senão quatro Evangelhos pela só razão de ter o mundo apenas quatro partes, quatro serem os ventos cardeais e não ter Ezequiel visto mais que quatro animais. Chama ele a isso demonstração. Em singularidade, a demonstração do ar. Ireneu não fica atrás da visão do sr. Justino.
Clemente de Alexandria, nas Electa, só se refere a um Apocalipse de S. Pedro, a que se reportava extraordinária monta. Tertuliano, partidário ferrenho do reinado de mil anos, não se contenta em afirmar que S. João predisse a ressurreição e o reinado milenário na cidade de Jerusalém: quer também que esta Jerusalém já se começava a formar no ar; que todos os cristãos da Palestina, e até os pagãos, a tinham visto durante quarenta dias sucessivos às últimas horas da noite. Infelizmente, porém, mal despontava o dia a cidade se esvaecia.
Em seu prefácio sobre o Evangelho de S. João e nas Homilias, cita Orígenes os oráculos do Apocalipse, mas igualmente cita os oráculos das sibilas. Já S. Dinis de Alexandria, que escreveu por meados do século III, diz em um de seus fragmentos conservados por Eusébio (7) que a quase totalidade dos eruditos rejeitava por uma boca o Apocalipse como livro destituído de razão. Que esse livro não o escreveu S. João, e sim um tal Cerinto, que se servira de um grande nome para dar mais peso a suas fantasias
O concílio de Laodicéia (360) não recenseou o Apocalipse entre os livros canônicos. Singular é haver Laodicéia repulsado um tesouro que lhe fora enviado expressamente, e que também o refutasse o bispo de Éfeso, cidade em que se descobrira, enterrado, esse livro de S. João.
Para todos S. João ainda padejava na sepultura, fazendo a terra levantar e baixar continuamente. Entanto esses mesmos senhores certos de que S. João não estava de todo morto, também estavam certos de que ele não escrevera o Apocalipse. Os advogados do reinado de mil anos, não obstante, mantiveram-se irremovíveis em sua opinião. Sulpício Severo (História Sagrada, livro 9) chama insensatos e ímpios aos que não acatavam o Apocalipse. Afinal, depois de muita dúvida, muita oposição de concílio a concílio prevaleceu o parecer de Sulpício Severo. Deslindado o mistério, decidiu a igreja ser o Apocalipse incontestavelmente de S. João. Não há, pois, apelar.
Atribuíram as comunhões religiosas cada qual a si as profecias desse livro. Nele viram os ingleses as revoluções da Grã Bretanha. Os luteranos, as convulsões da Alemanha. Os reformados da França, o reinado de Carlos IX e a regência de Catarina de Médicis. Todos tiveram igualmente razão.
Bossuet e Newton comentaram o Apocalipse. As declamações eloqüentes de um e as sublimes descobertas de outro foram-lhes, todavia, muito mais honrosas que seus comentários.


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ATEU, ATEÍSMO
Antigamente, quem quer que tivesse um segredo numa arte corria o risco de passar por bruxo. Toda seita nova era acusada de degolar crianças em seus mistérios. Todo filósofo que se desgarrasse da jíria da escola era criminado de ateísmo pelos fanáticos e espertalhões. E condenado pelos cretinos.
Anaxágoras tem o atrevimento de pretender não ser o sol conduzido por Apolo montado numa quadriga: chamam-lhe ateu e o obrigam a expatriar-se.
Aristóteles é culpado de ateísmo por um sacerdote. Não podendo fazer punir o caluniador, retira-se para Calcis. Mas a morte de Sócrates é o que de mais odioso tem a história da Grécia
Quem primeiro induziu os atenienses a verem um ateu em Sócrates foi Aristófanes, que os comentadores admiram por ter sido grego, esquecendo-lhes que Sócrates também o era.
Esse poeta cômico, que não foi nem cômico nem poeta, não seria admitido entre nós a representar farsas na feira de Saint-Laurent. Parece-me muito mais vil e desprezível do que o despinta Plutarco. Eis o que diz o sábio Plutarco de tal farsista: “A linguagem de Aristófanes denuncia o miserável charlatão que é. São as graçolas mais canalhas e repugnantes. Não chega a agradar o povo e as pessoas de discernimento e pundonor não o toleram. Não há quem suporte sua arrogância, e sua malignidade é intolerável às pessoas de bem” (8).
Aí está – para dizê-lo de passo – o Tabarin que a sra. Dacier tem o ousio de admirar. Eis o homem que de longe confeccionou o veneno com que juizes infames assassinaram o homem mais virtuoso da Grécia.
Curtidores, sapateiros e costureirinhas de Atenas aplaudiram uma comédia em que se representava Sócrates suspenso num cesto proclamando que não existiam deuses e jactando-se de haver roubado uma capa enquanto ensinava filosofia. Um povo cujo mau governo permitia tão infames licenças bem merecia o fim que teve – ser vassalo dos romanos e hoje dos turcos.
Demos um salto à antigüidade. Detenhamo-nos na república romana. Os romanos, muito mais sábios que os gregos, nunca perseguiram filósofos por motivo de opiniões. A mesma isenção não exalça os povos bárbaros que medraram por sobre os destroços do império romano. Desde que o imperador Frederico II questiona com o papa, que o acusam de ateísmo e de ter escrito com seu chanceler de Vinéia o livro Dos Três Impostores.
Manifesta-se o nosso grande chanceler do Hospital contrário às perseguições: é quanto basta para levar a tacha de ateu. Homo doctus, sed verus atheos. Um jesuíta que se acha tão abaixo de Aristófanes quanto Aristófanes o está de Homero, um miserável cujo nome se tornou ridículo entre os próprios fanáticos, em uma palavra, o jesuíta Garasse, em toda gente vê ateístas. É assim que chama a todos aqueles contra quem investe. De ateísta acoima ele Teodoro de Besis. Foi ele quem induziu em erro a respeito de Vanini.
O desgraçado fim de Vanini não nos move a indignação nem a piedade como o de Sócrates porque Vanini não passava de um pedante estrangeiro sem mérito nenhum. Mas a verdade é que não era ateu, como se pensava. Muito pelo contrário
Tratava-se de um pobre padre napolitano, pregador e teólogo de seu mister, polemista apaixonado das qüididades e dos universais, et utrum chimera bombinans in vacuo possit comedere secundas intentiones. Não tinha, porém, a veia do ateísmo. Sua noção de Deus era da mais sã e acatada teologia. “Deus é o princípio e o fim, pai de um e de outro, prescindindo de um e de outro. Eterno sem estar no tempo. Onipresente sem se achar em parte alguma. Não tem passado nem futuro. Está em tudo e fora de tudo, tudo governando, tudo havendo criado – Imutável, infinito, imparticular. Seu poder é sua vontade, etc.”
Vangloriava-se Vanini de renovar este belo conceito de Platão abraçado por Averrois: que Deus criou uma cadeia graduada de seres cujo último anel se ata ao seu trono eterno. Idéia em verdade mais sublime que veraz, mas tão distante do ateísmo quanto o ser do não ser.
Viajou com o fito em dinheiro e polêmicas – infelizmente, porém, a senda da disputa conduz a polo contrário ao da riqueza. Granjeiam-se tantos inimigos irreconciliáveis quantos os sábios ou pedantes com quem se terça a palavra. Nem foi outra a origem da desdita de Vanini – Custaram-lhe seu calor e grosseria na discussão o ódio de não poucos teólogos, um dos quais – Francon ou Franconi, amigo de seus inimigos – o acusou de ateu e de pregar o ateísmo.
Teve esse Francon ou Franconi, esteado por algumas testemunhas, a barbárie de sustentar na acareação o que tivera o descaramento de falsear. Interrogado no banco dos réus acerca do que pensava de Deus, respondeu Vanini adorar com a igreja um Deus em três pessoas. Tomando uma palha do chão: “Basta isto” – disse “para provar que existe um criador”. Pronunciou então magnífico discurso sobre a vegetação e o movimento e sobre a necessidade de um Ser Supremo, sem o qual não existiria nem movimento nem vegetação.
O presidente Grammont, que então se achava em Tolosa, transcreve esse discurso na sua Histoire de France, hoje tão esquecida. Por inconceptível prejuízo pretende o mesmo Grammont que Vanini dissesse tudo isso mais por vaidade ou medo que por persuasão interior
A que arrimar o julgamento temerário e atroz do presidente Grammont? Patente é que a resposta de Vanini o absolvia da criminação de ateísmo. Que sucedeu, porém! Esse caipora abeberara-se também de medicina. Encontraram em sua casa um sapo que ele conservava vivo em um vaso com água: foi a conta para ser tachado de feiticeiro. Disseram que o sapo era o seu deus. Emprestaram sentido ímpio a diversos passos de seus livros – o que é facílimo e muito comum – tomando objeções por respostas, interpretando com malícia uma ou outra frase equívoca, envenenando expressões inocentes. Por fim a facção que o perseguia extorquiu dos juizes a sentença que o condenou à morte.
Para justificar tal crime, havia-se mister fazer pesarem sobre esse infeliz as calúnias mais medonhas. O menor e muito menor Mersenne levou a demência a ponto de imprimir que Vanini partira de Nápoles com doze apóstolos para converter o mundo ao ateísmo. Santa ingenuidade. Como poderia ter um pobre padre doze homens a seu dispor? Como poderia convencer doze napolitanos a viajarem dispendiosamente para propagar aos quatro ventos uma doutrina abominável e revoltante – com risco de vida? Seria um rei bastante poderoso para pagar doze pregadores de ateísmo? Ninguém, antes de Mersenne, aventurara semelhante absurdo. Depois dele, porém, toda gente se pôs a estribilhá-lo, com ele envenenando jornais e dicionários históricos – E o mundo, que gosta do extraordinário, aceitou à carga cerrada essa fábula.
O próprio Bayle, nas suas Pensées Diverses, fala de Vanini como de um ateu – Serve-se desse exemplo para estribar seu paradoxo de poder subsistir uma sociedade de ateus; afirma que Vanini era um homem de costumes rigorosamente regrados, e ter sido o mártir de sua opinião filosófica. Engana-se tanto num ponto como noutro. Depreende-se dos Dialogues de Vanini, escritos à imitação de Erasmo, ter ele tido uma amante de nome Isabelle. Era livre no escrever como no viver. Porém não ateu.
Um século após sua morte o sábio La Croze e aquele que adotou o nome de Philalèthe (9) empreenderam justificá-lo. Mas como ninguém se interessa pela memória de um infeliz napolitano, que para agravo de seus pecados era péssimo escritor, passaram quase despercebidas essas apologias.
O jesuíta Hardouin, mais culto que Garasse e não menos temerário, denuncia como ateus no livro Athei Detecti os Descartes, Arnauld, Pascal, Nicole e Malebranche. Que, porém, felizmente não tiveram a mesma sorte que Vanini.
Mas voltemos à questão de moral aventada por Bayle: se seria possível uma sociedade de ateus. Sublinhemos à primeira ser grande a contradição em torno do problema. Os que mais indignadamente se levantaram contra a opinião de Bayle, os que com maior carga de injúrias lhe desmentiram a possibilidade de uma sociedade de ateus, com o mesmo aferro sustentaram mais tarde ser o ateísmo a religião do governo da China.
Positivamente enganaram-se no que respeita ao governo chinês. Se houvessem lido os éditos desse vasto país teriam visto não serem outra coisa senão sermões, sermões repletos de referências ao Ser Supremo, guia, vingador e premiador.
Não se enganaram menos quanto à impossibilidade de uma sociedade atéia. E não sei como pôde o sr. Bayle esquecer um exemplo conclusivo que talvez valesse a vitória a sua causa.
Por que impossível uma sociedade atéia? Porque sem um freio os homens não poderiam viver em harmonia? Por nada poderem as leis contra os crimes secretos? Por ser preciso um Deus vingador que puna, neste ou em outro mundo, os malfeitores escapos à justiça humana!
Ilusão. Os judeus, muito embora não ensinassem as leis de Moisés nenhuma vida por vir, não ameaçassem castigos depois da morte, não ensinassem aos primeiros judeus a imortalidade da alma, os judeus, longe de ser ateus, longe de contar subtrair-se à vingança divina, foram os mais religiosos dos homens. Não somente criam na existência de um Deus eterno, como o acreditavam constantemente em sua presença. Temiam ser castigados na pessoa de si mesmos, da mulher, dos filhos, na posteridade, até a quarta geração. E esse freio era poderosíssimo.
Entre os gentios, porém, muitas seitas houve desempeçadas de quaisquer ferropéias. Os cépticos duvidavam de tudo – De tudo inopinavam os acadêmicos. Estavam persuadidos os epicuristas de que a divindade não metia a colher torta nos negócios dos homens, e em verdade não admitiam deuses de espécie alguma. Abrigavam a convicção de não ser a alma de natureza substancial, mas rasamente uma faculdade que nasce e morre com o corpo. Não tinham, por conseguinte, outras rédeas além da moral e da honra. Verdadeiros ateus eram os senadores e cavaleiros romanos. Para quem não os temem e deles nada esperam os deuses não existem – Era pois o senado romano um congresso de ateus contemporâneos de César e Cícero.
Na oração pró Cluêncio diz o grande orador ao senado reunido: “Que mal lhe pode trazer a morte? Nós impugnamos todas as fábulas ineptas dos infernos. Que então lhe tirou a morte? Nada mais que a sensação da dor”.
Querendo salvar a vida de seu amigo Catilina perante o mesmo Cícero, não lhe objeta César que condenar à morte não é punir, que a morte não é nada, senão apenas o fim dos sofrimentos, momento mais feliz do que fatal? E não reconheceram Cícero e todo o senado a justeza de tais razões? Não há negá-lo. Vencedores e legisladores do mundo conhecido formavam uma sociedade de homens destemerosos dos deuses – verdadeiros ateus, portanto.
Pondera Bayle a seguir se não é a idolatria mais perigosa que o ateísmo, se crime maior não será nutrir sobre a divindade conceitos indignos que dela descrer. E opina com Plutarco ser preferível não ter de Deus concepção nenhuma a te-la má – Em que pese a Plutarco, porém, inegável é ter sido infinitamente preferível para os gregos temer Ceres, Netuno, Júpiter, a não temer coisa alguma. Irrecusavelmente é necessária a santidade dos juramentos, e antes fiar-se em quem creia que um falso juramento será punido do que em quem pense poder jurar falso impunemente. Não há dúvida ser preferível, em uma cidade policiada, ter uma religião ainda que má a não ter nenhuma.
Parece-me que Bayle devia antes examinar qual o mais nocivo, se o fanatismo, se o ateísmo. O fanatismo é certamente mil vezes mais funesto, porquanto o ateísmo não inspira, como ele, paixão sanguinária. O ateísmo não se opõe ao crime: o fanatismo o atiça. Suponhamos com o autor do Commentarium Rerum Gallicarum fosse ateu o chanceler do Hospital. Não elaborou ele senão leis sábias, não aconselhou senão moderação e concórdia: os fanáticos cometeram as mortandades de São Bartolomeu. Havia-se Hobbes por ateu: entanto viveu tranqüila e inocentemente. Os fanáticos de seu tempo ensanguentaram a Inglaterra, Escócia e Irlanda. Spinoza, sobre ser ateu, ensinava o ateísmo: parece contudo não ter sido ele quem participou do assassínio jurídico de Barneveldt, quem fez em traçalhos os irmãos de Witt e os comeu à grelha.
O mais das vezes são os ateus sábios audazes e tresmalhados que raciocinam mal e que, não compreendendo a criação, a origem do mal e outras dificuldades, recorrem à hipótese da eternidade das coisas e da necessidade.
Aos ambiciosos, aos voluptuosos, falta-lhes tempo para raciocinar e abraçar maus sistemas. Têm mais que fazer que comparar Lucrécio com Sócrates –
É o que sucede conosco.
O mesmo não se dava com o senado romano, composto na quase totalidade de ateus que ateus eram teórica e praticamente. Isto é: que não acreditavam nem na Providência nem na vida futura. Era uma congregação de filósofos, de voluptuosos e ambiciosos, todos nocentissimos e que perderam a república.
Não me agradaria o depender de um príncipe ateu cujo interesse fosse mandar-me pilar num morteiro. Não quereria, se fosse soberano, ter de tratar com cortesãos ateus cujo interesse fosse envenenar-me: ser-me-ia necessário estar tomando ao acaso contravenenos todos os dias. É pois absolutamente imprescindível aos príncipes e aos povos o estar profundamente gravada nos espíritos a idéia de um Ser Supremo, criador, condutor, remunerador e vingador.
Há povos ateus, assevera Bayle em suas Pensées sur les Comètes. Os cafres, hotentotes, tupinambás e muitas outras pequenas nações não têm Deus. É possível. Mas isso não quer dizer que neguem Deus não o negam nem o afirmam, porque nunca ouviram falar em tal. Dizei-lhes que Deus existe, e cre-lo-ão facilmente. Dizei-lhes que tudo se faz pela natureza das coisas, e cre-lo-âo da mesma forma – Pretender que sejam ateus é o mesmo que pretender que sejam anticartesistas: não são nem contra nem a favor de Descartes. São verdadeiras crianças. Uma criança não é atéia nem teista: não é nada.
Que concluir de tudo isso? Que o ateísmo é um monstro perniciosíssimo para os que governam, e igualmente para os estadistas em disposição, ainda que cidadãos inocentes, pois podem um dia ou outro ser elevados à boléia do poder. Que, se não é tão funesto como o fanatismo, é quase sempre fatal à virtude. Ajuntemos principalmente que hoje em dia há menos ateus que nunca, depois que os filósofos reconheceram não haver nenhum ser vegetante sem germe, nenhum germe sem desígnio etc., e que o trigo não nasce da podridão.
Geômetras não filosóficos enjeitaram as causas finais, porém os verdadeiros filósofos as admitem. E, como disse um autor conhecido, o catequista anuncia Deus às crianças e Newton o demonstra aos sábios.


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BATISMO
Palavra grega que quer dizer imersão.
Como sempre se guiam pelos sentidos, facilmente imaginaram os homens que quem lavasse o corpo também lavava a alma. Havia nos subterrâneos dos templos egípcios grandes cubas para os sacerdotes e iniciados. Desde tempos imemoriais que os hindus se purificaram nas águas do Ganges, e ainda hoje essa cerimônia está muito em voga. Da Índia passou à Judéia. Era costume entre os hebreus batizar todos os estrangeiros que abraçassem a lei judaica e não quisessem submeter-se à circuncisão. Sobre tudo batizavam-se as mulheres, que não faziam essa operação, salvo na Etiópia, onde a circuncisão era de lei. Tratava-se de uma regeneração. Criam os hebreus, como os egípcios, que o batismo dava alma nova. Consultem-se sobre o assunto Epifânio, Memonide e la Gemara.
João batizou-se no rio Jordão. Ali também ele batizou Jesus, que, conquanto nunca haja batizado ninguém, condescendeu todavia em consagrar essa cerimônia
Em si, todos os sinais são indiferentes. Confere Deus sua graça ao sinal que lhe aprouver escolher. Bem cedo tornou-se o batismo em primeiro rito e chancela da religião cristã. Contudo, embora fossem circuncidados, não se sabe ao certo se receberam o batismo os quinze primeiros bispos de Jerusalém
Muito se abusou desse sacramento nos primeiros séculos do cristianismo. Nada era mais comum que aguardar a agonia para receber o batismo. É assaz ilustrativo o exemplo do imperador Constantino. Eis como raciocinava: O batismo de tudo expurga; portanto posso matar minha mulher, meus filhos, todos os meus parentes; depois batizo-me e irei para o céu – O que efetivamente levou a prática. O exemplo era perigosíssimo. Paulatinamente foi se abolindo o vezo de esperar a morte para tomar o banho sagrado.
Sempre conservaram os gregos o batismo por imersão. Pelo fim do século VIII os latinos, havendo estendido sua religião às Gálias e à Germânia, receosos de que a imersão pudesse matar as crianças nos países frios, substituíram-na por simples aspersão, o que lhes custou numerosos anátemas de parte da igreja grega.
Perguntou-se a S. Cipriano se estavam realmente batizadas as pessoas que, em vez de tomarem o banho, eram apenas borrifadas. Respondeu ele (septuagésima sexta carta) que “achavam muitas igrejas não serem cristãs tais pessoas; quanto a ele, era de parecer que sim, bem que sua graça fosse infinitamente menor que a das imersas três vezes conforme o uso”.
Entre os cristãos, desde que um indivíduo recebia a imersão estava iniciado. Antes do batismo era simples catecúmeno. Para iniciar-se era de mister apresentar cauções, responsáveis, – a que se dava um nome correspondente a padrinho – a fim de que a igreja se certificasse da fidelidade dos novos cristãos e não fossem divulgados os mistérios. Essa a razão por que nos primeiros séculos fossem os gentios geralmente tão mal instruídos dos mistérios cristãos quanto o eram os cristãos dos mistérios de Isis e de Eleusina.
Assim se expressava Cirilo de Alexandria em seu escrito contra o imperador Juliano: “Falaria do batismo se não temesse que minhas palavras chegassem aos não iniciados”.
Data do século II o costume de batizar crianças. Era natural desejassem os cristãos que seus filhos, que sem esse sacramento seriam condenados às penas eternas, dele fossem apercebidos. Concluiu-se enfim ser necessário ministrá-lo ao fim dos oito primeiros dias de vida por ser essa entre os judeus a idade da circuncisão. Ainda conserva o costume a igreja grega, conquanto no século III o uso a tenha levado a subministrar o batismo à morte.
Quem morria na primeira semana de existência estava condenado, asseveravam os padres da igreja mais rigorosos. No século V, porém, ideou Pedro Crisólogo o limbo, espécie de inferno suavizado, e propriamente lindes do inferno, extramuros infernais, para onde iriam as criancinhas finadas sem batismo, e onde estariam os patriarcas antes da descensão de Jesus Cristo aos infernos. De sorte que desde então prevaleceu a opinião de que Cristo desceu ao limbo e não ao inferno.
Perguntou-se se, nos desertos da Arábia, poderia um cristão ser batizado com areia: respondeu-se que não. Se se poderia batizar com água impura: estabeleceu-se ser conveniente água munda, mas que em última instância servia água barrenta. É fácil ver que toda essa disciplina foi ditada pela prudência dos primeiros pastores.


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BELO, BELEZA
Perguntai a um sapo que é a beleza, o supremo belo, o to kalon. Responder-vos-á ser a sapa com os dois olhos exagerados e redondos encaixados na cabeça minúscula, a boca larga e chata, o ventre amarelo, o dorso pardo. Interrogai um negro da Guiné O belo para ele é – uma pele negra e oleosa, olhos cravados, nariz esborrachado. Indagai ao diabo. Dir-vos-á que o belo é um par de cornos, quatro garras e cauda. Inquiri os filósofos. Responder-vos-ão com aranzéis. Falta-lhes algo de conforme ao arquétipo do belo em essência, o to kalon.
Assistia eu certa vez à representação de uma tragédia em companhia de um filósofo.
— Como é belo! – dizia ele.
— Que viu o sr. de belo?
— O autor atingiu seu fim.
No dia seguinte ele tomou um purgante que lhe fez efeito.
— O purgante atingiu seu fim – disse-lhe eu. – Eis um belo purgante.
Ele compreendeu não se poder dizer que um purgante seja belo, e que para chamar belo a alguma coisa é preciso que nos cause admiração e prazer. Conveio em que a tragédia lhe inspirara estas duas emoções, e que nisso estava o to kalon, o belo.
Realizamos uma viagem à Inglaterra. Lá se representava a mesma peça, impecavelmente traduzida. Fez bocejarem todos os espectadores.
— Oh! – exclamou o filósofo – o to kalon não é o mesmo para os ingleses e os franceses.
Após muita reflexão concluiu ser o belo extremamente relativo, como o que é decente no Japão é indecente em Roma, o que é moda em Paris não o é em Pequim.


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BEM (SUPREMO)
Muito discutiu a antigüidade em torno do supremo bem. Que é o supremo bem? Seria o mesmo que perguntar que é o supremo azul, o supremo acepipe, o supremo andar, o ler supremo, etc.
Cada um põe a felicidade onde pode, e quanto pode ao seu gosto.

Quid dem? quid non dem? Renuis tu quod jubet alter...
Castor gaudet equis; ovo prognatus eodem pugnis...(10).

Sumo bem é o bem que vos deleita a ponto de polarizar-nos toda a sensibilidade, assim como mal supremo é aquele que vos torna completamente insensível. Eis os dois pólos da natureza humana. Esses dois momentos são curtos.
Não existem deleites extremos nem extremos tormentos capazes de durar a vida inteira. Supremo bem e supremo mal são quimeras.
Conhecemos a bela fábula de Crântor, que fez comparecer aos jogos olímpicos a Fortuna, a Volúpia, a Saúde e a Virtude.

Fortuna: – O sumo bem sou eu, pois comigo tudo se obtém.
Volúpia: – Meu é o pomo, porquanto não se aspira à riqueza senão para ter-me a mim.
Saúde: – Sem mim não há volúpia e a riqueza seria inútil.
Virtude: – Acima da riqueza, da volúpia e da saúde estou eu, que embora com ouro, prazeres e saúde pode haver infelicidade, se não há virtude.
Teve o pomo a Virtude.

A fábula é engenhosa, mas não solve o problema absurdo do supremo bem. Virtude não é bem, senão dever. Pertence a plano superior. Nada tem que ver com as sensações dolorosas ou agradáveis. Com cálculos e gota, sem arrimo, sem amigos, privado do necessário, perseguido, agrilhoado por um tirano voluptuoso aboletado no fausto, o homem virtuoso é infelicíssimo, e o perseguidor insolente que acaricia uma nova amante em seu leito de púrpura, felicíssimo. Podeis dizer ser preferível o sábio perseguido ao perseguidor impertinente. Podeis dizer amar a um e detestar ao outro. Mas esquece-vos que le sage dans les fers enrage. Se não concordar o sábio, engana-vos: é um charlatão.


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BEM (TUDO ESTÁ)
Armou-se grande estardalhaço nas escolas e até entre as pessoas que raciocinam quando, parafraseando Platão, lançou Leibnitz seu edifício do melhor dos mundos possíveis, dizendo que tudo corria às mil maravilhas (11). Afirmou ele no norte da Alemanha que Deus não poderia fazer mais que um único mundo. Platão pelo menos concedera-lhe a liberdade de fazer cinco, pela razão de cinco serem os corpos sólidos regulares: tetraedro ou pirâmide trifacial de base igual às faces, cubo, hexaedro, dodecaedro, icosaedro. Mas como o nosso mundo não tem a forma de nenhum dos seus cinco sólidos, devia conceder a Deus uma sexta forma.
Deixemos em paz o divino Platão. Leibnitz, que certamente era melhor geômetra e mais profundo metafísico que ele. prestou ao gênero humano o serviço de lhe fazer ver que devemos estar contentíssimos e ter sido impossível a Deus fazer por nós mais do que fez. Que necessariamente Deus escolhera entre todos os partidos sem contradita o melhor.
— E o pecado original? – perguntavam-lhe.
— Foi o que podia ser – explicavam Leibnitz e seus amigos. Mas praceiramente escrevia ele entrar o pecado original necessariamente no melhor dos mundos.
Ora essa! Ser expulso de um lugar de delícias onde se viveria eternamente se não se tivesse comido uma maçã! Como! Chafurdado na miséria, pôr no mundo filhos miseráveis que tudo hão de sofrer, que tudo farão sofrer aos outros! Que! Padecer todas as doenças, sofrer todos os martírios, morrer na dor, e como refrigério ser assado na eternidade dos séculos! Seria esse o melhor quinhão que tinha Deus para nos dar? Nada tem de bom para nós. E em que poderia tê-lo para Deus?
Compreendia Leibnitz nada ter que responder. Escreveu também maçudos livros, mas calou o ponto.
Negar a existência do mal, pode negá-la rindo um Luculo refestelado na opulência, após lauto jantar libado em companhia dos amigos e da amante no salão de Apolo. Mas que ponha a cabeça à janela. Verá o que é o mundo.
Repugna-me citar. É empresa de ordinário espinhosa: negligencia-se o que precede e o que segue a citação, e se expõe a querelas. Cumpre-me, todavia, citar Lactâncio, padre da igreja, que em seu capítulo 13, Da Cólera de Deus, põe estas palavras na boca de Epicuro: “Ou Deus quer abolir o mal do mundo e não pode; ou pode e não quer; ou nem pode nem quer; ou enfim quer e pode. Se quer e não pode é impotente, o que contradiz a natureza divina; se pode e não quer, é mau, o que não é menos contrário à sua natureza; se não quer nem pode, é a um tempo mau e impotente; se quer e pode (a única conjuntura que convêm a Deus) qual então a origem do mal sobre a terra?”
O argumento é instante. Lactâncio respondeu muito mal, dizendo que Deus quer o mal porém nos deu a sabedoria, com que podemos alcançar o bem. A resposta é fraquíssima. Supõe que Deus não podia dar a sabedoria senão de par com o mal. Demais nós possuímos uma sabedoria agradável!
A origem do mal foi sempre um abismo de que ninguém conseguiu lobrigar o fundo. Daí tantos filósofos e legisladores antigos se socorrerem de dois princípios, um do bem e outro do mal. Tifão era o princípio do mal entre os egípcios, Arimã entre os persas. Adotaram essa teologia, como se sabe, os maniqueus. Como porém anteriormente nunca falaram nem em um nem em outro desses princípios, convêm não lhes dar ouvidos.
Entre os absurdos de que regurgita o mundo, não é dos menores este, que pode entrar no rol dos nossos males: imaginar dois seres todo poderosos duelando-se para ver quem dá mais de si ao mundo, e acordando um convênio como os dois médicos de Molière Passe-me o emético que lhe farei a sangria.
Rasteando os platonistas, pretendeu Basilídio no primeiro século da igreja que Deus acometera a tarefa de forjar o nosso mundo aos últimos de seus anjos, os quais não sendo lá muito peritos desalinhavaram as coisas como aí estão. Refuta tal fábula teológica esta objeção irretorquível: não é de Deus onipotente e onisciente confiar a construção de um mundo a arquitetos inaptos.
Sentindo a objeção, preveniu-a Simão asseverando que em virtude do péssimo desempenho da incumbência Deus condenou aos infernos o anjo que presidia à oficina celeste. Por mais esturricado que esteja, contudo, a condenação desse anjo não nos cala o sofrimento.
Não responde melhor à objeção a aventura de Pandora dos gregos. Inegavelmente a história da boceta que encerra todos os males e em cujo fundo jaz a esperança é uma bela alegoria. Mas essa tal Pandora, tê-la Vulcano tão somente para fazer pique a Prometeu, que havia feito um homem de barro.
Os hindus não foram mais engenhosos: tendo criado o homem, Deus lhe deu uma droga que lhe asseguraria permanente saúde; o homem carregou seu asno dessa droga, o asno ficou com sede, a serpente ensinou-lhe uma fonte: enquanto o asno bebia a serpente pilhou a droga.
Imaginaram os sírios que, tendo o homem e a mulher sido criados no quarto céu, quiseram comer de uma torta em vez de ambrósia, seu manjar natural. A ambrósia exalava-se pelos poros. Comendo a torta, porém, era preciso ir à secreta. O homem e a mulher pediram a um anjo lhes indicasse onde ficava tal repartição do Paraíso. – Estão vendo – disse-lhes o anjo – aquele planetinha insignificante, a uns sessenta milhões de léguas daqui? Pois é lá. – Para lá se foram, e lá os deixaram. Desde então o mundo é o que é.
É o caso de perguntar aos sírios por que Deus permitiu que o homem comesse da torta e que temos nós que ver com o pato.
Para nos forrarmos ao tédio, saltemos do quarto céu ao Sr. Bolingbroke. Este homem, incontestavelmente genial, deu ao célebre Pope seu plano de tudo está bem, que de fato lá vem palavra por palavra nas obras póstumas de Bolingbroke, e que anteriormente inserira Shaftesbury em seus Característicos. Leia-se o capítulo deste livro dedicado aos moralistas. Lá se encontrará:
“Há muito que responder a essas lamúrias sobre defeitos da natureza. Como saiu tão impotente e falha das mãos de um ser perfeito? Mas eu nego que a natureza seja imperfeita... Sua beleza resulta das contrariedades. De perpétuo combate nasce a concórdia universal... É preciso que cada ser seja imolado a outros: os vegetais aos animais, os animais à terra... Demais não será por amor de miserável verme que as leis do poder central e da gravitação, de que decorrem o peso e o movimento dos corpos celestes, serão perturbadas. Miserável verme que, por muito bem protegido que esteja por essas leis, longe não está o dia em que por elas mesmas será reduzido a pó de traque”.
Bolingbroke, Shaftesbury e Pope – lapidário dos primeiros – não solvem a questão melhor que os outros. Seu tudo está bem não diz senão que o todo é regido por leis imutáveis. Quem não sabe disso? Para ninguém é novidade saber, depois dos netos, que as moscas foram feitas para ser comidas pelas aranhas, as aranhas pelas andorinhas, as andorinhas pelas pegas, as pegas pelas águias, as águias para ser mortas pelos homens, os homens para matar-se uns aos outros, ser comidos pelos vermes e em seguida pelo diabo.
Eis aí ordem nítida e constante entre os animais de todas as espécies. Em tudo existe ordem. Quando se forma um cálculo em minha bexiga, verifica-se uma mecânica admirável. Pouco a pouco aparecem no sangue sucos calculosos, que se filtram nos rins, passam pelas uréteres, caem na bexiga e ali se depositam em virtude de excelente atração newtoniana; forma-se a concreção, que cresce, e eu sofro dores mil vezes piores que a morte, por mais maravilhosamente ordenado que esteja o mundo. Um cirurgião que aperfeiçoou a arte inventada por Tubalcain enterra-me um ferro agudo e trinchante no perineu, agarra o cálculo com suas tenazes: por um mecanismo necessário, a pedra se desfaz sob seus esforços. E pelo mesmo mecanismo necessário entrego a alma ao diabo em meio de tormentos medonhos. Tudo isso está bem. Tudo isso é conseqüência evidente dos inalteráveis princípios físicos. Reconheço-o. Mas, como vós, já o sabia
Se fôssemos insensíveis, nada haveria que dizer a esta física. Não se trata disso, porém Pergunto-vos se não existem males sensíveis, e de onde provêem. “Não existem males” – decreta Pope em sua quarta epístola acerca do tudo está bem. “Ou, se os há particulares, compõem o bem geral”.
Singular bem geral, constituído de cálculos, gota, de todos os crimes, de todos os sofrimentos, da morte e da condenação.
A queda do homem é o emplasto que aplicamos a todas essas doenças particulares do corpo e do espírito, que vós chamais saúde geral. Mas Shaftesbury e Bolingbroke escarnecem do pecado original. Pope não se digna mencioná-lo. É evidente que tal sistema solapa a religião cristã nos alicerces, e não explica coisa alguma.
No entanto foi há pouco aprovado por muitos teólogos, que de bom grado admitem os contrários. Assim sendo, a ninguém é preciso invejar o consolo de raciocinar como melhor puder sobre o dilúvio de males que nos assoberba. Justo é conceder aos doentes sem esperança que comam o que quiserem. Chegou-se até a pretender ser esse sistema consolador. “Deus” – leciona Pope – vê com os mesmos olhos morrer o herói e o pardal, precipitar-se na ruína um átomo ou mil planetas, formar-se um mundo ou uma bolha de sabão”.
Deliciosa consolação! Não sentis grande lenitivo com o decreto do sr. Shaftesbury, que diz, Deus não vai modificar suas leis eternas por um miserável verme como o homem? Convenha-se contudo ter esse verme direito de lamentar-se humildemente e lamentando-se diligenciar compreender por que tais leis eternas não foram feitas para bem de todos.
O sistema do tudo está bem apresenta o autor da natureza como um déspota poderoso e mau, pouco se incomodando que seus caprichos custem a vida a milhares de seres humanos, enquanto os restantes arrastam seus dias na penúria e na dor.
Longe de consolar, a teoria do melhor dos mundos possível é desesperadora. O problema do bem e do mal permanece um caos inextricável para todos aqueles que perquirem de boa fé. Para os polemistas, é um motivo de chiste: são forçados brincando com os próprios grilhões. Para o povo não pensante, é o caso de peixes transportados de um rio para um reservatório; não alimentam a menor idéia que estão ali para ser comidos na quaresma.
Nada sabemos do porquê do nosso destino. Cumpre subpor ao fim de quase todos os capítulos da metafísica as duas letras dos juizes romanos, quando não entendiam uma causa: N. L., non liquet, – não é claro.


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CADEIA DOS ACONTECIMENTOS
Há muito que se crêem os acontecimentos encadeados uns aos outros por invencível fatalidade – o Destino – que é em Homero superior ao próprio Júpiter. Sem refolhos confessava o soberano dos deuses e dos homens não poder impedir que seu filho Sarpédon morresse no prazo preestabelecido. No momento em que devia nascer Sarpédon nascera, nem poderia deixar de ser assim. Não podia morrer em outro lugar senão diante de Tróia. Não podia ser enterrado senão em Lícia. Seu corpo, no prazo preestabelecido, produziria legumes que se transmudariam em substância de alguns licienses. Seus herdeiros haveriam de estabelecer nova ordem em seus estados. Essa nova ordem influiria nos reinos vizinhos. Do que resultariam novas disposições de guerra e paz com os vizinhos dos vizinhos de Licia. E assim sucessivamente o destino da terra dependeu da morte de Sarpédon, a qual dependeu de outro acontecimento, que por seu turno se ata por intermédio de outros à origem das coisas.
Tivesse um único desses fatos acontecido diferentemente, outro fora o mundo. Ora, impossível que o mundo atual existisse e não existisse ao mesmo tempo: portanto impossível fora a Júpiter salvar a vida do filho, por muito Júpiter que fosse.
Diz-se que este sistema da necessidade e fatalidade inventou-o Leibnitz em nossos dias, chamando-lhe razão suficiente. Entretanto é antiquíssimo. Não é de hoje que não há efeito sem causa e que muitas vezes a mais insignificante das causas produz os maiores efeitos.
Conta o sr. Bolingbroke que lhe proporcionaram ocasião de concertar o tratado particular da rainha Ana com Luís XIV as questiúnculas da sra. Marlborough e da sra. Masham. Esse tratado conduziu à paz de Utrecht. A paz de Utrecht firmou Filipe V no trono de Espanha. Filipe V conquistou Nápoles e Sicília à frente da casa da Áustria. Deve o príncipe que é atualmente rei de Nápoles seu trono à sra Masbam. Não o seria, talvez nem existisse, se a duquesa de Marlborough tivesse sido mais complacente para com a rainha de Inglaterra. Sua existência dependia em Nápoles de uma tolice a mais ou a menos na corte londrina. Examinai a situação de todos os povos do mundo: é o que é por força de uma série de acontecimentos aparentemente insulados, porém realmente baraçados em íntimo emaranhamento. São tudo rodagens, polés, cabos, molas dessa máquina colossal.
O mesmo sucede na ordem física. Um vento que sopre do fundo da África ou dos mares austrais acarreta parte da atmosfera africana que recai em chuva nos declívios dos Alpes. Essas chuvas fecundam nossas terras. Nosso vento do norte, por sua vez, leva nossos vapores daqui para o continente negro. Nós beneficiamos a Guiné e a Guiné nos beneficia. A cadeia se estende de cabo a cabo do mundo.
Parece-me contudo abusar-se demais desse princípio. Conclui-se não haver e mais ínfimo átomo que não tenha influído na disposição atual do mundo inteiro. Que não há o menor acidente, quer entre os homens, quer entre os animais, que não seja anel essencial da grande cadeia do destino.
Entendo eu: todo efeito tem evidentemente sua causa, remontante de causa em causa até o abismo da eternidade. Mas nem toda causa transmite seu efeito até o fim dos séculos. Todo acontecimento decorre um de outro, admito. O presente sai do passado. O futuro sairá do presente. Tudo tem pai. Mas nem tudo tem filhos. Precisamente como numa árvore genealógica: toda família remonta, como é sabido, a Adão, mas na família muitos indivíduos morrem sem deixar posteridade.
Existe uma árvore genealógica dos acontecimentos. Incontestavelmente os habitantes das Gálias e de Espanha descendem de Gomer e os russos de Magogue, seu irmão mais novo: encontra-se esta genealogia em tantos livros maçudos! Nesse pé, não há negar devermos a Magogue os sessenta mil russos em armas hoje às portas da Pomerânia e os sessenta mil franceses que combatem nas abas de Francfort. Mas que Magogue haja expectorado à direita ou à esquerda ao pé do Cáucaso, tenha dado duas ou três voltas em redor de um poço, haja dormido do lado esquerdo ou direito, não vejo como possa isso ter influído capitalmente na resolução tomada pela imperatriz da Rússia Elizabete de enviar um exército em socorro da imperatriz romana Maria Teresa. Que meu cão sonhe ou não quando dorme, não percebo que relação poderá ter tão importante fato com os negócios do grão mogol.
É necessário atentar em que nem tudo é cheio na natureza e que nem todo movimento se transmite consecutivamente até descrever a volta ao mundo. Lance-se n’água um corpo de mesma densidade. Facilmente se compreenderá que ao cabo de algum tempo assim o movimento do corpo como aquele que comunicou à água se extinguem. O movimento consome-se e repara-se. Por conseguinte o movimento que possa ter produzido Magogue escarrando num poço não pode ter influência no que hoje se passa. na Rússia e na Prússia. Nem todos os acontecimentos pretéritos são pais dos acontecimentos presentes. Todo acontecimento atual provém em linhas diretas do passado. Porém milhares de linhas colaterais há que em nada os interessam. Repitamos: tudo tem pai, mas nem tudo tem filhos. Retornaremos ao assunto ao falar do Destino.


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CARÁTER
A palavra grega impressão, gravura. É o que em nós gravou a natureza. Podemos apagá-lo? Transcendental questão. Se tenho o nariz de esconso e olhos de gato, posso escondê-los sob uma máscara. Poderei encobrir melhor o caráter?
Apresenta-se perante Francisco I de França, a fim de queixar-se de uma preterição, um indivíduo de natural violento e impetuoso. O semblante do príncipe, a postura respeitosa dos cortesãos, o local mesmo impressionam-no fundamente. Maquinalmente baixa os olhos, a voz rude se abranda e faz o pedido humildemente. Crer-se-ia nascido tão manso quanto os cortesãos em meio dos quais parece quase desconsertado. Entretanto facilmente descobre Francisco I em seus olhos baixos, porém acesos de um fogo sombrio, nos músculos retesos do rosto, nos lábios contracerrados, que esse homem não é tão humilde como aparenta. Esse homem acompanha-o a Pávia, é aprisionado com ele e com ele levado para Madri. Já não lhe infunde a mesma impressão a majestade do rei. Familiariza-se com o objeto de seu respeito. Um dia, ao descalçar-lhe as botas, e fazendo-o desleixadamente, Francisco, azedado pelo infortúnio, ralha-lhe. Nosso homem manda o rei plantar batatas e atira as botas pela janela.
Nascera Sixto Quinto petulante, opiniático, soberbo, impetuoso, vingativo, arrogante. As provas do noviciado parecem ter-lhe adoçado o caráter. Mal começa a desfrutar de certo crédito em sua ordem, lança-se contra um guardião e alomba-o a punhadas. Inquisidor em Veneza, exerce o cargo com insolência. Cardeal, é possuído della rabbia papale. Embuça na obscuridade sua pessoa e seu caráter. Mascara-se de humilde e moribundo. Elegem-no papa: é quando dá à mola do natural toda a elasticidade longo tempo retesada pela política. É o mais arrogante e despótico dos soberanos.

Naturam expellas furca, tamen usque recurret.

Religião, moral, são freios retentores do caráter. Não podem, porém, matá-lo. Enclausurado, reduzido a dois dedos de sidra às refeições, pode o bêbedo deixar de embriagar-se, mas ansiará sempre pelo vinho.
A idade amolenta o caráter. Transforma-o em uma árvore que não dá senão um ou outro fruto abastardado, mas sempre da mesma natureza. Enodoa-se, cobre-se de musgo, caruncha. Jamais deixará de ser carvalho ou pereira, porém. Se fosse possível alterar o caráter, a gente mesmo o plasmaria a bel prazer, seria senhor da natureza. Podemos lá criar alguma coisa? Não recebemos tudo? Experimentai animar o indolente de contínua atividade, inspirar gosto à musica a quem careça de gosto e de ouvido. Não tereis melhor resultado do que se empreenderdes dar vista a cego de nascença. Nós aperfeiçoamos, esborcelamos, embuçamos o que nos estereogravou a natureza. Não há, porém, alterar-lhe a obra.
Direis a um criador: – O Sr. tem peixe demais nesse viveiro; assim eles não vingam. Seus campos estão sobrelotados de gado; o capim não dá, os animais emagrecerão. – Com isso deixa o nosso homem que as solhas lhe comam metade das carpas, e os lobos metade dos carneiros. Os restantes engordam. Gabar-se-á ele dessa economia? Este camponês és tu mesmo. Uma de tuas paixões devorou as outras, e tu julgas haver triunfado sobre ti próprio. Não parecemos quase todos nós com aquele velho general de noventa anos que, encontrando alguns jovens oficiais mexendo com umas moças, perguntou-lhes colérico: “Senhores, é esse o exemplo que lhes dou?”.


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CATECISMO CHINÊS
(Ou diálogos de Cu Su, discípulo de Cong-fu-tseu, com o príncipe Cu, filho do rei de Lou, tributário do imperador çhinês Gnenvã, 417 anos antes da nossa era. Traduzido em latim pelo padre Fouquet ex-jesuíta. Encontra-se o manuscrito na biblioteca do Vaticano, número 42.759).

C.
Que devo entender quando me dizem que adore o céu (Chang ti)?
C. S.
Não se trata do céu material que vemos, que não é outra coisa senão ar, composição de todas as emanações da terra. Imenso disparate seria adorar vapores.
C.
Pois não me surpreenderia. Parece-me que os homens cometeram disparates ainda maiores.
C. S.
De fato. Mas vós estais destinado a governar. Cumpre-vos ser sábio.
C.
Há tantos povos que adoram o céu e os planetas!
C. S.
Os planetas não passam de mundos como o nosso. Temos tanto motivo para adorar a areia e o barro da Lua, por exemplo, como a Lua para se pôr de joelhos diante da areia e do barro da Terra.
C.
Que se quer dizer quando se fala: O céu e a terra, acenda ao céu, seja digno do céu?
C. S.
Diz-se tremenda asneira. Não existe céu: cada planeta é circundado como que de uma casca chamada atmosfera, e gira no espaço em torno de seu sol. Cada sol é centro de porção de planetas que o acompanham espaço em fora. Não existe alto nem baixo, subida nem descida. Compreendeis que se habitantes da Lua dissessem que se sobe para a Terra, que era preciso tornar-se digno da Terra, diriam um absurdo. Da mesma forma proferimos uma frase sem nexo quando dizemos ser necessário fazer-se digno do céu. É como se disséssemos: é preciso tornar-se digno do ar, digno da constelação do Dragão, digno do espaço.
C.
Creio compreender. Devemos adorar somente o Deus que criou o céu e a terra.
C. S.
Isso! Só Deus merece ser adorado. Mas quando dizemos que Deus fez o céu e a terra, piamente proferimos uma grande ingenuidade. Porque, se por céu entendemos o espaço portentoso em que Deus acendeu tantos sóis e fez girar tantos mundos, é mais ridículo dizer o céu o a terra do que dizer as montanhas e um grão de areia. Infinitamente menor que um grão de areia é o nosso globo perto desses quintilhões de mundos, em meio aos quais desaparecemos. Tudo o que podemos fazer é juntar nossa débil voz ao coro dos seres incontáveis que no abismo da amplidão rendem homenagem a Deus.
C.
Então enganaram-nos quando nos disseram que Fo desceu do quarto céu e se nos apresentou sob a forma de um elefante branco?
C. S.
Isso são histórias que os bonzos contam às crianças e aos velhos. Não devemos adorar senão o autor eterno de todos os seres.
C.
Mas como pôde um ser fazer os outros?
C. S.
Olhai aquela estrela – Acha-se a um trilhão e quinhentos bilhões de lis(12)do nosso minúsculo globo. Dela projetam-se raios que vêm formar em nossos olhos dois ângulos iguais pelo vértice. Os mesmos ângulos formam nos olhos de todos os animais. Não vedes nisso um desígnio evidente? Não vedes nisso uma lei admirável? Ora, quem faz uma obra senão um obreiro? Quem elabora leis senão um legislador? Existe pois um obreiro, um legislador eterno.
C.
Mas quem fez esse obreiro? Como é ele?
C. S.
Meu príncipe, passeando ontem pelos arredores do palácio mandado construir pelo rei vosso pai, ouvi dois grilos conversando, um dos quais dizia: – Que palácio formidável! – Sim, – disse o outro – com toda a minha presunção confesso que deve ser alguém mais poderoso que os grilos o autor de tal prodígio. Mas nem imagino quem seja. Vejo que há de existir, mas não sei quem é.
C.
Confesso serdes um grilo mais entendido que eu. O que me agrada em vós é não pretenderdes saber o que ignorais.

Segundo diálogo

C. S.
Então convindes haja um ser todo poderoso, existente por si próprio, supremo artesão de toda a natureza?
C.
Sim. Mas se existe por si mesmo nada pode demarcá-lo, está em toda parte. Acha-se então em toda a matéria, em todas as partes de mim mesmo?
C. S.
Por que não?
C.
Nesse caso eu próprio seria parte da divindade.
C. S.
Não me parece certa a conclusão. Este caco de vidro é de todos os lados penetrado pela luz. Entanto será ele luz? Não; é simplesmente areia. Tudo está em Deus, não resta dúvida: o que tudo anima em tudo deve estar. Deus não é como o imperador da China, que mora em um palácio e transmite suas ordens por calao. Desde que exista, necessário é que sua existência encha todo o espaço e todas as suas obras. E já que está em vós é uma advertência contínua para que nada façais que vos possa envergonhar em sua presença.
C.
Que fazer para ousar olhar-se a si mesmo sem repugnância e sem pejo diante do ser supremo?
C. S.
Ser justo.
C.
Que mais?
C. S.
Ser justo.
C.
Mas diz a seita de Lao Quium não existir justiça nem injustiça, vício nem virtude.
C. S.
Diz a seita de Lao Quium não existir saúde nem doença?
C.
Não, ela não diria tamanho absurdo.
C. S.
Absurdo tão grande e mais funesto é pensar não existir saúde nem moléstia da alma, virtude nem vício. Os que disseram ser tudo a mesma coisa são monstros. Será a mesma coisa criar o filho ou esmagá-lo em cima de uma pedra? Assistir à mãe ou cravar-lhe um punhal no coração?
C.
Fazeis-me estremecer. Eu execro a seita de Lao Quium. Mas são tantos os matizes do justo e do injusto! As vezes fica-se perplexo. Quem saberá precisamente o que é permitido e o que não o é? Quem será capaz de estabelecer seguramente as fronteiras que separam o bem do mal? Que norma me dais para discerni-los?
C. S.
As normas de Cong-fu-tseu, meu mestre: “Vive como ao morrer desejarias ter vivido. Trata o próximo como queres que ele te trate”.
C.
Confesso que tais máximas devem ser o código do gênero humano. Mas que me importará ao morrer ter bem vivido? Que ganharei com isso? Acaso, ao se quebrar, se sentirá feliz aquele relógio por haver bem soado as horas?
C. S.
Aquele relógio não sente, não pensa Não pode ter remorsos, ao passo que vós os tendes quando vos sentis culpado.
C.
E se, após cometer muitos crimes, vier a não mais os sentir?
C. S.
Nesse caso seria preciso reprimir-vos. E ficai certo que entre os homens que não gostam de ser oprimidos alguém haveria que vos tolheria as mãos.
C.
Quer dizer que Deus, que está neles, consentiria que fossem maus depois de tê-lo permitido a mim?
C. S.
Deus vos galardoou com a razão: que dela não abuseis nem vós nem eles. Não somente seríeis infeliz nesta vida, como ainda quem vos disse não o seríeis em outra?
C.
Quem vos disse existir outra vida?
C. S.
Na dúvida, procedei como se existisse.
C.
Se eu tivesse certeza de que não existe?
C. S.
Desafio-vos.

Terceiro diálogo

C.
Mas para poder ser punido ou recompensado quando deixar de existir, forçoso é que subsista em mim algo que sinta e que pense. Ora, se antes de nascer nada de mim havia que sentisse ou pensasse, como haverá depois que morrer? Que poderia ser essa parte inconceptível de mim mesmo? Subsistirá o zumbido daquela abelha à sua morte? Subsistirá a vegetação desta planta a seu desarraigamento? Vegetação não é uma palavra de que nos servimos para exprimir a maneira inexplicável como quis o Ser Supremo que a planta absorvesse os sucos da terra? Tal e qual, alma é uma palavra inventada para exprimir pobremente e obscuramente os princípios essenciais da vida humana. Todos os animais se movem. A esse poder de mover-se chamamos força ativa. Mas não existe um ser distinto – força ativa. Temos paixões, memória, razão. Porém razão, memória, paixões não são, é claro, coisas a parte. Não são seres em nós existentes. Não são indivíduos de existência própria: são termos genéricos por nós inventados para expressarmos nossas idéias. Alma – memória, razão, paixões – não passa pois de uma palavra. Quem anima a natureza de movimento? Deus. Quem faz vegetar as plantas? Deus. Quem dá vida aos animais? Deus. Quem gera o pensamento humano? Deus.
Se a alma humana fosse um anãozinho que habitasse o nosso corpo, governando-nos os movimentos e as idéias, não denotaria isso impotência e artifício indignos do eterno artesão do mundo? Não seria ele capaz de fazer átomos por si próprios dotados de movimento e pensamento? Ensinastes-me grego, fizestes-me ler Homero. Reputo Vulcano um ferreiro divino quando faz trípodas de ouro que se apresentam sozinhas perante o conselho dos deuses. Vil charlatão parecer-me-ia porém se houvesse escondido no corpo das trípodas um moleque que, sem que ninguém percebesse, as fizesse mover-se.
Criaram frios sonhadores a fantasia de atribuir o movimento dos astros a gênios que incessantemente os impelissem espaço em fora. Mas Deus não poderia ver-se reduzido a tão mísero recurso. Em uma palavra, para que duas molas quando basta uma? Não ousareis negar tenha Deus o poder de animar o ente pouco conhecido a que chamamos matéria. Por que então haveria de recorrer a outro agente?
Mais: que seria essa alma que tão liberalmente dais ao nosso corpo? De onde veio? Quando? Seria preciso plantar-se tempo sem tempo o Criador do universo a coca da união de homem e mulher, observando atentamente o instante em que saísse um germe do corpo do homem e entrasse no corpo da mulher para então enviar-lhe às pressas uma alma? E se o germe morresse, que seria da alma? Teria sido criada inutilmente, ou esperaria outra oportunidade.
Estranha ocupação para o senhor do mundo. Tanto mais que não se veria abarbado apenas com as cópulas da espécie humana: precisaria ter olhos para a reprodução de todos os animais, porque todos os animais têm memória, idéias, paixões. E se para criar sentimentos, memória, idéias, paixões fosse necessária uma alma, cumpriria a Deus afanar-se incessantemente a forjar almas para elefantes, pulgas, mochos, peixes, bonzos.
Que idéia teríeis do arquiteto de tantos milhões de mundos apeado a fazer cavilhas invisíveis da manhã à noite a fim de perpetuar sua obra?
Aí tendes ínfima parte das razões que me fazem duvidar da existência da alma.
C. S.
Raciocinais de boa fé. E vosso sincero parecer, errôneo embora, há de ser grato ao Ser Supremo. Podeis enganar-vos, mas não o procurais. Sois, pois, desculpável. Mas vede que não me propusestes senão dúvidas, e dúvidas tristes. Admiti verossimilhanças mais consoladoras. É duro ser aniquilado; esperai viver. Sabeis que um pensamento não é matéria, nada tem que ver com a matéria: por que há de ser tão difícil crerdes que Deus vos haja inoculado um princípio divino que – indissolúvel – escape é morte? Ousareis dizer impossível terdes uma alma? Não, certamente. E sendo possível, não será muito provável? Enjeitareis um sistema tão belo e tão necessário ao gênero humano? Por somenos impedimentos?
C.
Grato ser-me-ia abraçar tal sistema, de vez que me fosse provado. Não sou. senhor de ver o que não enxergo. Sempre me impressionou a idéia grandiosa de que Deus tudo criou, em tudo está, tudo penetra, a tudo inspira vida e movimento. E se, estando em toda a natureza, se acha em todas as partículas do meu ser, não vejo que necessidade tenho de uma alma. Para que um pequeno ente subalterno, quando sou animado do próprio Deus? De que me serviria essa alma? Nossas próprias idéias, não somos nós quem as elaboramos: acodem-nos não raro a despeito de nós mesmos; temo-las enquanto dormimos. Tudo em nós se opera sem a nossa intervenção. Por mais que a alma dissesse ao sangue e aos espíritos animais: Circulai, peço-vos, de tal ou tal maneira, eles circulariam eternamente e impassivelmente da forma que Deus lhes ditou. Prefiro ser máquina de um Deus que se me evidencia a sê-la de uma alma de cuja existência duvido.
C. S.
Pois bem! Se vos anima o próprio Deus, nunca profaneis com crimes a sua presença. E se vos deu uma alma, que essa alma jamais o ofenda. Num sistema como noutro tendes vontade. Sois livre, dispondes do poder de fazer o que quiserdes; usai desse poder para servir a Deus que vo-lo outorgou. Bom é que sejais filósofo: necessário que sejais justo. Sê-lo-eis ainda mais quando crerdes possuir uma alma imortal.
Dignai-vos responder-me: não é verdade ser Deus a suma justiça?
C.
Sem dúvida. E ainda que fosse possível deixar de sê-la (o que é uma blasfêmia) eu mesmo quereria proceder com eqüidade.
C. S.
Quando estiverdes no trono, não é verdade ser vosso dever recompensar as ações virtuosas e punir as culposas? Quereríeis que Deus não fizesse o que vós mesmo fareis? Sabeis que há e sempre haverá nesta vida virtudes infelizes e crimes impunes. Necessário é pois que bem e mal encontrem seu julgamento em outra existência. Foi esta idéia tão simples, tão natural, tão geral que gerou em tantas nações a crença da imortalidade da alma e da justiça divina, que a julgará quando se despir do despojo mortal. Haverá sistema mais razoável, mais conforme à Divindade e mais útil ao gênero humano?
C.
Por que então muitas nações não o abraçaram? Sabeis haver em nossa província coisa de duzentas famílias de antigos sinús(13) que habitaram outrora parte da Arábia Pétrea. Pois nem eles nem seus avitos jamais creram a alma imortal. Têm seus Cinco Livros, como nós temos nossos Cinco Quings(14). Li-lhes a tradução; suas leis, necessariamente semelhantes às de todos os outros povos, ordenam-lhes respeitar os pais, não furtar, não mentir, não cometer o adultério nem o homicídio. Não lhes falam, porém, de recompensas e castigos em outra vida.
C. S.
Se essa idéia ainda não se desenvolveu nesse pobre povo, desenvolver-se-á sem dúvida algum dia. Demais, que nos importa uma insignificante e miserável nação quando babilônios, egípcios, hindus, todos os povos civilizados admitiram esse dogma tão salutar? Se estivésseis doente, refugaríeis um remédio aprovado por todos os chineses só porque meia dúzia de bárbaros das montanhas não o tomariam? Deus concedeu-vos a razão, e diz-vos a razão que a alma deve ser imortal. É o próprio Deus que vo-lo diz, portanto.
C.
Mas como poderei ser recompensado ou punido quando já não for eu mesmo, quando nada existir do que constitui a minha pessoa? Tão somente por força da memória é que sou sempre eu mesmo. Ora, a memória, perdê-la-ei na derradeira doença. Haverá então um milagre depois de minha morte que ma restitua, para que eu retorne à existência?
C. S.
Nesse caso um príncipe que houvesse decapitado a família para reinar, tiranizado os súditos, eximir-se-ia de culpa dizendo a Deus: – Não fui eu, eu perdi a memória, vós vos equivocais, eu já não sou a mesma pessoa. – Julgais que Deus se daria por achado com semelhante sofisma?
C.
Pois bem. Seja, rendo-me. Se praticaria o bem por mim próprio, fá-lo-ei igualmente para comprazer ao Ser Supremo. Eu pensava bastar minha alma ser justa nesta vida para ser feliz em outra. Vejo que tal opinião é boa para os povos e para os príncipes, mas o culto de Deus me preocupa.

Quarto diálogo

C. S.
Que achais de esquisito em nosso Chu Quing, esse primeiro livro canônico tão respeitado por todos os imperadores chineses? Para servir de exemplo ao povo trabalhais um campo com as próprias mãos reais e dele ofertais as primícias a Chang-ti, a Tien, ao Ser Supremo. A ele sacrificais quatro vezes ao ano. Sois rei e pontífice. Prometeis a Deus todo o bem que estiver em vosso poder. Não há nisso algo que repugne?
C.
Sei que Deus não tem nenhuma necessidade de nossos sacrifícios e de nossas preces. Nós é que temos precisão de nos sacrificarmos e de orar. O culto de Deus não foi estabelecido por ele, mas por nós. Muito me apraz orar, e quero sobretudo que minhas orações não sejam ridículas. Porque se me ponho a gritar que “a montanha do Chang-ti é uma montanha gorda, é que não se deve olhar para as montanhas gordas,” (15) e faço fugir o Sol e apagar a Lua, seriam essas algarvias do agrado do Ser Supremo, úteis a meus súdito e a mim mesmo?
Não suporto principalmente a demência das seitas. De um lado vejo Lao Tseu concebido pela união do céu e da terra e cuja mãe o carregou no ventre durante oitenta anos. Não tenho mais fé em sua doutrina do aniquilamento e da renúncia universal que nos cabelos brancos com que nasceu ou na vaca preta que montou para ir pregar sua doutrina.
Não creio mais no deus Fo, ainda que tenha tido por pai um elefante branco e prometa a vida eterna.
Mais que tudo me desagrada serem tais fantasias continuamente pregadas pelos bonzos, que seduzem o povo para governá-lo. Fazem-se respeitáveis por mortificações que repugnam à natureza. Uns se privam toda a vida dos alimentos mais salutares, como se não se pudesse agradar a Deus senão com um mau regime. Outros põem argolas de ferro no pescoço, o que por vezes lhes dá um ar digníssimo. Enterram cravos nas coxas, como se fossem tábuas. E o povo segue-os em chusma. Se um rei decreta um édito que os desagrada, dizem-vos friamente que tal édito não se encontra no comentário do deus Fo, e que mais vale obedecer a Deus que aos homens. Como remediar tão extravagante e nociva doença popular? Sabeis ser a tolerância o princípio do governo da China como de todos os povos da Ásia. Não vos parece, porém, funesta semelhante indulgência, quando expõe um império a ser transtornado por opiniões fanáticas?
C. S.
Que o Chang-ti me livre de querer desenvolver em vós o espírito de tolerância, virtude tão respeitável, que é para a alma o que é para o corpo a liberdade de saciar a fome. Permite a lei natural a cada um crer o que quiser, como se alimentar do que bem entender. O médico não pode matar os clientes por não terem observado a dieta prescrita. Não assiste ao príncipe o direito de mandar prender os súdito que não pensarem como ele. Mas cumpre-lhe prevenir perturbações, e se for sábio, facílimo lhe será extirpar as superstições. Sabeis o que se passou com Daão, sexto rei da Caldéia, há cerca de quatro mil anos?
C.
Não. Dar-me-eis prazer contando-mo.
C. S.
Os sacerdotes caldeus adoravam as solhas do Eufrates. Diziam que uma solha memorável – Oanés – ensinara-lhes outrora a teologia, que essa solha era imortal, tinha três pés de comprido e um pequeno crescente na cauda. Por amor de Oanés era proibido comer solhas. Levantou-se grande barulho entre os teólogos a fim de saber se a solha Oanés era macho ou fêmea Os dois partidos se excomungaram reciprocamente e por não poucas vezes chegou-se a vias de fato. Eis o que fez o rei Daão para pôr termo à referta.
Ordenou a ambas as facções um rigoroso jejum de três dias, findo o qual chamou à sua presença os partidários da solha fêmea, que assistiram a seu jantar. Mandou trazer uma solha de três pês de comprimento, em cuja cauda fizera desenhar um crescente.
— É este o vosso deus? – perguntou aos doutores.
— Sim, majestade. Tem o crescente na cauda e seguramente há de ter ovas.
Ordenou o rei que se abrisse a solha, que se evidenciou macho.
—.Estais vendo não ser o vosso deus, pois não tem ovas, – concluiu o rei. E comeu-a com seus sátrapas, com grande regozijo dos teólogos das ovas, que viam frito o deus dos adversários.
Em seguida mandou virem os doutores do outro partido. Mostrou-lhes um deus de três pés de longo, com um crescente na cauda e que tinha ovas. Afirmaram os doutores ser o deus Oanés, e que era macho. Como da primeira vez, o rei mandou fritá-lo e viu-se que era fêmea. Então, evidenciando-se ambos os partidos igualmente tolos, e como não tivessem almoçado, disse-lhes o bom rei Daão que não tinha senão solhas para dar-lhes de jantar. E os doutores comeram-nas gulosamente, fossem fêmeas ou machos. Terminou a guerra civil, todos bendisseram o rei e de então em diante toda gente fez servir à mesa quantas solhas lhe aprouvesse.
C.
Muito simpatizo com o rei Daão. Prometo imitá-lo na primeira ocasião que se apresentar. Sem violências, hei de impedir o quanto possa que se adorem Fos e solhas.
Sei que existem em Pegú e Tonquim pequenos deuses e talapões que dizem fazer baixar a lua no minguante e predizer claramente o futuro, isto é, verdadeiramente o que não existe, porque o futuro não existe. No que de mim depender, vedarei aos talapões virem ao meu império inventar o futuro e arriar à lua.
Que humilhação haver seitas que vão de cidade em cidade a propagar seus mitos, como charlatães vendendo suas drogas! Que opróbrio para o espírito humano presumirem naçõezinhas insignificantes ser a verdade exclusividade sua, e que o vasto império da China chafurde no erro! Então não seria o Ser Supremo senão o deus da ilha Formosa ou de Bornéu? Abandonaria o resto do mundo ? Meu caro Cu Su, ele é o pai de todos os homens. A todos permite comer solhas. Ser virtuoso é a mais digna homenagem que se lhe possa render. Um coração puro é o mais sublime dos templos, como dizia o grande imperador Hiao.

Quinto diálogo

C. S.
De vez que amais a virtude, como a praticareis quando fordes rei?
Não sendo injusto nem para com meus vizinhos nem para com meu povo.
C. S.
Não basta não fazer o mal. Devereis praticar o bem. Dareis o que comer aos pobres empregando-os em trabalhos úteis, e não presenteando-os com a ociosidade. Embelezareis as estradas reais, abrireis canais, construireis edifícios públicos, estimulareis as artes, premiareis o mérito em que quer que se manifeste, perdoareis as faltas involuntárias.
C.
A isso chamo não ser injusto. Trata-se de deveres.
C. S.
Pensais como verdadeiro rei. Mas há o rei e o homem, a vida pública e a vida privada. Logo vos casareis. Quantas esposas contais ter?
C.
Tenho que uma dúzia será o suficiente. Mais poderia furtar-me ao trabalho. Não gosto desses reis que têm trezentas esposas e setecentas concubinas, e milhares de eunucos para servi-las. Essa mania de eunucos sobretudo parece-me um tremendo ultraje à natureza humana. Que se capem, quando muito, os galos. Com isso ficam melhores de comer. Nunca se viram, porém, eunucos na panela. Para que mutilá-los? Tem o dalai lama cinqüenta eunucos para cantarem em seu pagode. Gostaria de saber se é grato ao Chang-ti ouvir as vozes de taquara rachada desses cinqüenta desmembrados.
Acho também muito ridículos esses bonzos que não se casam. Gabam-se de ser mais sábios que os demais chineses. Pois bem! Que façam então filhos sábios. Boa moda essa honrar o Chang-ti privando-o de adoradores! Singular maneira de servir o gênero humano, dando-lhe o exemplo da própria extinção! Dizia o bom pequeno lama Stelca ed isant Errepi (16) que todo padre devia fazer o maior número de filhos possível. Ele próprio dava o exemplo e foi muito útil em seu tempo. Por mim casarei todos os lamas e bonzos e lamizas e bonzas que tiverem vocação para esta santa obra. Serão melhores cidadãos, e com isso creio prestar grande benefício ao reino de Lou.
C. S.
Oh que excelente príncipe teremos! Fazeis-me chorar de alegria. Mas certamente não tereis só mulheres e súdito. Porque afinal não se pode passar a vida a lavrar éditos e fabricar filhos. Sem dúvida tereis amigos?
C.
Já os tenho, e bons. Advertem-me de meus defeitos e eu tomo a liberdade de apontar-lhes os seus. Consola-me e eu os consolo. A amizade é o bálsamo da vida, bálsamo superior ao do químico Erueil (17) e até aos saquetes do grande Ranoud (18). Admira-me não se haver feito da amizade um preceito de religião. Desejaria inseri-lo em nosso ritual.
C. S.
Preservai-vos de semelhante arbitrariedade. A amizade já é sagrada por si mesma. Nunca a forceis. O coração precisa ser livre. Se fizésseis da amizade um preceito, um mistério, um rito, uma cerimônia, milhares de bonzos, pregando e escrevendo suas tolices, cobririam esse sentimento de ridículo. Não deveis expô-lo a semelhante profanação.
Mas como procedereis em relação aos vossos inimigos? Vinte vezes recomenda Cong-fu-tseu que os amemos. Não vos parece um pouco difícil?
C.
Amar os próprios inimigos? Se é tão comum!
C. S.
Como o entendeis?
C.
Como é de mister, creio; Fiz o aprendizado da guerra sob o príncipe de Décon (19) contra o príncipe de Vis Brunck. Quando um inimigo era ferido e caía em nossas mãos; tratávamo-lo como se fosse nosso irmão. Muitas vezes demos o próprio leito a inimigos feridos e prisioneiros, dormindo-lhes ao pé sobre peles de tigre estendidas no chão. Servíamo-los nós mesmos. Que mais quereríeis? Que os amássemos como se ama às amantes?
C. S.
Muito me edifica tudo o que dissestes, e desejaria que todas as nações vos compreendessem. Porque me afirmam haver povos assaz impertinentes para dizer que nós não conhecemos a verdadeira virtude, que nossas boas ações não passam de pecados esplêndidos, que necessitamos das lições de seus talapões para que nos ensinem bons princípios. Coitados! Mal aprenderam a ler e escrever e já querem ensinar aos próprios mestres!

Sexto diálogo

C. S.
Não vos repetirei todos os lugares comuns que há cinco ou seis mil anos se repisam entre nós acerca de todas as virtudes. Há virtudes que não o são senão para nós mesmos, como a prudência para guiar a alma, a temperança para governar o corpo – meros preceitos de política e higiene. Verdadeiras virtudes são as virtudes úteis à sociedade: fidelidade, magnanimidade, beneficência, tolerância, etc. Graças aos céus não há avó entre nós que não ensine aos netos todas essas virtudes. Elas constituem o cimento da nossa juventude, na cidade como na aldeia. Há contudo uma grande virtude que começa a ser esquecida, o que é deplorável.
C.
Qual é? Vamos, dizei-me, eu tomarei a peito realentá-la.
C. S.
A hospitalidade. Essa virtude tão social, esse sagrado liame entre os homens, que começa a relaxar-se desde que temos tavernas. Ao que dizem, veio-nos essa perniciosa instituição de certos selvagens do Ocidente. Parece que esses miseráveis não têm casas para acolher os viajores. Que prazer receber na grande cidade de Lou, na linda praça de Honchã, na casa de Qui, um generoso estrangeiro recém chegado de Samarcande, para quem me tornaria de então em diante um homem sagrado e a quem todas as leis – divinas e humanas – obrigariam a receber-me em sua casa quando eu viajasse pela Tartária e a ser meu amigo íntimo!
Os bárbaros de que vos falava só recebem os forasteiros quando pagos, e ainda assim em achavascados cochicholos. Vendem caro esse acolho miserável. Apesar de tudo ouço dizer que essa pobre gente se presume superior a nós e se vangloria de ter moral mais pura. Querem que seus pregadores falem melhor que Cong-fu-tseu. Enfim pretendem ensinar-nos justiça por venderem mau vinho nas estradas reais, suas mulheres saírem como loucas pelas ruas e dançarem enquanto as nossas cultivam bichos de seda.
C.
Acho plausível a hospitalidade e pratico-a com prazer. Mas receio o abuso. Existem, nas cercanias do grande Tibete, povos que vivem pessimamente alojados, amantes de andejar, que sem motivo algum seriam capazes de palmilhar o mundo de ponta a ponta. Entanto, se fordes ao grande Tibete desfrutar entre eles do direito da hospitalidade, não vos darão cama nem comida. Coisas tais podem fazer desgostar da polidez.
C. S.
O mal é pequeno e fácil de remediar, não se recebendo senão pessoas bem recomendadas. Não há virtude que não ofereça seus riscos. Por isso mesmo é belo abraçá-las.
Quão santo e sábio é o nosso Cong-fu-tseu! Não há virtude que não inspire. Em suas sentenças está a felicidade dos homens. Eis uma que me vem à memória – a qüinquagésima terceira:

Recompensai os benefícios com benefícios e jamais vos vingueis das injúrias.

Qual a máxima, qual a lei dos povos do Ocidente comparável a moral tão pura? Em quantos passos preceitua Cong-fu-tseu a humildade! Se os homens praticassem esta virtude jamais haveria querelas sobre a terra.
C.
Li tudo o que escreveram Cong-fu-tseu e os árabes dos séculos passados a respeito da humildade. Mas ninguém me parece tê-la definido com exatidão. Talvez seja pouca humildade atrever-me a increpá-los, mas tenho pelo menos a humildade de confessar não os haver compreendido. Dizei-me, que pensais dessa virtude?
C. S.
Obedecer-vos-ei humildemente. Reputo a humildade a modéstia da alma, porque a modéstia exterior não passa de civilidade. Ser humilde não é negar a si próprio uma superioridade que se possa ter adquirido sobre outrem. Um bom médico não pode deixar de reconhecer saber mais que seu cliente em delírio. Força é que um professor de astronomia admita ser mais ciente que seus discípulos. Não podendo negá-lo, não deve todavia presumir-se. Humildade não é abjeção: é corretivo do amor próprio, como a modéstia o é do orgulho.
C.
Pois bem! É no exercício de todas essas virtudes e no culto de um Deus simples e universal que quero viver, longe dos delírios dos sofistas e das ilusões dos falsos profetas. No trono, o amor ao próximo será minha virtude, o amor a Deus minha religião. Desprezarei o deus Fo e Lao Tseu e Vichnú, que tantas vezes se encarnou entre os hindus, e Samonocodom, que baixou do céu para fazer de escaravelho entre os siameses, e os camis, vindos da lua ao Japão.
Desgraçado do povo suficientemente cretino e bárbaro para pensar existir um Deus exclusivamente para o recanto do mundo em que habita! É uma blasfêmia. Se a luz do sol alumia todos os olhos, não iluminaria a luz de Deus mais que uma mísera nação num canto do globo! Que blasfêmia! Que dislate! A Divindade fala ao coração de todos os homens, e de extremo a extremo do mundo devem uní-los os laços da caridade.
C. S.
O sábio filho o rei de Lou! Falastes como que inspirado pelo próprio Chang-ti. Sereis um príncipe digno. Fui vosso mestre, agora sou vosso discípulo.


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CATECISMO DO JAPONÊS (20)
Hindu
É verdade que antigamente os japoneses não sabiam cozinhar, que haviam entregue seu reino ao grande lama, que o grande lama decidia soberanamente do que devíeis comer e beber e de tempos em tempos vos enviava um pequeno lama a fim de cobrar tributos, pagando-vos com um sinal de proteção feito com os dois primeiros dedos e o polegar?
Japonês
Ai! Nada mais verdadeiro. Todos os cargos de canusi(21) – os grandes cozinheiros da nossa ilha – conferia-os o lama, e não certamente por amor de Deus. Além disso todas as famílias seculares pagavam uma onça de prata por ano a esse grande cozinheiro do Tibete. Em paga dava-nos minguados pratos de horrível paladar chamados sobejos. E quando lhe dava na veneta alguma nova fantasia, como declarar guerra aos povos do Tangate, escorchava-nos com subsídios suplementares. Muitas vezes nos queixamos, porém baldamente, quando não nos fazia pagar mais ainda. Por fim o amor, que tudo resolve maravilhosamente, libertou-nos dessa servidão. Um de nossos imperadores desaveio-se com o grande lama por causa. de uma mulher. Mas devo confessar que quem mais nos valeram nessa questão foram os nossos canusi, também chamados paiscospie. A eles devemos a libertação.
Eis o que se deu.
O grande lama tinha uma mania engraçada: julgava sempre ter razão. Uma vez ou outra, pelo menos, queriam os nossos canusi tê-la também. O grande lama achou absurda tamanha pretensão. Nossos canusi não arredaram pé e romperam definitivamente com ele.
Hindu
E de então em diante vivestes sem dúvida felizes e tranqüilos?
Japonês
Não inteiramente. Fomos perseguidos, dilacerados, devorados durante perto de dois séculos. Em vão pleiteavam nossos canusi ter razão. Somente há cem anos são razoáveis. Também, desde então podemos orgulhosamente considerar-nos uma das nações mais felizes da terra.
Hindu
Como podeis ser felizes se – a crer no que me disseram – vosso império se acha dilacerado por doze facções de cozinha? No mínimo tereis doze guerras civis por ano.
Japonês
Por que? Será que por termos doze chefes de cozinha, cada qual com uma receita diferente, deveremos matar-nos em vez de jantar? Pelo contrário, comeremos todos às mil maravilhas, cada um do cozinheiro que mais lhe agradar.
Hindu
De fato gostos não se devem discutir. A história, porém, é que ninguém se compenetra disso. Discutem, e da discussão às do cabo é um passo.
Japonês
Depois de muito discutirmos, vendo que com isso só tínhamos que perder, acabamos optando tolerar-nos mutuamente. Era, não há dúvida, o melhor partido que nos restava tomar.
Hindu
Poderíeis dizer-me quais são os chefes de cozinha que partilham a vossa nação na arte de beber e comer?
Japonês
Primeiramente há os breuseh, que em caso algum vos dariam morcela ou lardo. Preconizam as fontes puras da cozinha do tempo do onça. Prefeririam morrer a mordiscar um frango. Quanto ao mais, exímios calculadores, e fosse o caso de dividir uma onça de prata entre eles e os onze outros cozinheiros, açambarcariam logo a metade, deixando o resto para os que melhor soubessem contar.
Hindu
Presumo não costumais cear com gente tão esdrúxula?
Japonês
Claro. Em seguida vêm os pispatas, que em determinados dias da semana e em boa parte do ano prefeririam cem vezes comer rodelas de rodovalhos, trutas, linguados, salmões, esturjões, a saborear uma fritada de vitela que lhes ficaria por um nada.
Quanto a nós outros canusi, somos devotos apreciadores de carne de vaca e de certa pastelaria que em japonês se diz pudim. Toda gente convém em que os nossos cozinheiros sejam muito mais hábeis que os dos pispatas. Ninguém melhor que nós sabe preparar o garum dos romanos, as cebolas do antigo Egito, a pasta de gafanhoto dos primeiros árabes, a carne de cavalo dos tártaros. Sempre há o que aprender nos livros dos canusi, comumente chamados paiscospie.
Escuso-me de falar dos que comem a Teluro, assim como dos adeptos do regime de Vicalno, dos batistandos e que tais. Os quekars, porém, merecem atenção particular. São os únicos convivas que nunca vi se emborracharem nem praguejarem. Dificílimos de enganar, também nunca enganam ninguém. Parece que a lei que manda amar o próximo como a si mesmo foi feita especialmente para eles. Porque, verdade se diga, como pode um japonês dizer amar o próximo como a si próprio se por uma bagatela mete-lhe uma bala de chumbo na cabeça ou decapita-o com um cris de quatro dedos de largo? Quando ele próprio vive em constante risco de ser degolado ou engolir balas de chumbo? Com mais propriedade se dirá que ele odeia o próximo como a si mesmo. Os quekars nunca tiveram desses furores. Dizem eles serem os homens efêmeros vasos de argila e que não vale a pena se despedaçarem deliberadamente uns contra os outros.
Confesso que se não fosse canusi não me desagradaria ser quekar. Força é reconhecer que não há meio de brigar com cozinheiros tão pacíficos. Há outros, em número incontável, a que chamamos diestas. Dão os diestas de comer a toda gente indiferentemente e em sua casa sois livre de comer o que vos der na língua – recheado, lardeado, sem recheio, sem lardo, com ovos, com óleo; perdiz, salmão, vinho palhete, vinho tinto, tudo lhes é indiferente. Contanto que façais alguma oração a Deus antes ou após o jantar, ou simplesmente antes do almoço, e sejais honrado, de bom grado rirão convosco à custa do grande lama, de Vicalno, de Memnão e o mais que segue. Felizmente reconhecem que nossos canusi são doutíssimos em matéria culinária, e sobretudo nunca falam em cercear nossas rendas. Assim, vivemos na mais edênica harmonia.
Hindu
Mas a final deve haver uma cozinha predominante, a cozinha do rei.
Japonês
Confesso-o. Mas naturalmente depois de seus gordos banquetes o rei está derretendo de bom humor e não põe embargos à digestão de ninguém.
Hindu
E se algum cabeça dura encasquetar de comer no nariz do rei salsichas que lhe repugnem? Se se reunirem armados de grelhas quatro ou cinco mil desses indivíduos para cozer suas salsichas? Se insultarem as pessoas avessas e salsichas?
Japonês
Nesse caso será preciso puni-los como bêbedos que perturbam o repouso dos cidadãos. Previmos o perigo. Só os que comem à real são contemplados com as dignidades do estado. Todos os outros podem comer como lhes ditar a fantasia, porém são excluídos dos cargos. Soberanamente interditos e punidos sem remissão são os tumultos à mesa. Atalha-se cuidadosamente toda discussão, consoante o preceito do grande cozinheiro japonês Sufi Raho Cus Flac(22), que escreveu na língua sagrada:

Natis in usum laetitae scyphis
pugnare Thracum est...

O que quer dizer: O jantar foi feito para gáudio recatado e mundo, e não se devem atirar copos à cabeça.
Com essas máximas vivemos felizmente em nossa terra. A liberdade individual roborou-se sob os nossos tecosema. Cresce nossa riqueza. Possuímos duzentos juncos de linha, e constituímos o terror dos nossos vizinhos.
Hindu
Por que motivo então o bom versificador Recina(23), filho do poeta indiano do mesmo nome, tão delicado, tão exato, tão harmonioso, tão eloqüente, disse em uma obra didática rimada intitulada A Graça (não As Graças):

O Japão, onde brilharam tantas luzes,
hoje é um triste acervo de loucas visões –?

Japonês
O próprio Recina de que me falais é um grande visionário. Ignorará esse mísero hindu que fomos nós quem lhe ensinamos o que é a luz? Que se na Índia conhecem a rota dos planetas, a nós o devem? Que fomos nós quem ensinamos aos homens as leis primordiais da natureza e o cálculo do infinito. Que, se é preciso descer a coisas mais triviais, conosco aprenderam os hindus a construir juncos segundo proporções matemáticas? Que nos devem até os borzeguins chamados meias do ofício com que cobrem as pernas? Seria possível que tendo inventado tantas coisas admiráveis ou úteis não fôssemos nós mais que loucos, e que um homem que escreveu em versos os desvairos de outrem fosse o único sábio? Deixe-nos com a nossa cozinha, e se quiser que faça versos sobre assuntos mais poéticos.
Hindu
Que quereis. Ele está intoxicado dos preconceitos de sua terra, de seu partido e dos seus próprios.
Japonês
Arre! Quanto preconceito!


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CATECISMO DO PÁROCO
Aríston
Então, caro Teótimo, ides ser pároco no interior?
Teótimo
É verdade. Deram-me uma paroquiazinha, mas prefiro-a a uma grande. Minha inteligência e atividade são restritas. Não poderia, por certo, dirigir setenta mil almas, pois só tenho uma. Admirou-me sempre a confiança dos que põem ombros à empresa de manobrar o leme desses imensos distritos. A mim me falecem forças para me abalançar a tanto. Um rebanho muito grande me amedronta, conquanto possa prestar algum benefício a um pequeno. Estudei suficientemente jurisprudência para impedir, tanto quanto me for possível, que meus paroquianos se arruinem em demandas. Sei de medicina o bastante para prescrever-lhes remédios simples quando caírem doentes. Conheço de agricultura o quanto basta para dar-lhes lá uma vez ou outra um conselho útil. O senhor do lugar e sua esposa são pessoas honradas, que me ajudarão a praticar o bem. Espero ser feliz e felizes fazer os meus paroquianos.
Aríston
Não sentis não ter uma esposa Seria um grande consolo. Como seria agradável encontrardes no lar, após haver pregado, cantado, confessado, comungado, batizado, enterrado, uma mulherzinha doce e virtuosa, que cuidasse de vossa roupa e de vossa pessoa, que vos desagastasse na saúde e vos assistisse na doença, que vos brindasse com bonitos filhos cuja boa educação aproveitaria ao estado! Lamento-vos, a vós que servis aos homens, de vos ver privado de tão necessário lenitivo.
Teótimo
A igreja grega incita os clérigos ao casamento. O mesmo faz a igreja anglicana e os protestantes. Diversamente pensa a igreja latina, e forçoso é que me submeta. Talvez hoje, que o espírito filosófico realizou tão notáveis progressos, um concilio instituísse leis mais consoantes à humanidade que o concílio de Trento. Nesse em meio, porém, devo conformar-me às leis vigentes. É custoso, bem o sei, mas tanta gente melhor que eu a tanto se resignou que não devo murmurar.
Aríston
Sábio sois e sábia é a vossa eloquência. Como contais pregar aos camponeses?
Teótimo
Como pregaria a reis. Falar-lhes-ei a todo instante de moral e jamais de controvérsias. Defende-me Deus aprofundar a graça concomitante, a graça eficaz a que se resiste, a suficiente que não basta. Veda-me inquirir se tinham corpo os anjos que comeram com Abraão e Ló, ou se fingiram comer. Há mil coisas que meu auditório não entenderia, e eu tão pouco. Diligenciarei fazer gente de bem e igualmente sê-lo. Mas não farei teólogos, e se-lo-ei o menos possível.
Aríston
Oh que excelente cura! Hei de comprar uma casa de campo na vossa paróquia. Que pensais da confissão?
Teótimo
A confissão é um ótimo freio contra os crimes, que nos legou a mais remota antigüidade. Era costume, outrora, confessar-se na celebração de todos os mistérios. Imitamos e santificamos esta sábia usança. A confissão move os corações ulcerados de ódio a perdoar e os ladrões à devolução do furto. Tem suas inconveniências: há muitos confessores indiscretos, particularmente entre os monges, que não raro ensinam às moças mais indecências que todos os rapazes de uma aldeia. Nada de pormenores na confissão. Não se trata de interrogatório judicial, senão do reconhecimento das próprias faltas perante Deus, feito por um pecador nas mãos de outro pecador, que de seu turno também se acusará. Não se faz esse desabafo salutar para satisfazer a curiosidade de ninguém.
Aríston
E a excomunhão? Usá-la-eis?
Teótimo
Não. Há rituais em que se excomungam as bailarinas, os feiticeiros e os comediantes. Não precisarei proibir a entrada à igreja às bailarinas, pois nunca a freqüentam. Não excomungarei os feiticeiros, pois não os há. Quanto aos comediantes, como os pensiona o rei e autoriza-os o magistrado, abster-me-ei de os difamar. Até vos confesso, como a amigo, que muito aprecio a comédia. quando não vai de encontro aos costumes. Nutro verdadeira paixão a O Misantropo, Atália e outras peças que me parecem da escola da virtude e do decoro. O senhor da minha aldeia faz representar em seu castelo peças dessa natureza por jovens de talento. Tais espetáculos inspiram a virtude em consórcio com o prazer. Educam o gosto, ensinam a bem falar e bem pronunciar. Não vejo nisso senão uma recreação inocente e até muito útil. Conto, para ilustrar-me, assistir a esses espetáculos. Fa-lo-ei todavia em camarote fechado, para não escandalizar os simples.
Aríston
Quanto mais me revelais vossos sentimentos, mais desejo tornar-me vosso paroquiano. Uma coisa preocupa-me: como fareis para evitar que os campônios se embriaguem nos dias de festa? É essa a solenidade com que as celebram. Haveis de vê-los prostrados pelo álcool, cabeça pensa, mãos descaídas, estrouvinhados, reduzidos a estado mais vil que o dos brutos, reconduzidos titubeantes para casa pelas esposas desfeitas em pranto, incapazes de enfrentar o trabalho no dia seguinte, muitas vezes doentes e embrutecidos para o resto da existência. Ve-los-eis, enfunados pelo vinho, travar rixas sangrentas, atarracarem-se como feras, e não raro desfecharem em morte estas cenas que cobrem de opróbrio a espécie humana. Perde o estado mais súdito em festas do que em batalhas. Como atalhareis em vossa paróquia tão execrando abuso?
Teótimo
Meu partido está tomado. Consentirei, instarei até que cultivem seus campos nos dias de festa, após o serviço divino, que celebrarei ao alvorecer. O ócio do feriado é que os leva à taverna. Não há cabida, nos dias consagrados ao trabalho, para a devassidão e o assassínio. O trabalho moderado é propiciador de saúde do corpo e da alma. Demais, necessita-o o estado. Suponhamos pessimistamente cinco milhões de homens cujo trabalho diário renda dez mil réis por indivíduo. Ao cabo de um ano, cinco milhões de homens inúteis durante trinta dias serão trinta vezes cinco milhões de notas de dez mil réis perdidas pelo estado em mão de obra. Ora, claro é que Deus jamais preceituou semelhantes desperdícios e borracheiras.
Aríston
Assim conciliareis a religião e o trabalho. Um e outro foram prescritos por Deus. Servireis a Deus e ao próximo. Mas que partido tomareis em face das disputas eclesiásticas?
Teótimo
Nenhum. Como controverter a virtude, se a virtude provém de Deus? Discutir, só as opiniões dos homens.
Aríston
Oh excelente pároco! Sapientissimo pároco!



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CERTO, CERTEZA
Que idade tem vosso amigo Cristóvão?
Vinte e oito anos. Vi sua certidão de casamento e de batismo, conheço-o desde criança. Tem vinte e oito anos, tenho certeza, estou certo.
Mal acabo de ouvir a resposta desse homem tão seguro do que diz e de vinte outros que o corroboram, venho a saber que, por motivos secretos e singular engenho, se antedatou a certidão de batismo de Cristóvão. Aqueles com quem falei nada sabem ainda. No entanto, sempre tiveram certeza do que não é.
Se perguntásseis a todos os homens antes de Copérnico:
— O sol levantou-se hoje? O sol se pôs?
— Temos absoluta certeza – responder-vos-iam à uma
Tinham certeza, e no entanto estavam errados.
Sortilégios, adivinhações, obsessões foram durante longo tempo as coisas mais certas do mundo aos olhos de todos os povos. Quanta gente presa dessas ilusões não estava certa do que presumia ver! Hoje acha-se menos em voga essa certeza.
Vem visitar-me um jovem estudante de geometria. Principiante, ainda se acha às voltas com a definição dos triângulos.
— Não é certo – pergunto-lhe – que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos retos?
— Não só não tenho certeza – responde-me – como nem sequer compreendo claramente essa proposição.
Demonstro-lha. Certifica-se, e para o resto da vida.
Eis aí uma certeza muito diferente das anteriores. Aquelas não eram mais que probabilidades que, examinadas, revelaram-se erros. A certeza matemática, porém, é imutável e eterna.
Existo. Penso. Sinto. Será isso tão certo quanto uma verdade geométrica? Sim. Por que? Porque as verdades se provam pelo princípio de que nada pode ser e não ser ao mesmo tempo. Não Posso existir e simultaneamente não existir, sentir e não sentir. Um triângulo não pode ter cento e oitenta graus – a soma de dois ângulos retos – e ao mesmo tempo não os ter.
De mesmo valor são pois a certeza física de que existo, de que sinto e a certeza matemática, embora de gêneros diversos.
O mesmo não acontece com a certeza que se funda em aparências ou testemunhos unânimes dos homens.
— Ora essa! Então não estais certo de que Pequim existe? Não tendes em casa estofos de Pequim! Indivíduos dos mais diversos países e opiniões, que escreveram violentamente uns contra os outros pregando a verdade em Pequim, não vos asseveraram a existência dessa cidade?
— Acho muitíssimo provável ter existido tal cidade. Mas não apostaria a vida em como exista, se bem não hesite em apostá-la em como os três ângulos de um triângulo perfazem dois retos.
Estampou-se no Dictionnaire Encyclopédique uma coisa jovialíssima. Sustenta-se lá que, se mo dissesse toda Paris, eu deveria estar tão seguro, tão certo de que o marechal de Saxe ressuscitou, como o estou de que ele venceu a batalha de Fontenoy, quando toda Paris mo assevera. O raciocínio é admirável: Creio em Paris quando toda ela me diz coisa moralmente possível; portanto não devo cre-la quando me diz coisa moral e fisicamente impossível.
Parece que o autor queria rir, e que o outro autor que se extasia ao fim desse artigo escrito contra si próprio também o queria.


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CÉU DOS ANTIGOS (O)
Se um bicho da seda desse o nome de céu ao frouxel que lhe envolve o casulo, não raciocinaria pior que os antigos chamando céu à atmosfera, que é, como muito bem diz o Sr. de Fontenelle em seus Mondes, o cotão do nosso casulo.
Os vapores que se exalam dos mares e do solo e formam as nuvens, os meteoros e os trovões, foram a princípio tomados pela morada dos deuses. Em Homero os deuses sempre descem em nuvens de ouro. Vem daí ainda hoje representarem-nos os pintores sentados em uma nuvem. Mas como era justo estivesse o senhor dos deuses mais a vontade que os outros, deram-lhe uma águia por veículo, por ser a ave que mais alto voa.
Vendo os senhores das cidades morarem em cidadelas eretas nas assomadas das montanhas, julgaram os antigos gregos que os deuses também. deviam ter uma cidadela, e colocaram-na na Tessália, no monte Olimpo, cujo vértice não raro se amortalha de nuvens De sorte que seu palácio se achava no mesmo nível do céu.
Estrelas e planetas, que parecem engastados na abóbada azul da atmosfera, foram transformados em outras tantas moradas de deuses. Sete dentre estes tiveram cada um seu planeta. Os outros alojaram-se onde melhor puderam. Em sala a que conduzia a via láctea reunia-se o conselho geral dos deuses: necessário era que tivessem seu congresso no ar, já que os homens tinham seus paços municipais na terra.
Quando os titãs, espécie de animais entre os deuses e os homens, declararam uma guerra justíssima aos deuses em vindicação de sua herança paterna – sendo como eram filhos do Céu e da Terra – não tiveram mais que empilhar duas ou três montanhas umas sobre outras para se tornarem senhores do céu e do castelo do Olimpo.

Neve foret terris securior arduus aether,
affectasse ferunt regnum coeleste gigantes,
altaque congestos struxisse ad sidera montes.

Essa física de crianças e de velhos era antiquíssima. Contudo é muito provável tivessem os caldeus idéias tão sãs quanto nós do que se chama o céu. Colocavam eles o Sol no centro do nosso mundo planetário, em distância da Terra aproximadamente a mesma reconhecida hoje. Em torno do Sol faziam girar a Terra e todos os planetas, ensina-nos Aristarco de Samos. É o verdadeiro sistema do universo, posteriormente reeditado por Copérnico. Os filósofos, porém, guardavam o segredo para si, a fim de serem mais respeitados pelos reis e pelo povo, ou antes, para não serem perseguidos.
É tão familiar aos homens a linguagem do erro que ainda chamamos céu aos vapores e ao espaço entre a Terra e a Lua. Dizemos subir ao céu, como dizemos que o Sol gira, conquanto saibamos que não é assim. Possivelmente, para habitantes da Lua, nós é que somos o céu. Cada planeta coloca o seu céu no planeta vizinho.
Se se perguntasse a Homero para que céu tinha ido a alma de Sarpédon, onde estava a de Hércules, pôr-se-ia o grande poeta em calças pardas. Certamente responderia com versos harmoniosos.
Como saber se a alma aérea de Hércules se acharia mais a vontade em Vênus ou Saturno que na Terra? Ou estaria no Sol? É de crer que não estivesse muito a vontade nessa fornalha. Finalmente, que entenderiam os antigos por o céu? Ignoravam o que fosse. Sempre disseram o céu e a terra. É como se dissessem o infinito e um átomo. Propriamente falando não existe céu. O que há é uma quantidade prodigiosa de globos girando no vazio do espaço, um dos quais é a Terra.
Criam os antigos que ir aos céus era subir. A verdade, porém, é que não se sobe de um astro a outro. Estão os corpos celestes tanto abaixo como acima do nosso horizonte. Assim, supondo que, tendo vindo a Pafos, Vênus regressasse a seu planeta quando este se houvesse posto, não subiria em relação ao nosso horizonte: pelo contrário, desceria, e nesse caso deveria dizer-se descer ao céu. Porém os antigos não alcançavam tais sutilezas. Tinham noções vagas, incertas, contraditórias sobre tudo que concernia à, física. Escreveram-se volumes de légua e meia a fim de saber o que pensavam acerca de um sem número de questões que tais. Bastariam duas palavras: não pensavam.
Sempre é bom excetuar alguns sábios Mas vieram mais tarde. Poucos manifestaram seus pensamentos, e foi o quanto bastou para que os charlatães os mandassem para o céu pelo caminho mais curto
Pretendeu um escritor, chamado, creio; Pluche, promover Moisés a grande físico. Já antes outro o conciliara com Descartes e dera à estampa o Cartesius Mosaizans. A dar-lhe ouvidos foi Moisés quem primeiro concebeu os turbilhões e a matéria sutil. É no entanto por de mais sabido que Deus, fazendo Moisés um grande legislador, um grande profeta, nem sequer lhe passou pela veneta fazê-lo professor de física. Moisés ensinou aos judeus qual era seu dever, mas não lhes disse palavra de filosofia. Calmet, que compilou às pazadas e sem nunca raciocinar, fala de sistema dos hebreus. Porém esse povo grosseiro nunca teve sistema algum. Nem sequer possuíam escola de geometria. O termo era grego para eles. Sua ciência era o ofício de corretor e a usura.
Deparam-se em seus livros algumas idéias obscuras, incoerentes, dignas em tudo por tudo de um povo bárbaro, sobre a estrutura do céu. Seu primeiro céu era o ar. O firmamento, sólido e de gelo, sustinha as águas superiores, que ao tempo do dilúvio vazaram desse reservatório por portas, esclusas e cataratas.
Acima do firmamento ou das águas superiores estava o terceiro céu ou empíreo, para onde foi arrebatado S. Paulo. Formava o firmamento uma espécie de meia abóbada continente da Terra. O Sol não girava em torno da Terra porque sequer concebiam que a terra fosse redonda. Chegando ao ocidente, voltava ao oriente por caminho desconhecido. E se não se via era em virtude de que, como disse o barão de Foeneste, desandava de noite.
Todas essas fantasias, adotaram-nas os hebreus dos outros povos. Considerava o céu a maioria das nações, tirante a escola dos caldeus, como um sólido. A Terra, fixa e imóvel, era mais longa um grande terço de oriente a ocidente que de meio dia a norte. Daí as expressões longitude e latitude, por nós perfilhadas. Claro que, desta forma, era impossível haver antípodas. Sto. Agostinho trata a idéia de antípodas de absurdo, e diz expressamente Lactâncio: “Haverá indivíduos tão estúpidos a ponto de crerem que possa haver homens de cabeça para baixo?”
Pergunta S. Crisóstomo em sua décima quarta homilia: “Onde estão os que pretendem que os céus sejam imóveis e de forma circular?”
Diz ainda Lactâncio no livro terceiro das Instituições: “Poderia demonstrar-vos com uma enfiada de argumentos que é impossível que o céu circunde a Terra”
Que diga quanto quiser o autor do Espetáculo da Natureza terem sido Lactâncio e S. Crisóstomo grandes filósofos. Responder-lhe-eis terem sido grandes santos e que para tanto não é indispensável ser bom astrônomo. Acreditá-los-eis no céu: mas força é confessardes que ignorais em que ponto precisamente.


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CHINA (DA)
Vamos à China a procura de terra, como se nos faltasse. Tecidos, como se de tecidos carecêssemos. Certa erva para infundir n’água, como se nossos climas não produzissem símplices. Em paga timbramos em querer converter os chineses. Zelo plausibilíssimo. Mas nem por isso precisamos contestar sua antigüidade e lançar-lhes a tacha de idólatras. Que diríeis de um capuchinho que, depois de generosamente acolhido pelos Montmorency em um de seus castelos, quisesse persuadi-los de que são nobres feitos da noite para o dia, como os secretários do rei, e os acusasse de idólatras por encontrar no castelo duas ou três estátuas de condestáveis a quem os Montmorency votassem profundo respeito?
Proferiu certa vez o famoso Wolf, catedrático de matemáticas na universidade de Halle, um magnífico discurso em louvor da filosofia, chinesa. Elogiou a essa milenária. estirpe de homens – diferentes de nós pela barba, pelos olhos, pelo nariz, pelas orelhas e pelo raciocínio – o adorarem um Deus supremo e amarem a virtude Rendia essa justiça aos imperadores da China, aos colao, aos tribunais, às letras. A justiça que se rende aos bonzos é um pouco diferente.
Wolf atraía a Halle um milheiro de estudantes de todas as nações. Havia na mesma universidade um professor de teologia – atendia ao nome de Lange – que não atraía ninguém. Este homem, desesperado por gelar de frio sozinho no locutório, resolveu perder o professor de matemáticas. Macaqueando os de sua igualha, acusou-o de não crer em Deus.
Pretendiam alguns escritores europeus que nunca haviam estado na China que o governo de Pequim era ateu. Wolf elogiara Pequim. Logo, Wolf era ateu. Melhores silogismos nunca souberam forjar a inveja e o ódio. Corroborado por uma cabala e um protetor, achou o rei de Inglaterra conclusivo o argumento de Lange e propôs ao matemático um dilema formal: deixar Halle em vinte e quatro horas ou ser pendurado – Como tinha e quisesse conservar a cabeça no lugar, Wolf escolheu o primeiro alvitre. Sua retirada subtraiu ao rei duzentos ou trezentos mil escudos anuais, que era quanto fazia entrar no reino esse filósofo pela afluência de discípulos.
Serve este exemplo para mostrar aos soberanos que nem sempre é conveniente dar ouvidos à calúnia e sacrificar um grande homem à inveja de um imbecil.
Voltemos à China.
Como é que nos atrevemos, nós, cá do fim do Ocidente, a disputar encarniçadamente e com torrentes de injúrias por deslindar se houve ou não catorze príncipes na China antes do imperador Fo-hi, e se Fo-hi viveu a três mil ou dois mil e novecentos anos antes da era vulgar? Engraçadíssimo que dois irlandeses se pusessem a brigar em Dublin por saber quem foi, no século XII, o possessor das terras que hoje me pertencem. Não é evidente que deveriam deixá-lo a mim, que tenho os arquivos em mãos?
O mesmo, penso eu, é o caso dos primeiros imperadores da China: cumpre recorrer aos tribunais do país
Agatanhai-vos quanto vos aprouver por amor dos catorze primeiros príncipes que reinaram antes de Fo-hi. Não conseguirão provar vossos bate-bocas mais que já então era a China densamente povoada e vivia sob o império da lei. Agora pergunto-vos: não supõe prodigiosa antigüidade uma nação sedimentada, com leis e príncipes? Pensai em quanto tempo é necessário para que singular concurso de circunstâncias leve a descobrir o ferro nas minas, se empregue na agricultura e se inventem as artes.
Os que fazem filhos a penadas imaginaram um cálculo interessantíssimo. Por uma suputação do arco da velha, dá o jesuíta Pétau à terra, duzentos e oitenta e cinco anos após o dilúvio, população cem vezes maior do que não ousamos atribuir-lhe hoje. Menos cômicos não são os cálculos dos Cumberland e Whiston. Não tinham esses ingênuos senão que consultar os registros das nossas colônias na América para se desencantarem. Ficariam sabendo quão pouco se multiplica o gênero humano, e que não raro diminui em vez de aumentar.
Deixemos, pois, nós que somos de ontem, nós descendentes dos celtas, nós que mal acabamos de surribar as florestas de nosso selvagem habitáculo, deixemos os chineses e hindus desfrutarem em paz de seu maravilhoso clima e de sua antigüidade. Sobretudo demos de mão a essa história de xingar de idólatras o imperador da China e o subabe do Decã.
Não é preciso, todavia, ser fanático do mérito chinês É verdade ser a constituição desse império a melhor do mundo, a única fundada no poder paternal (o que não obsta que os mandarins não vivam a espancar os filhos), a única na qual é punido o governador de província que ao deixar o cargo não seja aclamado pelo povo. A única que instituiu prêmios à virtude, de passo que em todas as outras nações as leis se limitam a castigar o crime. A única que impôs suas leis aos próprios vencedores, enquanto nós ainda vivemos sujeitos aos costumes dos borgúndios, francos e godos que nos avassalaram. Deve-se reconhecer, todavia, ser o vulgacho governado por bonzos tão canalha quanto o nosso. Que, como nós, não perdem ocasião de escorchar o estrangeiro Que nas ciências nos caranguejam a reboque com dois séculos de atraso. Que como a nós gafa-os sem conto de preconceitos ridículos. Que acreditam, como por muito tempo cremos, em talismãs e na astrologia judiciária.
Confessemos ainda que ficaram queixicaídos ante o nosso termômetro, ante o costume de gelarmos licores com salitre e ante todas as experiências de Torricelli e Otto de Guericke, exatamente como o ficamos, quando presenciamos pela primeira vez a esses brincos da física. Que seus médicos não curam melhor que os nossos as doenças mortais e que, tal qual como aqui, na China as moléstias triviais são relegadas aos cuidados exclusivos da natureza. Nada disso impede, porém, que há quatro mil anos, quando sequer sabíamos ler, já estivessem os chins de posse de todas as coisas essencialmente úteis de que hoje fazemos alarde.


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CIRCUNCISÃO
Ao narrar o que lhe disseram os bárbaros cujos países viajou, Heródoto, como a maioria dos nossos viajores, não nos diz mais que tolices. Não devemos dar-lhe crédito, igualmente, quando fala da aventura de Giges e Candolo, de Árion montado num delfim, do oráculo consultado para saber o que fazia Creso, o qual respondeu que ele estava cozendo uma tartaruga numa panela tampada, do cavalo de Dario que, tendo sido o primeiro em nitrir, proclamou seu dono rei, e de cem outras fábulas próprias para divertir crianças e ser compiladas por retóricos. Quando, porém, fala do que viu, dos costumes dos povos que estudou, das, antigüidades que submeteu a exame, aí sim dirige-se a gente grande.
“Quero crer” – diz no livro Euterpe – “que os habitantes da Cólchida sejam originários do Egito. Julgo-o mais por mim mesmo que de outiva, porque verifiquei ser mais viva a recordação dos antigos egípcios na Cólchida que no Egito a lembrança dos velhos costumes de Colchos.
“Pretendia esse povo praieiro do Ponto Euxino ser uma colônia fundada por Sesostris. Quanto a mim, já o conjeturava, não somente por serem adustos e terem os cabelos frisados, mas porque os povos da Cólchida, Egito e Etiópia são os únicos na terra que sempre praticaram a circuncisão. Quanto aos fenícios e aos habitantes da Palestina, confessam ter copiado tal prática aos egípcios. Da mesma forma os sírios, que hoje estanciam às abas do Termódon e da Parténia, e seus vizinhos mácrons reconhecem não haver muito tempo que se conformaram a esse costume egípcio. É esse até um dos principais atestados de sua ascendência. egipcíaca.
“Quanto à Etiópia e ao Egito, como a circuncisão é antiquíssima tanto num como noutro, não sei qual dos dois tenha importado essa cerimônia. O mais provável, contudo, é terem-na recebido os etíopes dos egípcios. Assim como, contrariamente, desterraram os fenícios o uso de circuncidar as crianças recém nascidas desde que se intensificou seu comércio com os gregos.”
É evidente, de acordo com esse passo de Heródoto, que muitos foram os povos que receberam a circuncisão do Egito. Nenhum, porém, jamais pretendeu tê-la importado dos judeus. A quem atribuir então a origem desta prática: a uma nação de que confessam havê-la perfilhado cinco ou seis outras, ou a uma nação muito menos poderosa, menos comerciante, menos guerreira, encafurnada num canto da Arábia Pétrea, que nunca comunicou a povo nenhum o mais insignificante de seus costumes?
Dizem os judeus ter sido outrora caritativamente acolhidos pelos egípcios. Não é muito verossímil haver o povo ínfimo imitado um uso do grande povo? Não é natural terem os judeus adotado um ou outro costume de seus senhores?
Conta Clemente de Alexandria que, viajando o Egito, Pitágoras foi obrigado a deixar circuncidar-se para ser admitido em seus mistérios. Quer dizer que era absolutamente imprescindível ser circunciso para ingressar no sacerdócio egípcio. Tal sacerdócio já existia quando José foi dar com os costados no país das pirâmides. Antiquíssimo era o governo, e as cerimônias se observavam com a mais escrupulosa exatidão.
Confessam os judeus ter permanecido duzentos e cinco anos no Egito. E dizem não haver praticado a circuncisão nesse espaço de tempo. Claro é por conseguinte que os egípcios não poderiam ter-lhes copiado essa prática enquanto os tiveram como hóspedes. Te-lo-iam feito posteriormente, depois de os judeus lhes haverem roubado todos os vasos que lhes tinham sido emprestados e se rasparem a sete pés para o deserto levando consigo o fruto do roubo, segundo seu próprio testemunho? Adotará um senhor o selo da religião de um escravo que o roubou e fincou pé no mundo? Não o admite a natureza humana.
Diz-se no livro de Josué que os judeus foram circuncidados nos desertos: “Eu vos livrei do que constituía o vosso opróbrio entre os egípcios”. Ora, qual podia ser esse opróbrio para uma nação encravada entre a Fenícia, Arábia e Egito, senão o que os tornava desprezíveis aos olhos destes três povos? Como livrá-los desse opróbrio? Livrando-os de um pouco de prepúcio. Não é o sentido natural do trecho a cima citado?
Diz o Gênesis que Abraão foi circunciso. Mas Abraão esteve no Egito, que era havia muito reino florescente, governado por poderoso rei. Nada impede que nesse reino tão antigo fosse a circuncisão praticada desde muito tempo antes que se formasse a nação judaica. Demais a circuncisão de Abraão foi um caso insulado. Só depois de Josué foi que se vulgou entre seus pósteros esse sacramento.
Ora, antes de Josué os israelitas aprenderam, como eles mesmos confessam, muitos costumes dos egípcios. Imitaram-nos em não poucos sacrifícios, cerimônias, como os jejuns às vésperas das festas de Isis, as abluções, o costume de rapar a cabeça dos padres, o incenso, o candelabro, o sacrifício da vaca ruça, a purificação com hissopo, a abstinência da carne de porco, a aversão aos utensílios de cozinha dos estrangeiros, tudo atestando que o diminuto povo hebreu, mau grado sua antipatia à grande nação egípcia, retivera infinidade de usos de seus ex-senhores. O bode Hazazel, que enviavam ao deserto carregado dos pecados do povo, era visível imitação de uma prática egípcia. Os próprios rabinos convêm em que a palavra Hazazel não é hebraica. Nada obsta portanto que os hebreu hajam imitado os egípcios na circuncisão, como o fizeram seus vizinhos árabes.
Nada de extraordinário há em que Deus, que santificou o batismo, tão antigo entre os asiáticos, santificasse também a circuncisão, não menos antiga entre os africanos. Já dissemos ser senhor de conferir suas graças aos sinais que se dignar eleger.
Demais de tudo, desde que, sob Josué, os judeus foram circuncisos, mantiveram essa prática até nossos dias. O mesmo fizeram os árabes. Os egípcios, porém, que a princípio circuncidavam os jovens de ambos os sexos, com o tempo deixaram de submeter as moças a tal operação, terminando por restringi-la aos sacerdotes, astrólogos e profetas. É o que nos ensinam Clemente de Alexandria e Orígenes. Efetivamente, nunca se ouviu dizer que os Tolemeus tivessem sido circuncidados.
Os autores latinos, que tratam os judeus com tão profundo desprezo que lhes chamam curtas Apella, por derisão, credat Judaeus Appella, curti Judaei, não dão epítetos tais aos egípcios. Hoje a circuncisão é de regra no Egito, mas por outra razão: porque o mafomismo adotou a antiga circuncisão da Arábia.
Foi essa circuncisão árabe que passou à Etiópia, onde ainda se circuncidam os jovens de ambos os sexos.
Não há negar ser à primeira vista bem estranha a cerimônia da circuncisão. Mas note-se que em todos os tempos os sacerdotes do Oriente se consagraram a suas divindades por marcas particulares. Entre os padres de Baco o sinal era uma folha de hera gravada a buril. Diz Luciano que os devotos da deusa Tais imprimiam sinais no pulso e pescoço. Os sacerdotes de Cibele faziam-se eunucos.
É muito provável que os egípcios, que veneravam o instrumento da geração e carregavam-lhe a imagem em suas procissões, tivessem a idéia de oferecer a Isis e Osiris, deuses que presidiam a todos os fenômenos de reprodução, uma partícula do membro por que quiseram essas divindades que o gênero humano se perpetuasse. São os antigos costumes orientais tão diferentes dos nossos que nada parecerá extraordinário a quem quer que tenha um pouco de leitura. Um parisiense fica admirado ao saber que os hotentotes cortam aos filhos um dos testículos. Os hotentotes ficariam admiradíssimos se soubessem que os parisienses conservam os dois.


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CONVULSÕES
Dançou-se pelo ano de 1724 no cemitério de Saint-Médard. Deram-se no local um sem número de milagres, de que nos dá amostra uma canção da duquesa de Maine:

Um engraxate à real,
do pé esquerdo aleijado,
teve por graça especial
ser do direito privado

Como é sabido, as convulsões miraculosas continuaram até que foi posto um guarda no cemitério.

Em nome do rei veda-se entrar
doravante a Deus neste lugar.

Os jesuítas, como se sabe, já não podendo fazer de tais milagres desde que seu Xavier esgotara as graças da Companhia ressuscitando nove mortos contados a dedo, lembraram-se, para balançar o crédito dos jansenistas, de estampar uma imagem de Jesus Cristo vestido de jesuíta. Como ainda é sabido, escreveu um burlão do partido jansenista em baixo da estampa:

Que jesuítas manhosos!
De medo que vos amássemos,
estes monges engenhosos
vos vestiram à sua imagem.

Os jansenistas, a fim de melhor provar que jamais Cristo poderia tomar o hábito de jesuíta, puseram Paris de pernas para o ar e carrearam o mundo para sua banda. O conselheiro parlamentar Carré de Montgerou apresentou ao rei um relatório in-4 de todos esses milagres, atestados por milhares de testemunhas. Foi metido, como de direito, sob grades, onde se tratou de restabelecer-lhe o cérebro pelo regime. Mas a verdade sobrepaira a todas as perseguições: os milagres se perpetuaram durante trinta anos a fio, sem solução de continuidade. Chamava-se sóror Rosa, sóror Iluminada, sóror Prometida, sóror Confita: açoitavam-nas até o sangue, e no dia seguinte estavam como se nada houvesse acontecido. Vergastavam-lhe o estômago bem encouraçado, bem estofado, sem sequer sentirem. Punham-nas ao fogo, o rosto emplastado de pomadas, e nada de queimar. Enfim, como todas as artes se aperfeiçoam, terminou-se por fincar-lhes espadas nas carnes e por crucificá-las. Chegou-se até a crucificar um teólogo famoso(24), tudo para convencer o mundo do ridículo de certa bula, o que se poderia ter feito sem tanto custo. Nesse em meio jesuítas e jansenistas uniram-se contra o Espírito dos leis, e contra... e contra... e contra ...e contra... E temos o ousio, depois de tudo isso, de escarnicar dos lapões, dos samoiedas e dos negros!

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